INSUFICIÊNCIA DAS NORMAS PROCESSUAIS ADMINISTRATIVAS NO DIREITO BRASILEIRO. A CONTRIBUIÇÃO DO DIREITO ESPANHOL NA FORMAÇÃO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO.
Autor: Eduardo Calmon de Almeida Cézar1
Sumário: 1. Introdução; 2. Déficit de garantias constitucionais nas espécies do processo administrativo; 3. Das espécies dos processos administrativos em perspectiva constitucional; 4. Do processo administrativo disciplinar e suas espécies; 4.1. do processo disciplinar militar; 4.2 Do processo disciplinar da administração pública; 4.3 Do processo disciplinar do magistrado no conselho nacional de justiça; 4.4 Do processo administrativo fiscal; 4.5 Do processo administrativo do tribunal de contas; 4.6 Do processo administrativo de restrição pública à propriedade privada; 5. A contribuição do direito espanhol na formação do processo administrativo brasileiro; 6. Conclusão; 7. Referências bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
Diferentemente do processo civil ou penal, o processo administrativo se revela, muito mais, de âmbito regional ou local, haja vista as estruturantes constitucionais de competência para sua regulamentação no universo nacional.
A insuficiência das normas processuais administrativas de aplicabilidade uniforme, em que pese à limitação da competência legislativa de cada ente federativo, ainda traz limites insuperáveis à codificação do direito administrativo disciplinar, seguindo-se, apenas, à metade do caminho já percorrido pelo processo civil e penal.
A evolução da ciência processual administrativa, para ganhar status constitucional, passou por diversos períodos e consequências.
A propósito, em 1862, Visconde de Uruguai já externava a preocupação na necessidade de uma organização administrativa contenciosa que outorgasse garantias, ou seja, reconhecesse um complexo de formalidades as quais seriam imprescindíveis para submeter casos postos ao império ao julgamento reunindo todos os elementos importantes para o esclarecimento da verdade.2
Depois de 1889, o processo administrativo no Brasil ficou sem história, posto que no regime da Constituição de 1824 administrar não era só fazer executar as leis e os decretos, mas também resolver as dificuldades da execução e julgar as reclamações que a execução provocara, porque o poder de administrar, considerado no sentido mais amplo, importa logicamente, o poder de julgar administrativamente, isto é, jurisdição ou como se chamava na época justiça administrativa3.
A lição de Pereira do Rego perdeu-se no tempo desmerecendo depois o processo e a instrução processual, inclusive o respeito pelo complexo daquelas formalidades essenciais que, reunindo todos os esclarecimentos e provas necessárias para o descobrimento da verdade se tornam imprescindíveis a qualquer sistema jurídico consolidado.
Com o advento da necessidade de se conferir maior proteção ao administrativo, com o surgimento da República, emerge da doutrina de Manoel de Oliveira Franco Sobrinho4 um caminho para se reconhecer a imprescindibilidade do regular processamento das demandas litigiosas da Administração Pública para com o administrado a fim de assegurar o exercício de algumas garantias constitucionais já outorgadas ao processo civil e penal.
Paralelamente ao desenvolvimento constitucional da teoria geral do processo, o processo administrativo ganha corpo, dia a dia, após o enfrentamento de questões tributárias, disciplinares, militares, de contas, ambientais as quais exigia, da Administração Pública, preocupação com a manutenção dos seus julgados. A rigor, na época do império, as questões que lhe eram submetidas cabia recurso administrativo apenas ao Conselho de Estado que funcionava como uma corte administrativa definitiva de segundo grau.
A partir do reconhecimento da unicidade da jurisdição foi outorgado ao Poder Judiciário a característica típica de seus julgados, isto é, a definitividade, de modo que as questões submetidas à esfera exclusivamente administrativa poderiam, ainda, serem revistas sob o prisma da legalidade por aquele poder.
Muito embora a processualidade plena no Direito Administrativo foi iniciada pela Constituição Republicada de 1988, no art. 5º, inc. LV, é certo que a Constituição anterior de 1967 adotava o entendimento de que havia possibilidade absoluta de se impor sanções administrativas sem dilações sobre a justiça destas decisões e garantias dos administrados.
O código de processo penal e de processo civil, publicados segundo a Constituição de 1967, tinham traços marcantes do autoritarismo da época grafados com mínimas garantias constitucionais aos acusados, o que, por sua vez, influenciaram significativamente o processo administrativo tanto foi que o instituto da verdade sabida era aplicado rotineiramente no processo administrativo disciplinar com total desapego à simetria processual civil e penal.
