O conceito de Constituição: entre Lassalle e Hesse

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A Constituição escrita é um documento estático ou pode acompanhar o dinamismo e a velocidade das alterações sociais, das mudanças dos fatores reais de poder?

1. A CONSTITUIÇÃO E OS FATORES REAIS DE PODER

Em 16 de Abril de 1862, o professor Ferdinand Lassalle, proferiu uma conferência acerca da essência constitucional, partindo de uma questão em particular: “Qual será a verdadeira essência, o verdadeiro conceito de uma Constituição?”. Em sua investigação, utiliza-se de um método comparativo, envolvendo de um lado a Constituição, e de outro os conceitos de outros objetos conhecidos1.

Partindo do pressuposto de que a Constituição é uma lei especial, uma lei fundamental, passa-se a questionar o que é uma lei fundamental. Assim, percebe que “A ideia de fundamento traz, implicitamente, a noção de uma necessidade ativa, de uma força eficaz e determinante que nela se baseia, fazendo-a assim e não de outro modo” (1988:28). Assim, a Constituição é essa “força ativa” capaz de tornar as leis no que elas são. No entanto, essa força ativa corresponde aos chamados fatores reais de poder.

A Constituição seria, então, a soma dos fatores reais de poder que regem uma nação. Desse modo, temos duas Constituições distintas a real e a jurídica, correspondendo à Constituição real a soma de fatores reais de poder. Enquanto à jurídica corresponde a transposição desses fatores reais de poder para uma folha de papel (documentação).

A Constituição real e efetiva, diferentemente da Constituição jurídica, não é uma “prerrogativa dos tempos modernos” (LASSALLE, 1988: 47), pois assim como para cada Nação há fatores reais de poder também há uma Constituição real e efetiva2.

Portanto, a Constituição jurídica não tem qualquer valor, nem qualquer relevância quando se encontrar em desarmonia com a Constituição real e efetiva. E mais, como os fatores reais de poder que regem uma determinada sociedade podem sofrer alterações, mudanças, a constituição jurídica, ante o fato de ser escrita, padece, portanto, da possibilidade de atualização, pois como é estática, jamais poderia acompanhar o progresso da sociedade. Assim, declara Lassalle (1988, p. 59):

Quando podemos dizer que uma constituição escrita é boa e duradoura? [...] resposta é clara e parte logicamente de quanto temos exposto: Quando essa constituição escrita corresponder à constituição real tiver suas raízes nos fatores do poder que regem o país. [...] a constituição escrita não corresponder à real, inevitavelmente um conflito que é impossível evitar e no qual, mais dia menos dia, a constituição escrita, a folha de papel, sucumbirá necessariamente, perante a constituição real, a das verdadeiras forças vitais do país.

A Constituição jurídica, de fato, seria inócua se não visasse aos fatores reais de poder, mas não a entendemos de forma estática, de forma inerte como deixa a entender o citado autor. Uma coisa é certa, não basta estabelecer em um documento escrito que essa ou aquela lei é uma constituição, se o seu conteúdo não for de fato distinto e superior aos das demais leis. Queremos com isso dizer que não basta afirmar a existência de uma Constituição, é imperioso que ela realmente exista. Para exemplificar o que afirmamos, façamos uso das palavras de Ferdinand Lassalle (1988, p. 63):

Podem os meus ouvintes plantar no seu quintal uma macieira e segurar no seu tronco um papel que diga: ‘Esta árvore é uma figueira.’ Bastará esse papel para transformar em figueira o que é macieira? Não naturalmente. E embora conseguissem que seus criados, vizinhos e conhecidos, por uma razão de solidariedade, confirmassem a inscrição existente na árvore de que o pé plantado era uma figueira, a planta continuaria sendo o que realmente era e, quando desse frutos, destruiriam essa fábula, produzindo maçãs e não figos.

