Do agente de contratação à luz da Lei nº 14.133 e a polêmica acerca do requisito "ser servidor efetivo"

21/11/2023 às 23:56
Leia nesta página:

A lei 14.133/21, conhecida como a nova lei de licitações, criou a figura do agente de contratação, em regra, com o objetivo de substituir a comissão permanente de licitação, órgão previsto no art. 6º, XVI da lei 8.666/[93].

A licitação sob as regras do novo diploma legal deverá ser conduzida por agente de contratação, pessoa designada pela autoridade competente. Será o servidor público que irá acompanhar o trâmite da licitação, dará impulso ao processo licitatório, tomará decisões, etc. Ademais, o dispositivo legal exige que a pessoa designada para desempenhar a função de agente de contratação seja um(a) servidor(a) efetivo(a), ou seja, aprovado(a) em concurso público.

Rechaça-se, portanto, a possibilidade de designar um servidor ocupante de cargo em comissão, de livre nomeação e exoneração (quer dizer, o servidor contratado que não passou pelo crivo do concurso público).

Vale ressaltar que, na licitação que adotar a modalidade pregão, o agente será chamado pregoeiro. Neste caso não há novidade, a nova lei apenas incorporou o que já era previsto na lei do pregão (10.520/02), diga-se de passagem, que será revogada no dia 30/12/23.

Assevera o art. 8º da lei 14.133/21, in verbis:

“Art. 8º A licitação será conduzida por agente de contratação, pessoa designada pela autoridade competente, entre servidores efetivos ou empregados públicos dos quadros permanentes da Administração Pública, para tomar decisões, acompanhar o trâmite da licitação, dar impulso ao procedimento licitatório e executar quaisquer outras atividades necessárias ao bom andamento do certame até a homologação.

§ 1º O agente de contratação será auxiliado por equipe de apoio e responderá individualmente pelos atos que praticar, salvo quando induzido a erro pela atuação da equipe.

§ 2º Em licitação que envolva bens ou serviços especiais, desde que observados os requisitos estabelecidos no art. 7º desta Lei, o agente de contratação poderá ser substituído por comissão de contratação formada por, no mínimo, 3 (três) membros, que responderão solidariamente por todos os atos praticados pela comissão, ressalvado o membro que expressar posição individual divergente fundamentada e registrada em ata lavrada na reunião em que houver sido tomada a decisão.

§ 3º As regras relativas à atuação do agente de contratação e da equipe de apoio, ao funcionamento da comissão de contratação e à atuação de fiscais e gestores de contratos de que trata esta Lei serão estabelecidas em regulamento, e deverá ser prevista a possibilidade de eles contarem com o apoio dos órgãos de assessoramento jurídico e de controle interno para o desempenho das funções essenciais à execução do disposto nesta Lei. (Regulamento) Vigência

§ 4º Em licitação que envolva bens ou serviços especiais cujo objeto não seja rotineiramente contratado pela Administração, poderá ser contratado, por prazo determinado, serviço de empresa ou de profissional especializado para assessorar os agentes públicos responsáveis pela condução da licitação.

§ 5º Em licitação na modalidade pregão, o agente responsável pela condução do certame será designado pregoeiro.”

O art. 6º, inciso LX da lei 14.133 alude:

(...)

LX - agente de contratação: pessoa designada pela autoridade competente, entre servidores efetivos ou empregados públicos dos quadros permanentes da Administração Pública, para tomar decisões, acompanhar o trâmite da licitação, dar impulso ao procedimento licitatório e executar quaisquer outras atividades necessárias ao bom andamento do certame até a homologação.


DA POLÊMICA

Conforme dito alhures, a lei exige que o servidor designado para a função de agente de contratação, seja efetivo. Parte da doutrina entende que o dispositivo legal se trata de norma específica, e não geral, por ser regra de organização administrativa. Essa corrente, portanto, defende que essa exigência se aplica somente à União, podendo os demais entes federados legislar em contrário.

Nos termos desse entendimento, embora a lei possua o rótulo de lei geral, o dispositivo em tela deve ser interpretado conforme à Constituição, como norma específica, caso contrário, se tornaria uma norma de constitucionalidade duvidosa.

