Capa da publicação Deus e o diabo na terra do sol: um filme sobre justiça social
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A busca por justiça na obra Deus e o diabo na terra do sol

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Resumo:


  • O filme "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1964), dirigido por Glauber Rocha, é um marco do Cinema Novo brasileiro e retrata a luta dos personagens Manoel e Rosa no sertão nordestino, abordando temas como banditismo, movimentos messiânicos e busca por justiça social.

  • A narrativa é impulsionada pela injustiça corretiva e contratual sofrida por Manoel, que o leva a um caminho de vingança e violência, cruzando com movimentos sociais como o messianismo e o cangaço, representações de Deus e o Diabo no contexto da época.

  • O filme explora a complexidade dos movimentos sociais populares no sertão brasileiro, refletindo sobre o papel do Estado, do Direito e da Justiça para as pessoas mais humildes e como elas enfrentam situações de injustiça social.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

BANDITISMO SOCIAL E MOVIMENTO MESSIÂNICO NO SERTÃO DO NORDESTE BRASILEIRO

Ao pensar na região Nordeste e nos problemas que ela enfrenta desde o início de sua história é possível encontrar diversos pontos de contraste que a localidade enfrentou através do tempo. O movimento messiânico e o cangaço, por exemplo, foram dois movimentos sociais de origem popular e grande importância para o sertanejo.

Esses movimentos enfrentaram forças governamentais e são representados como resultado de uma região vítima de desastres naturais, exploração de mão de obra e estereótipos. Foram movimentos sociais que tornaram o nordeste notório. (SILVA, 2014).


Formação social e política do sertão nordestino brasileiro

A expressão “nordeste” possui significados complexos que rememoram a uma série de imagens, retratando tanto as suas características geográficas, quanto culturais, sociais e econômicas.

A formação do que viria a ser o Nordeste está diretamente ligada à história da colonização com base na exploração. As imagens sociais do sertão nordestino estão sempre vinculadas ao coronelismo, ao movimento do cangaço e à persistência de formas arcaicas de relações sociais, situadas no universo do pré-capitalismo. (BERNARDES, 2007).

A ditadura civil-militar instaurada em 1964, obteve no Nordeste uma importante base de apoio, entre parte da classe política e a quase totalidade dos proprietários e empresários, de parte do clero e muito da classe média. Interesses de classes, agressivo anticomunismo e oportunismo deslavado juntaram-se para apreciar a “revolução redentora”. Foram feitas muitas promessas de desenvolvimento, fim da miséria e de um novo Nordeste.

Porém, durante o final dos anos 1960 e o início dos anos 1970, a região passou pelo auge de sua decadência, provocada por uma conjunção de fatores externos e internos, cuja causa remota ainda se vê no século anterior e se estenderam até a segunda metade do século XX. Viu-se o curso de um projeto de manutenção da região nordestina brasileira subdesenvolvida para que esta viesse a exportar mão de obra barata para outras regiões e assim sustentar a industrialização de outros estados. (BERNARDES, 2007).

Breves menções históricas ao processo de colonização do Nordeste brasileiro

O período inicial da história da região nordeste, após a chegada de europeus no Brasil, está diretamente ligado com o início da formação econômica do território nacional, pois a exploração de povos nativos do território começou por essa região localizada ao norte do país, banhada pelo Oceano Atlântico. Como normalmente ocorre com regiões que foram colonizadas por países europeus durante o período das Grandes Navegações, o nordeste do Brasil foi colonizado inicialmente pelo litoral. (GONÇALVES, ARAÚJO, 2015).

A região, logo de início, serviu de ponto de retirada de recursos naturais, como o pau-brasil. Foi importante também para o cultivo da cana-de-açúcar, que se tornou o produto mais importante do nordeste brasileiro por muito tempo.

Em meados do século XVI, época de povoamento e colonização efetiva do território brasileiro, as primeiras mudas de cana-de-açúcar, trazidas de Portugal, foram plantadas e cultivadas no espaço que hoje compõe parte do Nordeste, principalmente nas áreas litorâneas da região. Com base na mão de obra escrava (composta por africanos e índios nacionais), a exploração da cana-de-açúcar, que era praticamente voltada para abastecer o mercado europeu, foi, na época, a produção mais lucrativa da Coroa portuguesa, dando início às atividades exploratórias da região, com produções voltadas ao mercado externo. (GONÇALVES, ARAÚJO, 2015).