O exemplo acima ilustra bem aquilo que pode acontecer às constituições jurídicas, pois “De nada servirá o que se escrever numa folha de papel, se não se justifica pelos fatos reais e efetivos do poder.” (LASSALLE, 1988, p. 64)

Há, ainda, o fato desses fatores reais de poder encontrarem-se concentrados nas mãos da sociedade, mas partilhado pelos seus diversos segmentos, estando mais organizados em alguns e menos em outros desses segmentos. Assim, a Constituição passa a refletir os interesses desses grupos em menor ou maior escala, tudo em conformidade com a sua forma de organização. Decorre, que os governantes ou, em geral, as classes com maior poder, por estar mais organizadas sobrepõem-se aos interesses do povo, que tendo seu poder menos organizado, exerce uma menor influência na formação de uma Constituição.

Desse modo, termina sua obra concluindo que

Os problemas constitucionais não são problemas de direito, mas do poder; a verdadeira Constituição de um país somente tem por base os fatores reais e efetivos do poder que naquele país vigem e as constituições escritas não têm valor nem são duráveis a não ser que exprimam fielmente os fatores do poder que imperam na realidade social: eis aí os critérios fundamentais que devemos lembrar. (LASSALE, 1988, p. 67)

Entretanto, sua teoria encontrou mais opositores que partícipes. Alguns a renegaram por completo, outros lhe podaram os excessos e extraíram o que de positivo havia em suas ideias.

No mais, surgiram outras concepções de Constituição, dentre as principais podemos citar a de Marx, Carl Schmitt e Hans Kelsen, cada uma abordando um determinado aspecto do conceito de Constituição3.

Uma das críticas feitas ao trabalho de Lassalle pode ser encontrada na obra Aplicabilidade das Normas Constitucionais, obra da lavra de José Afonso da Silva (2002, p. 24), da qual destacamos o seguinte trecho:

Os problemas constitucionais – afirma Lassalle – não são, primariamente, problemas de direito, mas de poder; a verdadeira constituição é a real e efetiva; as constituições escritas não têm valor nem são duráveis, senão na medida em que dão expressão fiel aos fatores de poder imperantes na realidade social. Admite ele, contudo, que a proporção de forças efetivas, que começa sendo mero fato, acaba por converter-se em normas, mas não aceita a acusação, que se lhe fez, de que professava a teoria de que o Poder deveria antepor-se ao Direito, de que o Poder prevalece sobre o Direito, pois, para ele, o Direito prima sobre o Poder, mas a teoria que estava sustentando não se desenvolvia no plano do dever-ser, mas no plano do real e verdadeiramente é.

Diante de tal ponto de vista, sua teoria restringe-se ao plano do ser, não tendo qualquer relação com o plano do dever ser. Isso implica reconhecer que o seu pensamento nega, por completo, que a Constituição possa ser uma norma (seja esta moral ou jurídica), consequentemente, nem de Direito, pois, conforme a lição de Miguel Reale (1993, p. 34),

[...] toda norma enuncia algo que deve ser, em virtude de ser reconhecido um valor como razão determinante de um comportamento declarado obrigatório. Há, pois, em toda regra um juízo de valor, cuja estrutura mister é esclarecer, mesmo porque ela está no cerne da atividade do juiz ou do advogado. [...] todo juízo lógico, cuja expressão verbal se denomina proposição, há sempre um sujeito a quem se predica algo. Ora, a união entre sujeito e o predicado pode ser feita pelo verbo copulativo ser ou, então, pelo verbo dever ser, distinguindo-se, desse modo, os juízos de realidade de valor.

Considerando-se tais críticas, parece não haver uma correta compreensão da obra de Lassale, pois em toda a sua obra não se vê remissão a tais posicionamentos. Em momento algum, o trabalho do renomado professor aponta na direção de que a Constituição não tem a tal falada força normativa, citada por Hesse. Em verdade, questiona sobre a eficácia da Constituição jurídica, pois entende que se não houver uma coincidência entre essa e a Constituição real e efetiva, que é a conhecida e respeitada pelos destinatários da norma, então aquela não passará de uma mera folha de papel.