Com a Constituição Federal de 1988 a ampla defesa dos acusados em geral foi incisivamente consagrada, diversamente da forma como estava prevista na Constituição Federal de 1967 que, de forma mais branda, era disposta no art. 150, §15º. Essa novel disposição, alavancou a simetria processual entre a seara administrativa e a seara penal, já que ambas leis materiais têm conteúdos análogos e a mesma natureza sancionatória.
Desse modo a simetria processual advinda com a Constituição Federal de 1988 a qual não trouxe distinções às espécies e as instâncias de julgamento autorizou a composição simétrica entre o processo penal e o processo administrativo, sem que este último, por insuficiência legislativa, não pudesse dar plenitude às garantias constitucionais que se consubstanciaram no devido processo legal.
O que se busca não é igualar o processo penal e civil com o processo administrativo, mas assegurar as mesmas garantias constitucionais aos administrados porquanto ao ganhar status constitucional o processo, com um todo, passou a ser regido por novas bases repletas de cientificidade, de sorte que sua disciplina deixa de ser simplista, reducionista, para apresentar-se no mesmo nível dos demais ramos do direito.
Essa nova concepção constitucionalizada do processo administrativo, não obstante a insuficiência de normas a respeito, deve se valer da simetria constitucional processual como princípio maior e técnica de suplementação das carências as quais costumavam inviabilizar o exercício do administrado.
Portanto a grande contribuição da ciência processo, como nascedouro da teoria geral do processo, foi transcender ao direito administrativo todos os avanços da processualidade consagrada incorporada ao sistema constitucional de garantias às partes fortalecendo mais um braço de jurisdição do Estado a fim de que ganhe corpo as decisões administrativas e se tornem, a curto prazo, cada vez menos duplicadas na esfera judicial devido à observância do próprio Estado as regras constitucionais materializando, por fim, o Estado Democrático de Direito.
2. DÉFICIT DE GARANTIAS CONSTITUCIONAIS NAS ESPÉCIES DO PROCESSO ADMINISTRATIVO
O que se entende por déficit das garantias constitucionais?
Déficit se traduz na falta, na deficiência, na ineficiência de se aplicar algo que se pretendeu propor. Somente se reconhece déficit de algo quando se busca, em sua norma matriz, a sua implementação por completo e, diante de algum fato externo ou até mesmo interno, como a inefetividade, não se consegue alcançar o resultado desejado.
A discussão sobre o déficit de garantias em processo administrativo busca reconhecer que, embora elas estejam abstratamente descritas no texto normativo constitucional, há algo, até mesmo maturação do intérprete, em aplicá-las outorgando ao seu destinatário menos do que constitucionalmente é permitido.
É de se observar que, intimamente ligada à discricionariedade, está o elemento interpretativo da garantia processual constitucional criada pela Carta Magna de 1988.
O juízo interpretativo, portanto, discricionário, acaba revelando a conveniência e a oportunidade da decisão adotada no processo administrativo constitucional para aplicar ou negar a aplicação de certa regra interpretativa a fim de permitir ao administrador alcançar o seu ínterim.
Esse movimento acaba comprometendo a própria democracia, porque não basta a Constituição ser fruto da vontade popular, mas deve atingir seu verdadeiro escopo quando aplicada.
O não reconhecimento da aplicabilidade imediata dos princípios constitucionais que regem o processo judicial ao processo administrativo implica, portanto, desrespeito aos ideais democráticos haja vista que o conteúdo constitucional foi fruto da vontade popular.
Dentre os contrários a este equilíbrio processual judicial e administrativo na dinâmica das relações da administração com os particulares, está o argumento de que faltaria efetividade às decisões administrativas porque, além da falta de capacitação dos intérpretes, a deficiência do Estado brasileiro não permitiria assegurar alguns princípios aplicáveis à esfera processual judicial à esfera processual administrativa.
Em que pese tal argumentação, a deficiência do Estado brasileiro não pode ser condão suficiente para impedir o respeito à Constituição Federal, muito menos a falta de capacidade técnica dos administradores na condução do processo administrativo pode ser impeditivo à implementação do Estado Democrático de Direito.
Pensar o contrário é autorizar o sobrestamento das garantias em prol de um alegado bem maior, que autorizaria, arbitrariamente, a ultrapassagem dos próprios limites constitucionais ao processo.
3. DAS ESPÉCIES DOS PROCESSOS ADMINISTRATIVOS EM PERSPECTIVA CONSTITUCIONAL
O processo administrativo, como já exposto, é a forma pela qual a Administração Pública registra seus atos, controla os agentes públicos, decide as controvérsias com os administrados e servidores públicos e empreende a atividade administrativa persecutória do interesse público.