Com o clima do litoral perfeito para o cultivo de diversas plantações, durante muito tempo todo o restante do território nordestino, o interior do continente, continuou praticamente desabitado, passando a ser chamado de “deserto” pelos portugueses, ou simplesmente de “desertão”, o que acabou dando origem ao termo “sertão”, tão comum atualmente. (BERNARDES, 2007)


Banditismo Social

Ao se falar em banditismo, surge no imaginário a imagem do fora da lei em confronto com toda a sociedade, infrator de regras legais e morais, sujeito desprovido de um propósito superior, que no intuito de satisfazer apenas seus próprios interesses, age em detrimento até mesmo dos seus iguais. Via de regra, não se faz, portanto, qualquer distinção entre as diversas formas como esse fenômeno pode se manifestar. (LOPES, 2016).

Existe, no entanto, uma modalidade bastante específica de banditismo que chamou a atenção dos historiadores e sociólogos. Denominado, pioneiramente, por Eric Hobsbawm, de banditismo social. Esse fenômeno social, de abrangência universal, reúne pressupostos e características bastante peculiares capazes de permitir sua diferenciação do banditismo convencional, como observado na obra “Bandidos”:

“deixavam de ser vistos como simples bandidos e passavam a ser considerados bandidos “especiais” ou sociais. Por isso gozavam de proteção [...] à custa dos aldeões. [...] À parte essa situação especial, o banditismo, como fenômeno social na [...] sua história, está relacionado à classe, à riqueza e ao poder nas sociedades camponesas” (HOBSBAWM, 2010)

Segundo a teoria do banditismo social, o bandido comum não demonstra nenhum tipo de comprometimento com os valores e interesses da comunidade em que vive, importando, apenas a satisfação de suas inclinações pessoais, não existindo qualquer consciência de classe. Nos dizeres de Eric Hobsbawm, o submundo comum do crime: “é uma antissociedade, que existe pela inversão dos valores do mundo ‘decente’ – é um mundo, segundo sua própria definição, ‘transviado’ –, mas possui com este uma relação parasitária”. (HOBSBAWM, 2010).

O tema do banditismo social é bastante recorrente em sociedades com forte presença rural, como na América Latina. As literaturas nacionais dessas regiões apresentam referências aos tipos rurais e, entre estes, os camponeses revoltados, de forma individual ou coletiva. (FERRERAS, 2003).

A natureza de bandido social é realçada por qualidades de valentia, ousadia, força e aventureirismo. São justiceiros, repartidores públicos, cangaceiros, bandoleiros ou mesmo matadores de aluguel. Nesta mistura de valores e de códigos os contornos de uma determinada forma de justiça, uma “justiça paralela”, são traçados. O bandido pode ser o criminoso, como também o protetor, o justiceiro, o repartidor público, o herói. Não existe nestas circunstâncias um culpado a ser punido, mas sim, um meio social adverso, injusto, que propicia o surgimento desses bandidos-heróis. (BARREIRA, 2010).

A análise de Hobsbawm sobre o banditismo social é baseada na existência de três tipos de sujeitos: o bandido nobre, como Robin Hood; os guerrilheiros primitivos; e o vingador, como Lampião. Estas formas diferem segundo as regiões em que o banditismo social se desenvolveu. (FERRERAS, 2003).

O cangaço é considerado uma das formas de banditismo social típica. Fenômeno que ocorreu no Nordeste brasileiro entre os séculos XIX e XX, teve sua gênese em questões sociais e também fundiárias da região, caracterizando-se por atitudes e acontecimentos violentos de grupos ou mesmo de indivíduos isolados. (LIRA, SILVE, MARTINS, 2014).


O Cangaço

Não existe uma interpretação consensual sobre o movimento do cangaço, seja na visão popular ou dos especialistas no assunto. Sobre esse fenômeno social sempre predominou uma percepção dualista, para a qual, ou o cangaceiro era o herói vingador dos pobres do campo, ou, simplesmente, um bandido comum, motivado apenas por interesses pessoais. Na sociologia e historiografia, já se coletou farto material sobre o tema, surgindo inclusive teorias sobre esse fenômeno social. (LOPES, 2016).

Desde o século XVII existem relatos históricos das ações de grupos de bandoleiros, no litoral nordestino, causando medo e insegurança na população. Contudo, somente no século XIX, com seu florescimento no sertão, que tal forma de banditismo ganha relevo e singularidade. (LOPES, 2016).

