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O mistério da espetacularização da Lava Jato contra Lula

22/01/2024 às 09:26
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Coordenador da Lava Jato admitiu falta de provas para acusar Lula, evidenciando parcialidade do juiz Moro.

Uma das coisas mais escandalosas reveladas pela Vaza Jato refere-se aos antecedentes da denúncia de Lula e da famigerada conferência de imprensa em que Deltan Dellagnol utilizou um PowerPoint para colocar Lula no centro de uma organização criminosa.

O coordenador da Lava Jato escreveu a Moro: ‘A denúncia é baseada em muita prova indireta de autoria, mas não caberia dizer isso na denúncia e na comunicação evitamos esse ponto’. Depois, entrou em detalhes técnicos: ‘Não foi compreendido que a longa exposição sobre o comando do esquema era necessária para imputar a corrupção para o ex-presidente. Muita ente não compreendeu porque colocamos ele como líder para imperar 3,7MM de lavagem quando não foi por isso, e sim para imputar 87MM de corrupção’.

Em privado, Dellagnol confirmava a Moro que a expressão usada para referir a Lula durante a apresentação à imprensa (‘líder máximo’ do esquema de corrupção) era uma forma de vincular ao político R$ 87 milhões pagos em propina pela OAS em contratos para obras em duas refinarias da Petrobras – uma acusação sem provas, ele mesmo admitiu, mas que era essencial para que o caso pudesse ser julgado por Moro em Curitiba.

Preocupado com a acusação pública de seu trabalho – uma obsessão do procurador, como demonstra a leitura de diversas de suas conversas -, ele prossegue: ‘Ainda, como prova indireta, ‘jurista’ Lênio Streck e Reinaldo Azevedo falam de falta de provas. Creio que isso vai passar só quando eventualmente a página for virada para a próxima fase, com o eventual oferecimento da denúncia, em que talvez caiba, se entender pertinente no contexto da decisão, abordar esses pontos’, escreveu a Sérgio Moro.

Dois dias depois, Moro afagaria o procurador: ‘Definitivamente, as críticas à exposição de vocês são desproporcionais. Siga firme’. Menos de um ano depois o juiz condenaria Lula a nove anos e seis meses de prisão.”

(Vaza Jato – Os bastidores das reportagens que sacudiram o Brasil, Letícia Duarte – The Intercept, Mórula Editorial, Rio de Janeiro, 2020, p. 140)

A legislação vigente obrigava o procurador líder da Lava Jato a: 1) não efetuar denúncia politicamente motivada e baseada mais em ilações do que em evidências materiais de autoria e materialidade do delito; 2) a preservar sua autonomia funcional como membro do MPF em relação ao juiz da causa; 3) a respeitar a dignidade humana do acusado, cuja humilhação pública antes e depois da condenação é vedada porque pode ser considerada uma modalidade de tortura vedada pela constituição federal. Nada disso foi observado por Deltan Dellagnol.

Durante a conferência de imprensa que não deveria ter ocorrido, quando a apresentação foi confrontada por jornalistas o procurador Roberson Henrique Pozzobom afirmouNão temos como provar, mas temos convicção”. Ironicamente, antes de formalmente acusar Lula o próprio Deltan Dellagnol disse a Sérgio Moro que não estava convicto de que a denúncia era baseada em indícios seguros de prova da autoria e da materialidade do delito.

A Vaza Jato provou que Deltan Dellagnol somente denunciou o então ex-presidente porque foi autorizado ou aconselhado a fazer isso pelo juiz da Lava Jato. Portanto, é evidente que naquele momento apenas uma pessoa estava convicta de que Lula era criminoso. E essa pessoa era o juiz que julgaria o caso do Triplex, algo que evidentemente comprometia a imparcialidade de Sérgio Moro. Mesmo assim Moro seguiu em frente e não se afastou do caso. Tragicamente o STF demorou muito para proclamar a incompetência e a suspeição dele anulando uma sentença que nasceu nula.

O único mistério que restava acerca do episódio refere-se à decisão de Deltan Dellagnol de ir a público. Ele não estava convencido de que a denúncia parava em pé e mesmo assim foi a público atacar o acusado submetendo-o indevidamente à execração pública. Como procurador federal, Deltan Dellagnol certamente sabia o risco que estava correndo ao violar o dever funcional de respeitar a dignidade humana do acusado, cuja humilhação pública antes e depois da condenação é vedada porque pode ser considerada uma modalidade de tortura vedada pela constituição federal. Esse mistério, entretanto, foi revelado pelo autor de Caminhos da Política no Ministério Público Federal.