Ocorre, entretanto, que a doutrina diverge a respeito de como os processos administrativos poderão ser classificados para fim de estudo doutrinário.
Dentre os autores brasileiros, José Cretella Júnior estabeleceu uma classificação própria por meio de critérios para distingui-los segundo diversos elementos, dentre eles, o raio de ação, o objeto, a juridicidade, o despacho, o desfecho, a forma e o âmbito de atuação5.
Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a classificação tradicional recai no elemento juridicidade pelo qual é possível questionar duas espécies de processo administrativo: o gracioso e o contencioso6. No primeiro, os órgãos da Administração Pública ficam a cargo de atuarem de modo a exercer, atipicamente, a função de julgar os processos que lhe são submetidos e a proferir suas decisões finais, sem esvair a possibilidade de se buscar o esgotamento por meio da jurisdição definitiva judicial.
O segundo, por outro lado, desenvolve-se junto a um órgão independente e imparcial com competência para proferir decisões com eficácia de coisa julgada atribuindo-lhe, na esfera administrativa, a característica da definitividade.
Este, a propósito, é típico dos países que adotaram o Contencioso Administrativo como a França e parcialmente a Itália, sendo, entretanto, rechaçado pela constituinte brasileira de 1988.
Entre os processos que envolvem conflitos de interesse subdividiu-os em processos administrativos de gestão (os quais envolvem as matérias de licitação, concursos públicos, concursos de acesso ou promoção), de outorga (abrange licenciamento de atividades, registros de marcas e patentes ou isenções), de verificação ou determinação (nos quais estão inseridos a prestação de contas, o lançamento tributário e a consulta fiscal) e, por fim, os de revisão (em que se situam os recursos e as reclamações).
Já os processos sancionadores ou punitivos foram subdivididos em internos, (resultantes de processos administrativos disciplinares) e externos (decorrentes de sanções aplicadas em razão do exercício do poder de polícia da administração fiscal).
Por fim, não poderia faltar a visão do doutrinador tradicional do direito administrativo brasileiro, Hely Lopes Meirelles, que desenhou a classificação do processo administrativo em quatro espécies: de expediente, de outorga, de controle ou punitivo.
Em que pese a existência de uma gama extensa classificatória do processo administrativo, a importância do tema para a análise da efetividade das garantias constitucionais se limita a algumas de suas espécies, quanto à matéria envolvida, porque é possível constatar o descumprimento do legislador infraconstitucional às regras republicanas e democráticas trazidas com a Constituição Federal de 1988.
É nessa pedra de toque que será analisada, sob o prisma de cada um dos processos administrativos, a observância das garantias constitucionais necessárias para resguardar o interesse do administrado no exercício do seu direito de defesa.
4. DO PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR E SUAS ESPÉCIES
O processo administrativo disciplinar é uma modalidade de processo administrativo sancionatório pelo qual se busca apurar a responsabilidade funcional do agente público decorrente de uma falta disciplinar e aplicar a penalidade razoável e proporcional ao delito administrativo praticado.
O processo disciplinar tem fundamento no poder geral de supremacia que o Estado detém frente aos agentes públicos que cometem irregularidades no exercício ou em razão da função. Decorre logicamente do poder hierárquico o qual permite à Administração Pública coordenar e controlar as atividades dos seus agentes de modo a viabilizar entre eles a existência de uma relação de subordinação.
4.1. DO PROCESSO DISCIPLINAR MILITAR
A função especializada exercida pela polícia reclama a existência de regulamentos que norteiem a conduta dos seus subordinados disciplinando as ações de seus integrantes.
Nesse sentido, as instituições responsáveis pela manutenção da paz, pela preservação da integridade física e patrimonial do cidadão e do Estado, composta de policiais, civis ou militares (militares propriamente ditos e corpo de bombeiros militares), instituíram, no decorrer dos anos constitucionalistas, normas regulamentares próprias para reger o procedimento apuratório de atos infracionais cometidos no exercício ou não da função pública.
Nesse sentido, Alexandre de Moraes descreve:
O devido processo legal garante no âmbito do processo sancionatório – seja penal, administrativo ou eleitoral – a vinculação estatal a “padrões normativos, que, consagrados pela Constituição e pelas leis, traduzem limitações significativas ao poder do Estado”. Esses padrões são consagradores de verdadeiro “círculo de proteção em torno da pessoa do réu – que jamais se presume culpado –, até que sobrevenha irrecorrível sentença que, condicionada por parâmetros ético-jurídicos, impõe ao órgão acusador o ônus integral da prova, ao mesmo tempo em que faculta ao acusado que jamais necessita demonstrar a sua inocência o direito de defender‑se e de questionar, criticamente, sob a égide do contraditório, todos os elementos probatórios produzidos”, como “fórmula de salvaguarda da liberdade individual” (HC 73.338/RJ)7.