O cangaço era constantemente visto como uma forma de revolta frente às mazelas que assolavam a região sertaneja, como a seca, a fome e a exploração do trabalhador. Com o passar dos anos as pesquisas sobre o tema indicaram que nas décadas de 1920 e 1930 as razões que levavam um indivíduo a tornar-se um cangaceiro se modificaram e um dos principais motivos seria a vingança pessoal. A característica de “lavar a honra” com o sangue do inimigo era bastante atribuída ao estereótipo sertanejo do início do século XX. (SILVA, 2014).

Os primeiros bandos de cangaceiros, portanto, eram formados por homens que observavam no sistema econômico da época uma opressão. Eram contra o Estado, saqueavam vilarejos e matavam pessoas vinculadas ao governo. De acordo com a análise de Pernambucano de Mello, existiam três modalidades de cangaço:

São em número de três essas formas básicas: o cangaço-meio de vida; o cangaço de vingança e o cangaço-refúgio, tais como as intitulamos no estudo citado. A primeira forma caracteriza-se por um sentido nitidamente existencial na atuação dos que lhe deram vida. Foi a modalidade profissional do cangaço, que teve em Lampião e Antônio Silvino os seus representantes máximos. O segundo tipo encontra no finalismo da ação guerreira de seu representante, voltada toda ela para o objetivo da vingança, o traço definidor mais forte. Foi o cangaço nobre, das gestas fascinantes de um Sinhô Pereira, um Jesuíno Brilhante ou um Luís Padre. Na terceira forma, o cangaço figura como última instância de salvação para homens perseguidos. Representava nada mais que um refúgio, um esconderijo, espécie de asilo nômade das caatingas, como dissemos no trabalho mencionado. (MELLO, 2011).

Ao contrário do movimento messiânico, o cangaço tinha no banditismo uma prática de transformação da realidade, uma vez que os alvos reais eram detentores do poder. Eles não se baseavam em uma ideologia utópica para acabar com o sofrimento do povo, mas sim no reconhecimento da estrutura de poder e das condições sociais a que o povo era submetido.

Quando se fala em cangaço, o nome mais conhecido é o de Lampião (Virgolino Ferreira da Silva). Lampião nasceu em 1898 em Vila Bela, no município de Serra Talhada em Pernambuco e morreu em Angicos no estado de Sergipe, em 1938. Como era comum ao se pensar no cangaço, era tido como bandido para alguns e justiceiro para outros. (LIRA, SILVE, MARTINS, 2014).

Um importante aspecto de Lampião a ser ressaltado ao longo de sua trajetória no cangaço foi sua sociabilidade. Lampião fez alianças com importantes figuras nordestinas, entre eles estava Padre Cícero (1844-1934), mais famoso líder religioso da região do cariri cearense. (SILVA, 2014). Outra marcantes característica da personalidade contraditória de Lampião era a sua religiosidade. Apesar de sua vida de cangaceiro e das influências de violência extrema do cangaço, Lampião nunca abandonou a sua fé e devoção em Deus, nos santos da igreja católica, e também no Padre Cícero Romão do Juazeiro do Norte, Ceará, que para ele, era um homem santo. (AZEVEDO, 2011).

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Lampião passou em torno de 20 anos no movimento. Transformou-se em símbolo de força e coragem do sertão nordestino, um dos mais famosos líderes do cangaço. Após sua morte e a de seu bando, o movimento não ficou sem líder por muito tempo, outro membro assumiu: Cristino Gomes da Silva Cleto (1907-1940), conhecido como Corisco. Corisco não consegue manter relações tão diplomáticas com os coronéis da região, sendo morto em 1940, simbolizando a extinção do movimento dos cangaceiros em definitivo. Nenhum líder teve sua trajetória tão retratada quanto Lampião. (SILVA, 2014).

A vida e morte de Lampião e sua ligação com seu bando são cobertas de mistérios, criando um verdadeiro mito. Não são poucas as obras que procuram associar Lampião a um projeto de mudança social ou apresentá-lo como um Messias. (AZEVEDO, 2011).