Sua preocupação é contemporânea, pois era com os conflitos existentes entre a Constituição jurídica (a “folha de papel”) e a Constituição real e efetiva, ou seja, a soma dos fatores reais de poder. Por isso, compreendeu que os problemas constitucionais não se encontravam no âmbito do dever ser, pois não se contesta a validade e a vigência da Constituição jurídica, mas apenas a sua eficácia.

Destarte, não está a contestar, portanto, o caráter jurídico da Constituição, mas diante de um documento estático, que é a constituição escrita, como pode atualizar-se? Como pode acompanhar o dinamismo e a velocidade das alterações sociais, das mudanças dos fatores reais de poder?

Assim, para sua teoria, a constituição jurídica só é realmente eficaz, só é aplicável se estiver em plena e total harmonia com a Constituição real e efetiva, portanto, em harmonia com os fatores reais de poder. Para Inocêncio Mártires Coelho, as lições de Lassalle são verdadeiras lições de realismo jurídico, servindo como uma injeção de clareza, para a reflexão dos problemas vividos entre a Constituição e a realidade constitucional 4.

Desse modo, podemos concluir, em um primeiro momento, que na prática a essência da Constituição não é jurídica, mas política, na medida em que a Constituição é o exato reflexo da vontade dos detentores do poder.


2. A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DOS FATORES REAIS DE PODER

Parece-nos que a atualidade só encarou as ideias de Lassalle como aplicáveis à doutrina do poder constituinte originário, pois encaram que os fatores reais de poder, em seus aspectos, conjuntam ou isoladamente, interferem no processo constituinte, ou seja, influenciam na formulação de uma Constituição 5.

Ao definir, didaticamente, Constituição afirmou o professor André Tavares: “A Constituição é o produto pelo qual podemos reconhecer que houve a manifestação do denominado poder constituinte genuíno” (2002, p. 57). Ao fazê-lo, teríamos uma reafirmação da ideia de Lassalle, ou seja, a ideia de que a Constituição resulta dos fatores reais de poder?

Cremos que certamente assim entendem, porque tentar negar o que ora afirmamos, é partilhar de uma visão ingênua e desapropriada da própria realidade jurídica em sua totalidade.

A questão fundamental das críticas suscitadas acerca do trabalho de Lassalle não repousa nesta questão, mas nos conflitos entre a Constituição real e efetiva e a Constituição jurídica, pois, como dito anteriormente, esta última sucumbe quando em desarmonia com a primeira.

Entre os seus mais conhecidos e duros críticos, temos, certamente o constitucionalista alemão, Konrad Hesse, quem, em sua obra A Força Normativa da Constituição, adota expressamente posição contrária.

Para Hesse (1991, p. 11),

A ideia de um efeito determinante exclusivo da Constituição real não significa outra coisa senão a própria negativa da Constituição jurídica. Poder-se-ia dizer, parafraseando as conhecidas palavras de Rudolf Sohm, que o Direito Constitucional está em contradição com a própria essência da Constituição.

Destarte,

Se a Ciência da Constituição adota essa tese e passa a admitir a Constituição real como decisiva, tem-se a sua descaracterização como ciência normativa, operando-se sua conversão numa simples ciência do ser. [...] se justificada a negação do Direito Constitucional, e a consequente negação do próprio valor da Teoria Geral do Estado enquanto ciência, se a Constituição jurídica expressa, efetivamente, uma momentânea constelação de poder. Ao contrário, essa doutrina afigura-se desprovida de fundamento se se puder admitir que a Constituição contém, ainda que de forma limitada, uma força própria, motivadora e ordenadora da vida do Estado. A questão que se apresenta diz respeito à força normativa da Constituição.