Dessa lição se extrai que é de rigor a observância da regra insculpida no artigo 5º, §1º, da Constituição Federal de 1988, pela qual determina que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, pois não contemplara o legislador constituinte nenhuma condição ou restrição à sua eficácia imediata.
Com relação aos processos administrativos disciplinares militares demissionários no âmbito estadual ainda haveria um complicador na proporção em que competiria exclusivamente ao Poder Judiciário, por meio do tribunal competente e não à autoridade administrativa, a aplicação da pena de perda da patente dos oficiais ou da graduação das praças.
Nesse sentido, a Constituição Federal no artigo 125, §4º, versa:
Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças.
4.2 DO PROCESSO DISCIPLINAR DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
O processo disciplinar da Administração Pública é um processo punitivo pelo qual a Administração apura as infrações funcionais e aplica as penalidades cabíveis aos servidores públicos.
Este processo disciplinar tem fundamento na supremacia do Poder Público no sentido de, com base no poder disciplinar, punir os infratores adstritos ao seu campo de competência, com lastro no poder hierárquico compreendido na capacidade que o Estado tem para distribuir, partilhar a competência de seus agentes de forma escalonada a fim de permitir a existência entre eles de uma relação de subordinação.
Funda, também, no princípio da responsabilidade pelo qual, embora o ato seja atribuído à pessoa jurídica a qual está vinculado, a imputação dos efeitos administrativos, quando práticos em figura dolosa ou culposa, deve ser atribuído exclusivamente ao seu agente, ora praticante.
A competência para disciplinar as normas relativas ao procedimento apuratório, fiscalizatório e punitivo é concorrente cabendo, portanto, a todos os entes federativos adotarem procedimentos legais específicos por iniciativa do seu próprio ente político. Veja-se, por exemplo, que para os servidores civis da União há a Lei nº9.784/1999, enquanto para os Estados cada um adotará, no exercício da sua função legislativa, procedimentos próprios como é o caso de São Paulo (Lei nº10.177, de 30/12/98), Bahia (Lei nº12.209, de 20/4/2011), Mato Grosso (Lei n°7.692, de 1º/7/2002), Rio Grande do Sul (Lei nº6.537, de 27/2/1973) e Rio de Janeiro (Lei nº5.427, de 1º/4/2009) entre outros Estados que assim também procederam.
No que toca ao processo disciplinar, por sua estreiteza com o processo penal, deve-se aplicar ostensivamente os princípios do processo penal para a condução ou solução dos conflitos atinentes àquele processo.
Sob esta ótica, destacam-se os princípios da isonomia, devido processo legal, contraditório e ampla defesa, estado de inocência, inadmissibilidade de provas ilícitas, publicidade dos atos processuais, motivação e fundamentação das decisões e garantia de acesso ao Judiciário.
4.3 DO PROCESSO DISCIPLINAR DO MAGISTRADO NO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA
A Emenda Constitucional nº45/2004 acrescentou ao artigo 92 da Constituição Federal o inciso I-A, incluindo na sua redação entre os órgãos do Poder Judiciário o Conselho Nacional de Justiça, logo após o Supremo Tribunal Federal.
O Conselho Nacional de Justiça é uma instituição pública, eminentemente administrativa, incumbida de aperfeiçoar o trabalho do sistema judiciário brasileiro, principalmente no que diz respeito ao controle e à transparência administrativa e processual.
Criado em 31/12/2004 e instalado em 14/6/2005, com sede em Brasília e atuação em todo o território nacional, lhe compete, entre outras funções, receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializados, sem prejuízo da competência disciplinar e correcional dos tribunais, podendo avocar processos disciplinares em curso e determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço público e aplicar outras sanções administrativas, assegurada a ampla defesa.
Como se verifica, cometeu, portanto, o Conselho Nacional de Justiça à ampla atividade correicional. Com base no seu regimento interno, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução nº135/2011 a qual dispôs sobre a uniformização de normas relativas ao procedimento administrativo disciplinar aplicável aos magistrados, acerca do rito e das penalidades.