Movimento messiânico

Numa visão abrangente e genérica, messianismo e movimento messiânico são conceitos parecidos, mas que diferem em alguns pontos. Desta forma, o primeiro diz respeito à crença em um salvador, o próprio Deus ou seu emissário, e à expectativa de sua chegada, que porá fim à ordem presente, tida como iníqua ou opressiva, e instaurará uma nova era de virtude e justiça; o segundo refere-se à atuação coletiva (por parte de um povo em sua totalidade ou de um segmento de porte variável de uma sociedade qualquer) no sentido de concretizar a nova ordem ansiada, sob a condução de um líder de virtudes carismáticas. (NEGRÃO, 2001)

Glauber Rocha abordou bastante ao longo da obra sobre a discussão religiosa, o conflito entre o certo e o errado que se encontra presente em todo o enredo. Manoel durante toda história se questiona sobre a presença de Deus e se suas condutas são pecaminosas ou justas, revelando a difícil relação entre o homem e o divino.

Os movimentos messiânicos possuíam em comum a figura do líder carismático. Era esse líder responsável por incutir em seus seguidores ideias que fundamentalmente estavam ligadas às questões muito concretas do cotidiano do povo. A vontade coletiva de mudança de estrutura acabava por fazer essa população refletir, mesmo que inconscientemente, sobre o desejo de ser incluído politicamente em sua sociedade. Se não existia essa inclusão de forma diplomática e democrática, os líderes religiosos tomavam este papel e faziam ao seu modo sua política social. (SILVA, 2014).

Diversos acontecimentos históricos provam que o conceito de religiosidade popular não entra efetivamente em um contexto sem ter suas raízes em práticas de dominação hegemônica desenvolvidas por grupos sociais que desde a antiguidade são motivadas permanentemente por interesses de poder, políticos e econômicos. (AZEVEDO, 2011).

O filme aborda o lado negativo do movimento messiânico, por meio da série de exigências que o beato faz a Manuel, causando até mesmo a morte de um inocente. O movimento faz promessas utópicas de uma existência mais confortável para uma população carregada de sofrimentos que lhes são impostos e obriga-os a uma série de expiações tendo como finalidade chegar ao paraíso prometido, mas não realiza nada para combater a miséria que assola seus seguidores.

É notável na película o quanto a presença do beato Sebastião deixa a elite local transtornada. Embora a obra de Glauber Rocha possua diversas críticas ao movimento messiânico, seu poder é reconhecido ao longo do enredo, visto a quantidade de seguidores que se reúnem pela causa.


A BUSCA POR JUSTIÇA EM DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL

Deus e o Diabo na Terra do Sol reúne personagens reais e fictícios numa narrativa que tem o sertão nordestino como cenário. Coronelismo, religiosidade e cangaço são elementos centrais da produção, que ao mesmo tempo assume um caráter documental e crítico da realidade brasileira da época, refletindo sobre as particularidades de um universo habitado por santos e demônios, muito presente no imaginário popular sertanejo. (SOUZA, 2011).

A temática abordada no filme é eminentemente social e política. O homem sertanejo protagoniza uma complexa narrativa de encontros e rupturas. A história de Manuel e Rosa, contada de forma semelhante a uma epopeia, mostra o misticismo e a violência em doses intensificadas pelas figuras do beato Sebastião e do cangaceiro Corisco. (SOUZA, 2011).

Na transição do Império para a República Velha vários movimentos sociais se fizeram presentes na realidade do brasileiro. Ao passo que no sertão nordestino alguns trabalhadores rurais, exauridos da exploração do trabalho no campo, procuravam adentrar em movimentos messiânicos com comunidades que pregavam um regime de igualdade para todos; outros sertanejos entravam no cangaço como forma de fazer justiça com as próprias mãos diante das suas dificuldades e injustiças sofridas.

As constantes secas que aconteciam no sertão nordestino desanimavam o trabalhador rural e o impulsionavam a buscar meios de superação. Foi assim que muitos abraçaram a fé através da religião. Alguns decidiam entrar no cangaço como um clamor por justiça social, num país onde não havia políticas sociais para diminuir as desigualdades e os direitos eram efetivados apenas através da lei do mais forte.

Na obra de Rocha são tratadas as temáticas do sacrifício, do genocídio populacional, da devoção, do descontrole e desesperança social. Trazendo cenas de violência, traição e desamparo, o filme provoca o sentimento de justiça e consciência social. (REINA, PEREIRA, 2017).