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Desse modo, diante da força normativa da constituição, passa a Hesse (1991, p. 12) a formular os seguintes questionamentos:

Existiria, ao lado do poder determinante das relações fáticas, expressas pelas forças políticas e sociais, também uma força determinante do Direito Constitucional? Qual o fundamento e o alcance dessa força do Direito Constitucional? Não seria essa força uma ficção necessária para o constitucionalista, que tenta criar a suposição de que o direito domina a vida do estado, quando, na realidade, outras forças mostram-se determinantes?

Então, como forma de responder a tais questões, Hesse (1991, p. 13) entende que há três momentos para a resolução de tais questões, quais sejam: a) o reconhecimento de um condicionamento recíproco entre a Constituição jurídica e a realidade político-social: “Devem ser considerados, nesse contexto, os limites e as possibilidades da atuação da Constituição jurídica”; b) a investigação dos pressupostos de eficácia da Constituição.

Assim, entende que a Constituição jurídica e a efetiva condicionam-se reciprocamente, não sendo, entretanto, integralmente dependentes uma da outra. No entanto, a constituição jurídica não é desprovida de força, pois vincula a sociedade.

Então,

A radical separação, no plano constitucional entre realidade e norma, entre ser (Sein) e dever ser (Sollen) não leva a qualquer avanço na nossa indagação. Como anteriormente observado, essa separação pode levar a uma confirmação, confessa ou não, da tese que atribui exclusiva força determinante às relações fáticas. Eventual ênfase numa ou noutra direção leva quase inevitavelmente aos extremos de uma norma despida de qualquer elemento da realidade ou de uma realidade esvaziada de qualquer elemento normativo (HESSE, 1991, p. 14).

Tem-se, então, que “A norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade. A sua essência reside na sua vigência, ou seja, a situação por ela regulada pretende ser concretizada na realidade” (HESSE, 1991, p. 14), a essa pretensão deu-se o nome de pretensão de eficácia, entendendo que esta

[...] não pode ser separada das condições históricas de sua realização, que estão, de diferentes formas, numa relação de interdependência, criando regras próprias que não podem ser desconsideradas. Devem ser contempladas aqui as condições naturais, técnicas, econômicas e sociais. A pretensão de eficácia da norma jurídica somente será realizada se levar em conta essas condições. (HESSE, 1991, p. 15).

Ressalte-se, que

[...] a pretensão de eficácia de uma norma constitucional não se confunde com as condições de sua realização; a pretensão de eficácia associa-se a essas condições como elemento autônomo. A Constituição não configura, portanto, apenas expressão de um ser, mas também de um dever ser” (HESSE, 1991, p. 15).

Portanto, ao admitir que a pretensão de efetividade não se encontra desvinculada da realidade constitucional, não estaria Hesse a admitir que os fatores reais de poder são condições sine qua non para a efetivação da própria força normativa da Constituição?

Segundo Coelho (2001, p. 02), Hesse promoveu a constitucionalização dos fatores reais de poder, através “do reconhecimento explícito de que a norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade e que, por isso, a sua pretensão de eficácia não pode ser separada das condições históricas de sua realização”. E mais, entende que Hesse apenas traz uma solução moderna as questões suscitadas por Lassalle.

De fato, a força normativa da Constituição não pode ser inerente à própria constituição, como deixa bem claro o autor ao mencionar a “vontade de Constituição”, pois como percebe o eminente constitucionalista (1991, p. 21):

Um ótimo desenvolvimento da força normativa da Constituição depende não apenas do seu conteúdo, mas também de sua práxis. todos os partícipes da vida constitucional, exige-se partilhar aquela concepção anteriormente por mim denominada vontade de Constituição (Wille zur Verfassung). Ela é fundamental, considerada global ou singularmente.

Assim o é, pois segundo o próprio autor não se pode impor uma constituição, esta tem de ser aceita, de ser recepcionada pela consciência social6. Entende-se a vontade de Constituição como o desejo dos seus destinatários em cumpri-la. Isto posto, não seria a vontade de Constituição os velhos fatores reais de poder?