4.4 DO PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL
O processo administrativo fiscal é espécie de gênero do processo administrativo e desempenha a sua instrução com o objetivo de determinar, exigir ou dispensar o crédito fiscal, indicar a interpretação sobre a aplicação de normas tributárias em um caso concreto específico (o que se dá por meio da consulta), aplicar penalidades ao contribuinte ou tão-só conduzir atos complementares expedidos pelas autoridades tributárias (como acontece com a notificação ou o cadastramento do contribuinte).
A Constituição Federal, em seu artigo 24, XI, delimitou a competência concorrente aos entes federados para legislarem sobre procedimentos em matéria processual de modo que no âmbito federal a norma reguladora do processo fiscal está disposta no Decreto nº70.235, de 6/3/1972 que, com força de lei, foi alterado pelas Leis nº9.430/1996 e nº11.941/2009, bem como no Decreto nº7.573, de 29/9/2011 que, praticamente reproduziu o texto do Decreto nº70.235/1972 sem, contudo, revogá-lo promovendo uma verdadeira compilação do processo administrativo fiscal federal.
No Estado de São Paulo, por exemplo, há a Lei nº13.457/2009 que disciplina o processo administrativo fiscal, oportunidade em que os demais entes federativos, ao mesmo passo, poderão com base na sua competência concorrente editar legislações a respeito para disciplinarem as suas próprias peculiaridades.
4.5 DO PROCESSO ADMINISTRATIVO DO TRIBUNAL DE CONTAS
Inicialmente a ideia de formação de um Tribunal de Contas no Brasil surgiu em meados de 1826 quando Felisberto Caldeira Brant, Visconde de Barbacena e José Inácio Borges apresentaram um projeto criando o Tribunal de Revisão de Contas.8 A despeito de posições divergentes como a de Manuel Jacinto Nogueira da Gama, o qual acreditava que a criação de um Tribunal de Contas no Brasil apenas importaria o aumento dos gastos públicos com o funcionamento do órgão, melhor vez foi a do jurista Rui Barbosa, na época Ministro da Fazenda, que emplacou por meio do Decreto-lei nº966-A a criação do Tribunal.
Entretanto, foi somente com a Constituição de 1891, no seu artigo 89, que se deu força constitucional ao Tribunal de Contas estabelecendo que seria responsável para liquidar as contas da receita e despesas, além de verificar a sua legalidade, antes de serem prestadas ao Congresso Nacional.
Por sua vez, a Constituição de 1934, em contrapartida, outorgou ao Tribunal de Contas uma natureza híbrida de órgão do Legislativo e do Judiciário, ao dispor, em seu artigo 99, que deveria ser mantido diretamente, ou por delegações organizadas de acordo com a Lei, o qual reuniriam as funções de execução orçamentária e julgamento das contas dos responsáveis por dinheiros e bens públicos.
A Constituição de 1937 não trouxe nenhum avanço institucional ao Tribunal de Contas, o qual, somente pela Constituição de 1946 foi alçado como órgão auxiliar do Poder Legislativo, na seção relativa ao orçamento, ficando, destarte, responsável pelo julgamento das contas e legalidade dos contratos e das aposentadorias, reformas e pensões. Foi esta, a propósito, a tendência seguida pela Constituição de 1967 que o colocou no capítulo referente ao Poder Legislativo, na seção referente à Fiscalização Financeira e Orçamentária, posição mantida pela atual Constituição de 1988.
Nesse sentido não se trata de julgar o responsável pelas contas, mas, diversamente, de fiscalizar verificando se as contas apresentadas estão de acordo com as normas legais e regulamentares da matéria debatida.
4.6 DO PROCESSO ADMINISTRATIVO DE RESTRIÇÃO PÚBLICA À PROPRIEDADE PRIVADA
O processo administrativo de restrição pública à propriedade não envolve apenas as propriedades privadas, mas, ao contrário do que comumente ocorre, abrange também propriedades públicas as quais são passíveis de restrição de domínio quando outros interesses públicos primários se sobreponham àqueles.
Sob a atual Constituição Cidadã, a leitura do artigo 2, §2º, do Decreto-lei nº3.365/1941 deve transcender a disciplina normativa para se interpretar, em nítida mutação legal, a nova visão constitucional do processo administrativo de restrição à propriedade. Isto, porque, toda a matéria nele contida deve ser interpretada segundo critérios principiológicos partindo da premissa de que a Constituição de 1988 estabeleceu que a União, os Estados e os Municípios, componentes da Federação possuem autonomia político-administrativa e competências diferenciadas.
Nesse sentido, a estrutura constitucional política brasileira refuta a noção de hierarquização entre os entes federativos.