A diversidade de condições em que os seres humanos se encontram na sociedade traz à tona, dentre outras, a questão da justiça social, fundamentada nas ideias de igualdade e solidariedade, que começou a ser desenvolvida ainda no século XIX. Nessa época, a ideia de justiça social estava ligada à busca de um equilíbrio, de modo que todas as pessoas tivessem os mesmos direitos. Sendo assim, a noção moderna de justiça social passou a ser ligada à busca de uma sociedade igualitária, ideia amparada pela Constituição Federal brasileira de 1988.

A violência abordada na obra pode ser compreendida como um grito de justiça social diante de uma concentração de riqueza, ausência do Estado de direito e do controle exercido pela política coronelística. Não existiam direitos sociais e a lei do mais forte era a prevalente, de maneira que a justiça era realizada através da coragem das pessoas e de suas vinganças privadas.

A negação de justiça corretiva como elemento da narrativa

Os elementos narrativos centrais do filme se iniciam com a representação de uma disputa contratual instaurada entre os personagens Manuel e Coronel Moraes. Como se disse na sinopse da obra, acima, Manuel cuidava do rebanho do Coronel como meeiro, tendo direito a receber metade das vacas a título de pagamento. Um infortúnio levou à morte exatamente metade dos animais, motivando o Coronel, num artifício para evitar prejuízo, a estabelecer que o gado morto corresponderia ao que Manuel teria direito como pagamento.

Foi a negação de justiça contratual em favor de Manuel que o levou à revolta contra o Coronel Moraes. Sentindo-se aviltando e injustiçado, tomado pela fúria das agressões injustas, físicas, inclusivamente, da parte do Coronel, Manuel revidou e apunhalou o seu agressor. Esse acontecimento serviu de causa para todo o movimento narrativo apresentado na obra, uma vez que foi a fuga dos homens do Coronel assassinado que levou Manuel e Rosa a suas desventuras.

Pode-se analisar a narrativa à luz do pensamento aristotélico a respeito da justiça, notadamente o exposto em Ética a Nicômaco, no Livro V.

Nessa obra Aristóteles expõe a Justiça como a virtude mais elevada, que sintetiza todas as outras. Diz O Filósofo: “because it is the use of complete virtue; it is complete because he who possesses it is able to use virtue also in relation to another, and not only as regards himself.” (ARISTÓTELES, 2011, p. 90).1

Aristóteles sistematiza suas ideias de Justiça apresentando duas acepções para esse conceito: justiça geral e justiça particular. A justiça geral diz respeito ao respeito dos indivíduos às leis da pólis, ligando-se ao elemento de sociabilidade inerente à própria natureza do homem como animal político (BITTAR, 2003)2. É dito em Ética a Nicômaco (1130b): “the law commands us to live in accord with each virtue and forbids us to live in accord with each corruption. Things productive ofthe whole ofvirtue are all those legislative acts pertaining to the education to the common [good]” (ARISTÓTELES, 2011, p. 92).

Já a outra acepção da justiça vista em Aristóteles é aquela ligada às relações particulares entre os indivíduos, e não entre os indivíduos e a comunidade política (pelo menos, não diretamente). Trata-se da acepção da justiça como justiça particular. Esse tipo de justiça, por sua vez, divide-se em justiça distributiva e justiça corretiva. (BITTAR, 2003).

A justiça distributiva liga-se a distribuição de honras, dinheiro e outros bens entre aqueles que fazem parte da sociedade numa relação tetralógica: os sujeitos A e B recebem os bens C e D guardando uma proporção entre a distribuição desses bens. Essa proporção, chamada de geométrica (1131b), leva em consideração os méritos dos indivíduos na determinação dos bens que cada indivíduo receberá (BITTAR, 2003).

A justiça corretiva, é reconhecida como aquela aplicável às transações entre pessoas, sejam voluntárias, sejam involuntárias. Aristóteles relaciona essa forma de justiça a uma espécie de igualdade, manifestada numa proporção aritmética: “The just in transactions is a certain equality, and the unjust, a certain inequality, yet not in accord with the proportion just indicated but in accord with an arithmetic one.” (ARISTÓTELES, 2011, p. 97).

A ideia de proporção aritmética se liga à ideia de igualdade. Nas transações, onde são indiferentes as características do homem lesado ou do que lesiona (ARISTÓTELES, 2011), leva-se em conta, para efetivar a justiça, o elemento da igualdade entre perdas e ganhos. É justiça, portanto, justiça essa efetivada pelos juízes, se necessário, que as perdas e ganhos dos envolvidos em uma transação estejam igualados com precisão matemático-aritmética.

