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Cidadania e loucura

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4. loucura e cidadania

O relacionamento dos conceitos de cidadania e loucura deve ter como referencial temporal inicial o Estado moderno, na medida em que foi a partir desta época que o termo cidadania adquiriu a maior parte da extensão que tem hoje.

Convém lembrar, contudo, que neste cenário de conturbações sociais e econômicas que forneceram propício ensejo ao aperfeiçoamento do conceito de cidadania, no final do século XVIII, surgiu também a apropriação do fenômeno da loucura pela medicina, a identificação da loucura como doença que precisava ser tratada, em um tratamento que importava necessariamente na internação do louco, em sua exclusão social, a definição da loucura como alienação e o louco como um sujeito fora de si, um sujeito que não se pertence. Um dos fatores, inclusive, a fundamentar a internação do louco no asilo, o fator epistemológico, era sua consideração como objeto de estudo da psiquiatria.

Ora, tratado como objeto, a própria condição de ser humano do louco foi preterida. Não passava, ressalte-se, de mero objeto de estudo, de uma coisa e, portanto, não sujeita a maiores direitos além do "direito" a ser "tratado", que mais se assemelhava a uma justificativa para mantê-lo afastado. Efetivamente, portanto, o conceito de cidadania não se estendia ao louco.

Eis, assim, alguns dos méritos da reforma psiquiátrica ao rever todos estes valores, considerando e expressando a condição humana do louco (não podendo ele ser objeto de pesquisa), utilizando a internação e conseqüente exclusão somente como última opção, no caso do tratamento extra-hospitalar não ser suficiente e ainda assim objetivando permanentemente a reinserção social do louco, na definição de direitos mínimos do portador de transtornos mentais.

Acrescente-se, ademais, a preocupação em manter o louco sempre próximo à sua comunidade, mesmo no sistema de tratamento extra-hospitalar, e na intenção de favorecer sua inserção no mercado de trabalho, como apontado com a criação das cooperativas sociais.

Pertinente advertir que o termo asilar, como materialização do desrespeito ao louco, combatido pela reforma psiquiátrica não se restringe ao hospital psiquiátrico, mas a toda concepção cultural que envolve o tratamento do portador de transtorno mental. Sobre esta questão, vejamos a observação feita pela Dra. Ana Maria Galdini R. Oda (2003):

A falta de respeito pelo doente mental não precisa do confinamento físico para existir, ela está também em atitudes dos profissionais e em práticas institucionais de serviços ambulatoriais, por exemplo, na falta de individualização de projetos terapêuticos, na medicalização de problemas sociais, na falta de competência e de atualização técnica, na recusa em aceitar as limitações das terapêuticas em saúde mental e na adoção de posições reducionistas.

Destarte, no reconhecimento do louco como ser humano, definindo-lhe direitos básicos em caso de internação, alterando-se o direcionamento dado ao tratamento médico oferecido, percebe-se que a reforma psiquiátrica vem sendo fundamental não para resgatar a cidadania do louco, vez que efetivamente nunca a possuiu, mas para estabelecer formalmente, pela primeira vez em nossa história nacional, sua condição de cidadão.


conclusão

Percebeu-se, portanto, que o fenômeno da loucura, que durante séculos desde o Estado moderno foi considerado como erro, como uma incorreção da personalidade humana, suficiente para afastar seu portador do seio social, reduziu-o a mero objeto de estudo, abstraído-lhe de quaisquer direitos.

A utilização do asilo como única opção de tratamento ao louco, portanto, é verdadeiro aspecto de segregação, vez que o exclui da sociedade, favorecendo mesmo a sua sujeição à condições aviltantes que sequer o consideram como ser humano, muito menos como cidadão.

A partir das novas concepções sociais, um novo sentido vem sendo dado à loucura, não como erro, mas como uma diferença que deve ser respeitada, que tem seu próprio tempo, suas próprias condições, suas particularidades. E que tais circunstâncias não desqualificam o louco como cidadão, mas que apontam para um caminho de tolerância e respeito com o ser humano.

Não é despiciendo alertar que a exclusão dita asilar não se restringe ao ambiente físico do hospital psiquiátrico, mas a toda ideologia que envolve o tratamento do louco. A sua consideração como cidadão, portador de direitos, deve se estender ao acompanhamento extra-hospitalar, e aos profissionais que atuam neste tratamento, bem como aos próprios familiares do louco, sob o risco do fim da centralização do hospital psiquiátrico ocultar uma verdadeira segregação psicológica do louco, a partir dos preconceitos que ainda envolvem sua especial condição.


REFERÊNCIAS

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FOUCAULT, Michel. Loucura e sociedade. Tradução por Jana Said Melo. Paris: Editions Galilimard, 1994

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Silva, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 21ª edição. São Paulo: Malheiros, 2002.

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Sobre o autor
Paulo Roberto Clementino Queiroz

técnico judiciário do Tribunal Regional Eleitoral do Ceará, advogado, pós-graduando em Administração Pública

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

QUEIROZ, Paulo Roberto Clementino. Cidadania e loucura. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1606, 24 nov. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10697. Acesso em: 23 dez. 2024.

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