5. A CONTRIBUIÇÃO DO DIREITO ESPANHOL NA FORMAÇÃO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO
A origem e evolução do Contencioso Administrativo espanhol em muito se assemelha ao português, porque ambos se inserem em um modelo comum de países europeus os quais tiveram como matriz fundamental o sistema francês.
Como matriz, a França contribuiu com um conjunto de princípios que, em síntese, se circunscreviam à observância do princípio da separação de poderes e do princípio do Estado de Direito, em uma Administração Pública centralizada e executiva, com tribunais administrativos. Tribunais estes que, por não se inserirem nos tribunais comuns, determinavam uma jurisdição dual, que orientava a sua organização e funcionamento pelas normas do direito público, como é o caso do direito administrativo.
Esta Administração prevalecia-se do privilégio de autoexecutoriedade impondo para si e coercitivamente a eficácia externa dos seus atos perante os administrados. Dispensava-se, assim, a força exógena das decisões dos tribunais, os quais exerciam o controle jurisdicional centrado na estrita incidência da legalidade do ato administrativo e dos seus vícios.
O controle, portanto, centrava na estrita legalidade esvaindo-se de qualquer análise de mérito. Dessa forma, os tribunais mantinham o ato legal ou o anulavam por vício exógeno ou endógeno.
Não diferente da evolução portuguesa, a Constituição de Baiona, de 1808, após repetitivas revoluções liberais, despertou o interesse estatal para regulamentar diversos conteúdos administrativos que encerraram, em 1845, na inauguração de um sistema de justiça reservada o qual atribuía a função jurisdicional a órgãos de contencioso que eram os Conselhos Provinciais e o Conselho de Estado.
Estes órgãos, na primeira etapa, emitiam pareceres que careciam de homologação pelo Poder Executivo. Esta é a etapa em que o contencioso administrativo estava incorporado, quer na sua estrutura orgânica, quer no seu funcionamento, na estrutura da Administração Pública, condensando, desse modo, um sistema de justiça reservada.
Com a publicação da Ley Santamaria de Paredes, em 1888, a etapa dos pareceres evoluiu e passou a ter a natureza de decisões, que dispensavam a referida homologação, configurando-se, assim, a existência de um sistema de justiça delegada.
Posteriormente, foi criado um departamento de Contencioso Administrativo no Supremo Tribunal de Justiça, motivando, destarte, a Espanha a seguir, de uma forma inovadora, entre os pares continentais, o sentido diverso do modelo francês.
A consagração dos tribunais administrativos como tribunais especiais distintos, mas dentro de uma jurisdição comum, ficando, destarte, abandonada a dualidade de jurisdição tipicamente francesa, fez-se sentir no caminhar em sentido ao reconhecimento de identidade do sistema espanhol e do sistema anglo-saxão.
Esta natureza dos tribunais administrativos, como tribunais especiais, com características do poder judicial e a consequente especialização dos seus magistrados, foi introduzida pela Lei de 27/12/1956 e, posteriormente, pela Lei de 26/12/1978, aprimorada pela Lei nº29 de 13/7/1998 denominada Ley Reguladora de la Jurisdicción Contencioso-Administrativa de 1998.
Com a aprovação, em 1978, da Constituição democrática houve a concretização do Estado de Direito, com o respeito à dignidade humana, a consagração dos direitos inerentes às liberdades e garantias dos cidadãos e à tutela jurisdicional e a proteção desses direitos e dos seus interesses legítimos.
Surgiu, portanto, a partir deste marco histórico, a necessidade do controle jurisdicional da atuação administrativa subordinada à Lei e ao Direito, além da observância dos princípios da proporcionalidade, da igualdade e da imparcialidade. Isto representou um avanço além do princípio da legalidade dotado de um conteúdo substantivo e não meramente formal, como se havia verificado no passado.
Este movimento de constitucionalização do Contencioso Administrativo, iniciado na Alemanha, em 1949, conduziu à criação de uma jurisdição única, embrionada em 1904.
De igual sorte, ocorreu simultaneamente nos países europeus em que houve a aproximação entre vários sistemas de Contencioso Administrativo.
A Espanha foi pioneira nesse processo gradual que objetivava a instauração de um modelo comum e de garantia da proteção efetiva dos direitos dos particulares.
A monarquia espanhola, como a maioria dos Estados do pós-guerra, assumiu um papel preponderante na efetivação de direitos fundamentais. Nesse sentido, está aliada a uma teoria do Estado social e vinculada à legalidade do Direito. Desse modo, a administração pública espanhola realiza sua atividade administrativa e se relacionam com os cidadãos para atingir os fins constitucionais-legais mediante procedimentos administrativos.