Em Aristóteles (2011, p. 98; 1131b-1132b), vê-se, sobre ganhos e perdas:

For when, of two equal things, a part is subtracted from one and added to the other, then the latter exceeds by twice the part subtracted from; for if the one is subtracted from, but the other not added to, then the latter exceeds only by one. Therefore, the latter exceeds the middle term by one, and the middle term exceeds the one subtracted from by one. By this, then, we will know both what we ought to subtract from the person who has the greater share and what we ought to add to him who has the lesser: we ought to add that which exceeds the middle term to the person with the lesser, and to subtract from the one who has the greatest that by which the middle term is exceeded.

Todos os conflitos de Deus e o Diabo na Terra do Sol se dão porque a proporção aritmética na transação entre Manuel e o Coronel Moraes, vista por Aristóteles como imperativo de justiça particular e, portanto, como imperativo de Justiça, foi violada. Em verdadeiro ato de injustiça, o Coronel Moraes exige que lhe seja entregue todo o gado remanescente, não aceitando dividir os prejuízos com Manuel. É o sentimento de injustiça que leva Manuel a brigar com o Coronel, em disputa corporal que acaba com a morte deste último.

A se aplicar o pensamento aristotélico de justiça corretiva, as perdas no rebanho deveriam ser experimentadas por ambos, de modo que o gado restante deveria ser partilhado, igualmente, em proporção aritmética, entre Manuel e o Coronel. Isso satisfaria a noção de justiça como medianeira, proposta por Aristóteles (BITTAR, 2003).

Foi a falta de justiça corretiva que levou Manuel a praticar o crime que movimenta todo seu processo de fuga. O filme em evidência nesse estudo, que denuncia fortemente as injustiças sociais, também tem na injustiça contratual um elemento central, posto que é o estopim para toda a quebra da harmonia tratada na obra.

A busca por justiça social no movimento messiânico

Conceituam-se como movimentos messiânicos, milenaristas ou messiânico-milenaristas desde controvérsias pacíficas e simples relacionadas a elementos da vida social, até rebeldias armadas, ambos os tipos associados ao universo ideológico religioso, capazes de, concomitantemente, identificar as causas dos problemas e angustias e indicar caminhos para sua superação, desde os mais racionais até os mais fantasiosos. (NEGRÃO, 2001).

O enaltecimento a Cristo como ser espiritual, sofredor, em constante luta pela justiça social e pela redenção dos homens, e que por causa desses ideais teria morrido, serviu de incentivo para o surgimento de movimentos messiânicos que foram difundidos em diversos continentes. Partindo de diferentes realidades, os movimentos messiânicos tinham como característica comum a reunião de homens, mulheres, jovens e crianças excluídas socialmente e sustentadas espiritualmente pela fé, professada por beatos, considerados homens santos, que propagavam a chegada de novos tempos de justiça para todos. A redenção seria assegurada com a vinda próxima do Salvador - o Messias. (SOUSA, CARVALHO, 2013).

Os movimentos messiânicos, mesmo com suas características próprias, possuem em comum a negação da opressão como uma das formas de resistência dos oprimidos em relação as estruturas de dominação. Os sertanejos envolvidos com esses movimentos eram líderes reformistas que participavam de lutas políticas, porém sempre aliados a mandatários regionais ou locais.

Tais movimentos não são anormais e nem sequer considerados uma patologia social, como foram vistos durante muito tempo, mas sim respostas de sociedades tradicionais em momentos de crise, de anomia social ou de mudança na sua estrutura interna. O apelo a valores religiosos não seria uma atitude alienada, mas a expressão da revolta por meio do único caminho naquele contexto sociocultural. (NEGRÃO, 2001).

Os movimentos sociais e religiosos que surgiram no sertão nordestino brasileiro foi a síntese das lutas campesinas. Foram lutas populares de resistência a uma condição de opressão e de miséria que constituía o cenário do sertão.

A busca por justiça social na luta pelo cangaço

A mitificação dos cangaceiros passou por diversos usos dentro da história brasileira. O caráter insurrecional do movimento e o modo como foi vinculado à luta da população pobre contra os grandes proprietários de terra do nordeste brasileiro foram muito explorados para legitimação de discursos e autopromoção dos indivíduos. (CARNEIRO, 2010).

