A hibridação, como se usa chamar nos estudos literários, diz respeito aos momentos dos textos literários em que se fazem presentes duas ou mais culturas. Nos momentos históricos em que povos dominantes e povos escravizados tiveram contato profundo, por exemplo, é normal que tenham surgido sistemas literários híbridos, religiões sincréticas, novos hábitos alimentares, dentre outros. O sincretismo sempre impulsionou a produção de cultura, isso é fato.
Podemos então afirmar que o contato entre indivíduos diferentes implica na recriação da realidade a partir do confronto de dois mundos. Trata-se do dialogismo do qual o teórico russo Mikhail Bakhtin falou no início do século passado. Mas, se as ideias são adaptações de ideias anteriores, de contatos culturais entre pessoas e povos, como fica o direito nisso tudo? Ele permite livremente que uma obra se apoie em outra?
Na Lei nº 9.610/1998, que trata dos Direitos Autorais, encontramos o conceito de obra derivada: a que, constituindo criação intelectual nova, resulta na transformação de obra originária. Em seu artigo 29 e incisos, a mesma Lei diz que a utilização de uma obra autoral de forma adaptada e transformada depende de autorização do autor. Logo, é bastante clara quando proíbe a reprodução adaptada de uma obra.
Vemos então que a obra literária não pode ser uma reprodução adaptada de outro texto anterior, ou seja, não pode copiar a sua estrutura, o argumento, a forma, o tempo, o espaço e os personagens. Pode ser um revérbero de ideias, mas jamais uma cópia. Contudo, a Lei Autoral deixa um rastro de exceção a esta regra, quando no artigo 47 menciona: São livres as paráfrases e paródias que não forem verdadeiras reproduções da obra originária nem lhe implicarem descrédito.
A paródia é a versão crítica, às vezes cômica, da obra originária. Segundo PASERO (2015), os textos parodísticos lançam mão de práticas manipulativas de várias naturezas, de forma a manifestar a hibridação literária. Ou seja, a paródia não pretende copiar e se passar pela obra originária, e sim despertar uma crítica a respeito dos valores nela contidos.
Vetores sociais, políticos, ideológicos e estéticos são questionados na obra parodiada e criam um diálogo rico e construtivo. Sincrético, podemos até dizer! Nestes moldes, a paródia não representaria mais a versão grotesca do texto originário, mas o seu questionamento híbrido construtivo.
O entendimento de que a paródia é permitida é compartilhado modernamente por várias legislações no mundo. A Diretiva da União Europeia 2019/790, relativa aos direitos de autor e direitos conexos no mercado único digital, menciona que os Estados-Membros da União devem garantir a utilização de conteúdos autorais mesmo sem autorização, quando esta se prestar a efeitos de caricatura, paródia ou pastiche. Nem sempre, contudo, os países europeus reconheceram a paródia como uma derivação permitida.
No início do século passado tem-se o grande marco de discussão acerca da permissão jurídica para parodiar na Itália, marco este que é tratado pela obra cinematográfica Qui rido io, com título no Brasil O rei do riso, de Mario Martone (2021). O filme narra a história de Eduardo Scarpetta, comediante e ator napolitano, e em especial seus problemas legais com o poeta e dramaturgo Gabriele D’Annunzio. Scarpetta cria a obra cênica Il fligio di Iorio e estabelece uma paródia da peça teatral La figlia di Iorio, de D’Annunzio, motivo de grande mal-estar e comoção pública na Itália da Belle Époque e, o que é mais relevante, causa de um processo judicial de grande repercussão pública na ocasião. Os personagens e os argumentos foram invertidos: mulheres na obra de D’Annunzio foram transformadas em homens na peça de Scarpetta, e toda tragicidade peculiar do poeta D’Annunzio tornaram-se comédia pelas mãos do napolitano.
O longa-metragem narra a peculiar formação familiar de Scarpetta, a consagração de seu personagem Felice Sciosciammocca, que parodia o personagem-tipo burguês de uma Itália pós-unificação e culmina com o impasse jurídico criado com D’Annunzio.
A discussão judicial acerca do que é a paródia é o ponto alto da obra. Conta com o depoimento pessoal de Eduardo Scarpetta, representado por Toni Servillo, que de modo ímpar explica aos juristas o que é uma paródia e sua diferença da contrafação, ou da simples cópia não autorizada.
O filme reproduz fielmente essa fala, que de fato foi feita pelo dramaturgo napolitano e, ao nosso ver, é bastante útil para demonstrar como uma paródia é uma articulação refinada de elementos críticos em torno de uma obra originária. Não é uma contrafação, pois não copia ou reproduz a obra, mas a utiliza como objeto de criação e questionamento. Neste sentido, estabelece uma hibridação entre o cânone representado pela obra derivada e a paródia representada pela obra de Scarpetta. E, afinal, da discussão judicial resultou o grande avanço acerca do conceito da paródia na lei italiana!
Referências:
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovith.. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010.
BRASIL. Lei 9.610/1998, altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências. Acessada em 16.11.2023 em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9610.htm
PASERO, Nicolò. Metafora e parodia come fenomeni di contaminazione letteraria. Moderna: semestrale di teoria e critica della letteratura. v. 17, nº 1, 2015. p. 79-84.
UNIÃO EUROPEIA. Diretiva EU 2019/790 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de abril de 2019, relativa aos direitos de autor e direito conexos no mercado único digital e que altera as Diretivas 96/9/CE e 2001/29/CE. Acessada em 16.11.2023 em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32019L0790&from=es