A Constituição Espanhola de 1978 é a atual Constituição Espanhola; é a lei fundamental da organização jurídica espanhola, à qual ficam sujeitos os poderes públicos e os cidadãos da Espanha, em vigor desde 29 de agosto de 1978.
No artigo 149, inciso 18ª está toda a base constitucional para a regulamentação pelo Estado espanhol do regime jurídico das Administrações Públicas e do procedimento administrativo comum. Vejamos:
“Artigo 149 – (...)
18.ª As bases do regime jurídico das Administrações públicas e do regime estatutário dos seus funcionários que, em todos os casos, garantirão aos administrados um tratamento comum ante elas; o procedimento administrativo comum, sem prejuízo das especialidades derivadas da organização própria das Comunidades Autónomas; legislação sobre a expropriação litigiosa; legislação básica sobre contratos e concessões administrativas e o sistema de responsabilidade de todas as Administrações públicas.”
A “Ley 30/1992”, relativa ao “Régimen Jurídico de las Administraciones Públicas y del Procedimiento Administrativo Común” é o instrumento normativo advindo do inciso 18 do artigo 149 da Consttuição Espanhola. É procedimento administrativo – norma geral - aplicável a todos os entes públicos. Ainda que Comunidades Autônomas tenham competência para editar regras procedimentais específicas em razão da matéria ou setor, aludidas disposições devem preservar as garantias previstas na lei estatal. Essas garabtias asseguram aos administrados em qualquer instância administrativa que os órgãos públicos atuam sob a égide de critérios homogêneos.
O procedimento administrativo é uma das garantias do administrado, exigindo-se que a atividade da Administração Pública siga determinadas normatizações como requisito mínimo para ser considerada uma atividade legítima. Lá o procedimento administrativo na é obrigatório à Administração Pública, além de significar uma garantia aos particulares.
“A distinção entre procedimento e expediente administrativo é relevante, sendo o primeiro a dinâmica do atuar da Administração e o segundo a representação material em forma escrita e documentada dos passos e resultados advindos de cada fase do procedimento” (MATEO; SÁNCHEZ, 2008, p. 276).
Para Enterría e Fernandéz (2011, p. 457), o procedimento administrativo tem dupla função:
[...] el procedimiento administrativo, si bien constituye una garantía de los derechos de los administrados, no agota en ello su función, que es, también, y muy principalmente, la de asegurar la pronta y eficaz satisfacción del interés general mediante la adopción de las medidas y decisiones necesarias por los órganos de la Administración, intérpretes de ese interés y, al propio tiempo, parte del procedimiento y árbitro del mismo.
Enterría e Fernandéz (2011, p. 478-496) apresentam, ainda, os princípios do procedimento administrativo: 1) o caráter contraditório; 2) princípio da economia processual; 3) princípio “in dubio pro actione”; 4) princípio da oficialidade; 5) exigência de legitimação; 6) imparcialidade; 7) princípio da transparência; 8) gratuidade do procedimento administrativo.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro afirma que o direito administrativo no Brasil sofreu influência do direito continental europeu, seja o italiano, alemão, português e espanhol, mas, principalmente, o francês. Porém, atualmente, tais países fazem parte da União Europeia e vêm sofrendo transformações profundas decorrentes do encontro de seus sistemas jurídicos de base romanística com o sistema da common law, o qual apenas muito tardiamente aceitou a existência do direito administrativo como ramo autônomo do direito.
Por conseguinte, parte da doutrina brasileira, acostumada ao estudo do direito comparado, está se deixando influenciar pelas recentes lições de autores estrangeiros, sem se dar conta de que, em muitos casos, o ordenamento jurídico brasileiro não é compatível, ao menos por ora, com as mudanças que estão se verificando no direito europeu.
Para Di Pietro, combatendo-se a aplicação do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, entrariam em crise outros institutos que nele se apoiam, tais como “o serviço público, o contrato administrativo, os atributos dos atos administrativos, especialmente a autoexecutoriedade”.
Assim, a posição declarada da Corte de Justiça da União Europeia, para quem “a existência de serviços públicos exclusivos do Estado contraria a liberdade de iniciativa e prejudica a liberdade de competição”, tem encontrado eco em grande parte da doutrina que vem criticando o princípio da supremacia do interesse público, mais preocupada em defender os interesses econômicos representados pela liberdade de iniciativa, liberdade de competição e liberdade de indústria e comércio, do que em defender direitos individuais, na medida em que é olvidado o fato de que somente o Estado tem condições de prestar determinadas atividades essenciais à coletividade e garantir um mínimo de vida digna aos cidadãos. (DI PIETRO; RIBEIRO, 2010, p. 8.)