De acordo com relatos passados ao longo do tempo, o cangaço foi motivado por conflitos familiares, desigualdade social, injustiças e ausência total de assistência do Estado, tornando-se uma questão social.

Movimento que nasceu desprovido de qualquer coesão, intuito de mudança social classista ou ideário político, o cangaço transformou-se em uma das principais referências às lutas proletárias. A transfiguração do bandoleirismo no sertão ultrapassa o social e chega até o político. (CARNEIRO, 2010).

A rejeição por camponeses, a fome, os males do monopólio da terra e a vigência da grande propriedade territorial capitalista faziam parte do cotidiano sertanejo e serviram de base para a formação de justiceiros em algumas regiões do Brasil. Na busca por sobreviver ao panorama socioeconômico da época, muitas pessoas utilizavam-se de práticas criminosas como saquear, sequestrar e assassinar pessoas ligadas ao poder, a fim de fazer justiça com as próprias mãos frente às desigualdades sociais que castigavam a população rural, especificamente a nordestina, tornando-se bandidos.

A palavra bandido deriva do italiano bandito, que significa homem banido. Banidos da sociedade elitista que crescia no período, diversos homens buscavam no banditismo social uma resposta para a injustiça social da época. A maioria dessas práticas ilícitas deu-se em áreas rurais do Nordeste brasileiro, com disputas por terra e combate às imposições do coronelismo latifundiário. (SANTOS, 2015).

O banditismo social fundamenta-se no estudo de três tipos de bandido: o bandido nobre, o guerrilheiro e o vingador. O bandido nobre possui idealismo e consciência social, entra para a vida do crime como vítima da sociedade em que vive, sendo reconhecido como agente da justiça. O guerrilheiro atua em grandes grupos, contando com auxílio externo e são organizados ideologicamente. O vingador seria um bandido nobre com sede de justiça, incorporando a postura de um líder que mata para satisfazer sua vontade. O cangaceiro é considerado um bandido vingador. (HOBSBAWM, 2010).

O cangaço foi uma forma dos sertanejos não permanecerem estagnados diante da dominação latifundiária, pois se a terra é para ele inacessível, ou quando possui uma nesga de chão vê-se importunado pelo domínio do latifundiário, monopolizador de todos os privilégios e ditador das piores torpezas, a única solução viável seria rebelar-se, pegando em armas, sem objetivos claros, apenas para sobreviver no meio que é seu. (FACÓ, 1991).

O movimento representa uma dualidade: boas ações e crueldade. Representa um duplo estatuto, tanto para atender ao seu grupo ou quanto aos interesses de outros grupos sociais, ora sendo o das classes menos favorecidas ou mesmo das mais favorecidas. Nesse sentido Hobsbawm ressalta que:

“A moderação ao matar e agir com violência faz parte da imagem do bandido social. Não há razão para esperarmos, mais do que se espera do cidadão comum, que, como grupo, ajam de conformidade com padrões morais que eles próprios aceitam e que seu público espera deles.” (HOBSBAWM, 2010)

Bandido errante, Lampião foi e ainda é para muitos um herói ambíguo que em suas jornadas pelo sertão adentro, ao enfrentar a volante, agia em nome de um povo marcado pelos crimes que também eram cometidos por aqueles que deveriam assegurar a proteção e a ordem social. (SANTOS, 2015).

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Sobre os autores
Lissa Furtado Viana

Professora do curso de direito da Faculdade Anhanguera - Campus Juazeiro do Norte-CE. Advogada OAB/CE n46.143. Mestre em Direito Constitucional e Teoria Política pela UNIFOR (Conceito: CAPES 6). Especialista em Direito Constitucional (URCA) e especialista em Ciências Criminais (CERS). Bacharela em Direito pela Universidade Regional do Cariri (URCA). Pesquisa nos temas: direitos humanos, feminismo, tráfico de pessoas e migração, trabalho análogo à escravo e tecnologia aplicada ao direito; com artigos e capítulos de livros publicados.

Luan Victor de Souza Luna

Bacharel em Direito (UNIFap). Mestre em Direito Privado (PUC-MG). Membro da Associação Brasileira de Filosofia do Direito (ABRAFI) e da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC). Professor e advogado militante.︎

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIANA, Lissa Furtado ; LUNA, Luan Victor Souza. A busca por justiça na obra Deus e o diabo na terra do sol. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7471, 15 dez. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/107647. Acesso em: 26 dez. 2024.

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