Os professores Matheus Carvalho, João Oliveira e Paulo Germano, elencam:

“Trata-se de norma específica; entende-la como norma geral ofenderia o pacto federativo. O legislador federal ultrapassou os limites da sua competência, estabelecendo, a título de normas gerais de licitações e contratos, regras sobre organização e funcionamento dos entes federativos. (...) Interpretar o artigo 8º, como regra geral aplicável a todos os entes implicaria em inconstitucionalidade manifesta. Isto por que, o dispositivo não trata diretamente do processo de contratação pública, mas de organização e funcionamento da Administração Pública. Ocorre que é inerente ao princípio do pacto federativo a competência de cada ente de auto-organizar-se administrativamente. Com isso, a União não dispõe de competência legislativa para editar normas definindo requisitos para contratação de agentes públicos dos Estados, Distrito Federal e Municípios”.

Ademais, os referidos autores citam o professor Marçal Justen Filho cujo o entendimento é semelhante, vejamos:

“É indefensável que a constituição tenha consagrado inúmeras regras e princípios acerca da Federação e, simultaneamente, outorgue à União competência para interferência ilimitada nos assuntos internos dos outros entes federais. Aliás, se tal vontade constitucional existisse, exteriorizar-se-ia em disposições de grande relevo e relacionadas com a organização federal brasileira. Isso não ocorreu e a Constituição, ao dispor sobre Estados, Distrito Federal e Municípios, ressaltou de modo explícito sua autonomia e face da União. Portanto, o conceito de norma geral não é sobreponível ao de Federação. As competências locais derivadas da organização federal não podem ser limitadas através de lei da União, destinada a veicular normas gerais. Em termos ainda mais diretos: norma geral não é instrumento de restrição da autonomia federativa.”

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O Tribunal de Contas do Espírito Santo na consulta 00016/2023-1, flexibilizou o art.8º, in verbis:

“A competência da União para estabelecer normas gerais em licitação tem previsão na Constituição Federal, em seu art. 22, inciso XXVII. Isso significa que é da responsabilidade da União definir as normas gerais que serão seguidas por todos os entes federados no que se refere aos procedimentos licitatórios. No entanto, a competência privativa da União não exclui a competência suplementar dos municípios, que têm autonomia para criarem regras específicas, que apenas complementem às estabelecidas pela União, sem, contudo, contrariá-las, conforme previsão do art. 30, inciso II, da Constituição Federal. Assim, os municípios poderão regulamentar por lei as nomeações de “Agentes de Contratação” e “Pregoeiros”, desde que realizadas, preferencialmente, entre os servidores efetivos e de carreira, salvo quando comprovada a ausência de disponibilidade dos referidos agentes públicos, sob inteira responsabilidade da autoridade nomeante, sendo imprescindível demonstrar, também, as qualificações profissionais dos nomeados, bem como que são estas suficientes e adequadas ao exercício das funções”.

(Consulta 00016/2023-1)grifo nosso.

Lado outro, com a devida vênia, discordo do referido posicionamento. Ora, a presente discussão não se trata de ultrapassar, ou não, a competência legislativa de edição de normas gerais. Deve-se vislumbrar o fato de que a função do agente de contratação não se enquadra nas atribuições de servidores ocupantes de cargos comissionados.

Isso porque, a Carta Magna assevera que o cargo comissionado só pode exercer atribuições de chefia, assessoramento ou direção. É o que estabelece o inciso V do art. 37, CRFB:

“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

(...)

V - as funções de confiança, exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo, e os cargos em comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento; (...)”. (Grifo nosso)

Sobre as regras dos cargos em comissão, o STF já decidiu:

Criação de cargos em comissão. Requisitos estabelecidos pela Constituição Federal. Estrita observância para que se legitime o regime excepcional de livre nomeação e exoneração. Repercussão geral reconhecida. Reafirmação da jurisprudência da Corte sobre o tema.

1. A criação de cargos em comissão é exceção à regra de ingresso no serviço público mediante concurso público de provas ou provas e títulos e somente se justifica quando presentes os pressupostos constitucionais para sua instituição.