Em verdade, ao afirmar que a Constituição se torna mais eficaz na medida em que maior é a vontade de Constituição, Hesse está colocando sua tese no mesmo patamar da tese de Lassalle, haja vista não negar a normatividade da Constituição jurídica, mas percebê-la eficaz na medida em que corresponde aos fatores reais de poder, ou seja, apenas enquanto corresponde a consciência social, sem a qual, consequentemente não há vontade de constituição.

Essa discussão remete-nos ao tridimensionalismo de Reale, o qual compreende, nas palavras de Costa Neto (1999, p. 64ss), que o

[...] direito não nasce nem cresce no vácuo, mas é fruto de fatores sociais, políticos, econômicos, geográficos, demográficos, dentre tantos outros que envolvem a vida dos homens em sociedade. [...] Mas, como esses fatores convertem-se em normas jurídicas? Como é possível um fato transformar-se em direito? [...] Afirma Miguel Reale razoável supor [...] que primitivamente o homem viveu o direito apenas como uma experiência social, sem atribuir a essa vivência prática qualquer significação jurídica, pois não tinha consciência da juridicidade de seus atos. No princípio, portanto, o direito era fato. [...] A bem da verdade, não era somente fato, mas fado, como assinala Reale, isso porque, germinalmente, o direito era tido como a sina a que cada homem deveria submeter-se, governado que era pelas inexoráveis leis do destino, haja vista que o fenômeno jurídico se revestia de um forte traço religioso. [...] Sucede que, gradativamente, o homem foi abstraindo imagens do mundo em que vivia, e com isso os fatos começaram a ter um significado que podia ser apreendido a nível da consciência humana. Nesse momento, o direito deixou de ser apenas um fato, por assim dizer, em estado bruto, e passou a ser impregnado por valores. Estes, em princípio, eram “hipostasiados, o que quer dizer projetados para fora do homem e transformados em entidades por si bastantes”, a exemplo da justiça, que não apenas representava – aliás ainda representa – o grande valor do mundo jurídico, mas era ao mesmo tempo uma divindade venerada pelos homens. [...] Todavia, o direito não poderia deixar-se ficar na especulação abstrata da justiça. Precisava ir mais além. E a questão que se colocava era a seguinte: como seria possível medir-se o valor do justo no plano da experiência concreta? Seria preciso uma régua, um peso, uma medida a ser utilizada para mensurar concretamente a justiça. O direito, então, tornou-se norma, que significa mesmo uma régua, uma medida, um padrão destinado a, na prática, pesar os atos humanos na balança da justiça.

Demonstra-se, pois que o Direito é, a um só tempo, fato valor e norma. Ainda, segundo o próprio Reale (1993, p. 67), “fatos, valores e normas se implicam e se exigem reciprocamente, o que, como veremos, se reflete também no momento em o jurisperito (advogado, juiz ou administrador) interpreta uma norma ou uma regra de direito (são expressões sinônimas) para dar-lhe aplicação”. Acrescenta o mestre:

Desde a sua origem, isto é, desde o aparecimento da norma jurídica, — que é síntese integrante de fatos ordenados segundo distintos valores, — até ao momento final de sua aplicação, o Direito se caracteriza por sua estrutura tridimensional, na qual fatos e valores se dialetizam, isto é, obedecem a um processo dinâmico que aos poucos iremos desvendando. Nós dizemos que esse processo do Direito obedece a uma forma especial de dialética que denominamos “dialética de implicação-polaridade”, que não se confunde com a dialética hegeliana ou marxista dos opostos. [...] Segundo a dialética de implicação-polaridade, aplicada à experiência jurídica, o fato e o valor nesta se correlacionam de tal modo que cada um deles se mantém irredutível ao outro (polaridade) mas se exigindo mutuamente (implicação) o que dá origem à estrutura normativa como momento de realização do Direito. Por isso é denominada também “dialética de complementaridade”.