6. CONCLUSÃO
Déficit se traduz na falta, na deficiência, na ineficiência de se aplicar um conteúdo que se pretendeu propor. Somente é possível reconhecer o déficit de algo quando se busca, em sua norma matriz, implementá-lo completamente e, diante de algum fato externo ou interno, seu resultado não é alcançado.
Ao discutir o déficit de garantias em processo administrativo a ideia é reconhecer que, embora as garantias estejam abstratamente descritas no texto constitucional, há falta de algo, até mesmo maturação do intérprete, indispensável para lhes trazer à efetividade.
É de se impor que a decisão do intérprete de aplicá-las ao processo administrativo, tal qual, como ocorre no processo judicial, decorre da necessária observância das raízes constitucionais do devido processo legal, sem a qual não se pode constituir uma relação jurídica válida.
Em diversos procedimentos administrativos, grafados de jurisdição, se reconhece, de certa forma pela doutrina, a falta de constitucionalização do processo quando se subtrai do administrado a mesma garantia que lhe seria outorgada se a disputa ocorresse em um cenário no qual o processo judicial estivesse presente.
Ocorre, entretanto, que esse movimento de subtração acaba comprometendo a própria democracia, porque o não reconhecimento da aplicabilidade imediata dos princípios constitucionais processuais implica desrespeito aos ideais democráticos, haja vista que o conteúdo constitucional foi fruto da vontade popular.
Dentre os contrários a este equilíbrio processual judicial e administrativo na dinâmica das relações da Administração com os particulares, está o argumento de que faltaria efetividade às decisões administrativas porque, além da falta de capacitação dos intérpretes, a deficiência do Estado brasileiro não permitiria assegurar alguns princípios aplicáveis à esfera processual judicial à esfera processual administrativa.
Segundo os contrários, muitas das garantias seriam incompatíveis com a efetividade do processo administrativo. Entretanto subtraem o elemento simétrico entre o processo judicial e administrativo principalmente com relação ao exercício da jurisdição e independência das instâncias.
Em que pese tal argumentação, a deficiência do Estado brasileiro não pode ser condão suficiente para impedir o respeito à Constituição Federal, muito menos a falta de capacidade técnica dos administradores na condução do processo administrativo pode ser impeditivo à implementação do Estado Democrático de Direito.
Pensar o contrário é autorizar o sobrestamento das garantias em prol de um legado bem maior, que autorizaria, de forma arbitrária, a ultrapassagem dos próprios limites constitucionais ao processo.
É nesse sentir que se manifesta esta pesquisa para que, seja por raízes históricas dos países de tradição romano-germânica, seja por forte influência dos países anglo-saxões, a importância de se reconhecer as garantias constitucionais também ao processo administrativo já que elas decorrem da própria vontade do povo ao estabelecer em sua verdadeira vocação a necessidade de estender ao processo administrativo os mesmos direitos assegurados ao processo judicial.
As leis de processo administrativo no Brasil e no direto castelhano têm disposições que possibilitam a participação efetiva dos cidadãos na produção da atividade administrativa estatal, com a realização do direito fundamental à boa administração.
A respeito, esclarece Fensterseifer (2008, p. 123): Ao propor uma democracia participativa ecológica, o Estado Socioambiental de Direito pressupõe uma sociedade civil politizada, criativa e protagonista do cenário político estatal, reclamando por um cidadão autônomo, participativo e não-submisso à máquina estatal e ao poder econômico. Em outras palavras, o Estado de Direito constrói-se de baixo para cima, e não de cima para baixo, a partir da sua base democrática, em oposição ao Estado de Não-Direito.
Percebe-se com amparo na doutrina espanhola e brasileira, que ambas as legislações intentam garantir direitos básicos ao cidadão interessado em sua relação com a Administração Pública. Aliado a isso, busca-se também formular um aparato processual que signifique instrumento de realização dos fins estatais.
Ambas as leis (brasileira e espanhola) tem um compromisso sério com a comunicação e participação dos interessados no processo, sendo esse ponto essencial na construção legislativa de ambos os diplomas. Já em relação à duração razoável dos processos administrativos, a lei espanhola é mais promissora nesse sentido, porque impõe ao administrador o dever de decidir, com consequências jurídicas para o caso de omissão.
Por fim, pode-se afirmar que as leis de processo administrativo da Espanha e do Brasil são instrumentos fundamentais para a construção de Estados Democráticos e Sociais de Direito e que, sob a influência gradativa do paradigma da sustentabilidade.
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