2. Consoante a jurisprudência da Corte, a criação de cargos em comissão pressupõe: a) que os cargos se destinem ao exercício de funções de direção, chefia ou assessoramento, não se prestando ao desempenho de atividades burocráticas, técnicas ou operacionais; b) necessária relação de confiança entre a autoridade nomeante e o servidor nomeado; c) que o número de cargos comissionados criados guarde proporcionalidade com a necessidade que eles visam suprir e com o número de servidores ocupantes de cargos efetivos no ente federativo que os institui; e d) que as atribuições dos cargos em comissão estejam descritas de forma clara e objetiva na própria lei que os cria.

3. Há repercussão geral da matéria constitucional aventada, ratificando-se a pacífica jurisprudência do Tribunal sobre o tema. Em consequência disso, nega-se provimento ao recurso extraordinário.

4. Fixada a seguinte tese: a) A criação de cargos em comissão somente se justifica para o exercício de funções de direção, chefia e assessoramento, não se prestando ao desempenho de atividades burocráticas, técnicas ou operacionais; b) tal criação deve pressupor a necessária relação de confiança entre a autoridade nomeante e o servidor nomeado; c) o número de cargos comissionados criados deve guardar proporcionalidade com a necessidade que eles visam suprir e com o número de servidores ocupantes de cargos efetivos no ente federativo que os criar; e d) as atribuições dos cargos em comissão devem estar descritas, de forma clara e objetiva, na própria lei que os instituir.

(Recurso Extraordinário 1041210). Grifo nosso

Recentemente, o Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, posicionou-se sobre o agente de contratação na Consulta n° 34/2023:

LEGISLAÇÃO. LICITAÇÃO. OCUPAÇÃO. AGENTE PÚBLICO. INDICAÇÃO DE SERVIDOR PÚBLICO. CARGO EFETIVO. O art. 7º da Lei nº 14.133/21 estabeleceu preferência pela designação dos servidores efetivos ou empregados públicos dos quadros permanentes da Administração Pública para o desempenho das funções essenciais à sua execução, ressalvando a situação do agente de contratação, cuja designação deverá recair necessariamente em servidores efetivos ou empregados públicos dos quadros da Administração Pública, nos termos do art. 8º da Lei nº 14.133/21. (grifo nosso)

(Acórdão nº 85922/2023-PLENV | Processo TCE-RJ nº 249.203-1/22)

Diante de tudo ora exposto, é possível concluir que a matéria possui divergência porque há duas questões constitucionais distintas recaindo no mesmo contexto. De um lado, a alegação da falta de competência legislativa da União face à autonomia de organização e funcionamento administrativos dos demais entes. Doutro, a questão das atribuições do cargo em comissão. A literalidade da lei busca atender às regras do inciso V do art. 37 da Constituição da República, haja vista que, as atribuições do agente de contratação não se enquadram em assessoramento, chefia ou direção.


REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em 20 de nov 2023.

BRASIL. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14133.htm. Acesso em 19/11/2023, às 13:15

Nova Lei de Licitações Comentada e Comparada / Matheus Carvalho, João Paulo Oliveira, Paulo Germano Rocha. -3.ed.rev., atual. ampl.- Salvador: Editora JusPodivm, 2023.

https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verPronunciamento.asp?pronunciamento=7174097 acesso em 21/11/23, às 22:35

https://www.tce.rj.gov.br/consulta-processo/consultas acesso em 21/11/23, às 21:45

Parecer+em+Consulta+16-2023-1-1.pdf;acesso em 19/11/23, às 17:16

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Sobre o autor
Henrique Costa

Advogado. Orador. Autor de artigos e textos jurídicos. Especialista em Licitações Públicas e Contratos Administrativos. Atua como Treinador, Consultor e Assessor Jurídico. Participante do Projeto Implantação da Nova Lei de Licitações com ênfase nos Órgãos e Entidades Públicas. Participante do Curso Desmistificando as Obras e Serviços de Engenharia - Os Novos Desafios da Lei 14.133/21 e as Velhas Questões; Congressista no VI Congresso Brasileiro de Licitações e Contratos. Congressista no I Congresso do Instituto Nacional de Contratações Públicas (INCP). Congressista no III Congresso Jurídico Internacional da Fundação Pres. Antônio Carlos. Participante da XXIV Conferência Nacional da Advocacia Brasileira. Pós-graduado em Direito Constitucional e Administrativo. Pós-Graduado em Direito Trabalhista e Previdenciário. Pós-Graduado em Direito e Processo Civil. Pós-graduado em Ciências Penais e Segurança Pública.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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