Não se objetiva com essas linhas sobre a tridimensionalidade jurídica7 afirmar que Hesse desconsidera esses elementos essenciais do Direito, mas apenas demonstrar que não há Constituição eficaz e efetiva se não condiz com a realidade constitucional. Se os valores encampados na carta constitucional não são os mesmos exigidos pela vontade social, não há que se falar em eficácia constitucional.

A Constituição jurídica possui sua força normativa, mas esta está condicionada aos valores defendidos pela sociedade, apenas assim pode-se afirmar haver vontade de constituição, ou seja, o interesse em fazê-la cumprir. Portanto, a força normativa da constituição não está livre dos fatores reais de poder, porque é oriunda destes mesmos fatores reais de poder.

Entretanto, Hesse atenta para uma questão que entendemos fundamental ao afirmar que a Constituição deve ser concretizada na medida em que surgem condições históricas para a sua realização. Ao afirmar que a Constituição não se impõe, percebe que a única forma de fortalecer a normatividade e eficácia desta Constituição é lançá-la às condições fáticas e a sua valorização8.

Vimos acima, que o fato não se desprende dos valores, portanto, nossa posição é a de que as teses de Lassalle e Hesse são, em determinado aspecto, idênticas, e noutro, complementares, uma vez que Hesse percebeu uma forma de atualização da Constituição jurídica, de modo que esta não se distancie da real e efetiva, ao menos sob um plano de normatividade.

Em sua época, Lassalle não poderia conceber a visão de uma sociedade aberta de intérpretes constitucionais, coisa que não ocorreu a Hesse. Enquanto, Lassalle não apontou uma direção para solucionar os conflitos existentes entre a Constituição e a realidade constitucional, Hesse o vislumbrou, ante a realidade de seu tempo, uma saída, qual seja a interpretação:

[...] interpretação tem significado decisivo para a consolidação e preservação da força normativa da constituição. A interpretação constitucional está submetida ao princípio da ótima concretização da norma (Gebot optimaler Verwirklichung der Norm). Evidentemente, esse princípio não pode ser aplicado com base nos meios da subsunção lógica e pela construção conceitual. Se o direito e, sobretudo, a Constituição, têm a sua eficácia condicionada pelos fatos concretos da vida, não se afigura possível que a interpretação faça deles tábuas rasas. Ela há de contemplar essas condicionantes, correlacionando-as com as proposições normativas da Constituição. A interpretação adequada é aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido (Sinn) da proposição normativa das condições reais dominantes numa determinada situação.”

A interpretação constitucional emerge como um remédio a curar a chaga aberta pelo conflito entre realidade constitucional e a Constituição. É preciso notar que só assim pode-se manter a força normativa da carta constitucional, pois a interpretação promove a harmonização entre a Constituição folha de papel e a Constituição real e efetiva, tornando-as não em entidades distintas e independentes, mas apenas em uma Constituição, que é aceita, que é eficaz, porque corresponde aos fatores reais de poder na possível medida de sua efetivação.

Ante o exposto, quando nos perguntarem o que é uma Constituição, estaremos satisfeitos em repetir as belas palavras de Grau (2003, p. 115): “A Constituição é a ordem jurídica fundamental de uma sociedade em um determinado momento histórico e, como ela é um dinamismo, é contemporânea à realidade”. Portanto, se assim não o for, estejam certos de que não há Constituição.

Sobre os autores
Ivandro Menezes

É Professor Adjunto da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Campina Grande (PPGCS/UFCG). Mestre em Ciência da Informação pela Universidade Federal da Paraíba (PPGCI/UFPB). Especialista em Direito Constitucional pelo Centro Universitário de João Pessoa - Unipê. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).

Mêlissa Maria Veríssimo de Farias

Graduanda em Direito pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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