Compondo a estratégia de comunicação política da ANPR, inicia-se em 2003 uma série de campanhas e assinaturas de convênios com entidades e setores organizados da sociedade civil sobre diversos temas, como: democracia, sustentabilidade e meio ambiente, combate à corrupção, e, no final, discussão sobre gênero, nesse último caso já durante a gestão de Raquel Dodge na PGR (2017/2019). Como observado no material constituído pelas prestações de contas de 2003 a 2019, embora todos os temas sejam relevantes, essas campanhas visavam à ampliação da inserção da ANPR no debate político nacional, marcando sua presença no noticiário da mídia escrita, falada e televisada. Prova disso é o relatório de 2007 afirma expressamente que os procuradores da República têm um papel político a cumprir no Brasil, e que a atividade de comunicação é crucial para que esse papel seja desenvolvido a contento.

Desde então, a assessoria de comunicação da ANPR passou a se chamar departamento de comunicação (DECOM) e a atuar cada vez mais próxima da imprensa. Nesse momento, é expressivo o esforço da diretoria em firmar a ANPR como interlocutora do MPF com a sociedade, valando-se do conteúdo informativo produzido e disseminado pela associação e da sua relação com os veículos de comunicação de massa. Ainda em relação ao eixo de comunicação, entre 2011 e 2015 a ANPR cria os perfis nas redes sociais Twitter e Facebook e passa a se preocupar com o número de seguidores, em busca por visibilidade. Inclusive, a associação considera as redes sociais um termômetro da credibilidade da ANPR e do MPF, o que consta expressamente do material analisado.” (Caminhos da Política no Ministério Público Federal, Rafael Rodrigues Viegas, Amanuense, São Paulo, 2023, p. 154/155)

Valendo-se da condição que autoproclamam de ‘representantes dos interesses corporativos’ do MPF e, por vezes, até da ‘sociedade brasileira’, as lideranças da ANPR [Associação dos Procuradores Federais] burlam a vedação constitucional de proibição de vedação partidária e exercício do mandato, e operam no sentido da mudança legislativa envolvendo diversos assuntos. Nesse aspecto, monitoram as atividades do Congresso Nacional constantemente, ao ponto de se poder afirmar que eles exercem controle externo sobre o Parlamento, sem que esse seja um fim estatutário da organização privada.

De acordo com os relatórios analisados, não há tramitação de proposição legislativa de interesse da ANPR que escape desse monitoramento. Para tanto, valem-se de mecanismos de acompanhamento, relatórios e expedições de ‘notas técnicas’, às vezes em conjunto com a PGR. No caso das ‘notas técnicas’, dada a sua intensidade e forma com que buscam apoiar e, ao mesmo tempo, convencer congressistas, muitas vezes embasando-os na tomada de decisão, em audiências públicas e na tramitação de projetos de emenda à CF/88 e de leis em geral, é plausível afirmar que elas constituem uma forma de assessoria jurídico-parlamentar, mesmo que essa atividade seja vedada a membros do MP brasileiro.”

(Caminhos da Política no Ministério Público Federal, Rafael Rodrigues Viegas, Amanuense, São Paulo, 2023, p. 175/176)

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Dos fragmentos acima transcritos, fica evidente que a espetacularização do caso do Triplex foi apenas um capítulo na saga de espetacularização do MPF orquestrada politicamente ANPR e pela PGR há décadas. Deltan Dellagnol sabia que não estava pisando em areia movediça quando foi a público humilhar o então ex-presidente divulgando uma acusação que não deveria ter sido formalizada.

A Vaza Jato provou que Deltan Dellagnol não estava convicto de que Lula podia ser denunciado. Entretanto, a julgar pelo material estudado no livro de Rafael Rodrigues Viegas, o procurador líder da Lava Jato certamente podia ter convicção de que a espetacularização do PowerPoint contra o então ex-presidente não seria objeto de punição. Muito pelo contrário, assim que Lula reagiu ao ataque público humilhante que recebeu, a ANPR publicou uma nota em defesa dos procuradores lavajateiros. A tortura psicológica dos acusados antes, durante e depois da condenação é vedada pela constituição, mas na época o compromisso da PGR, da ANPR e do CNMP com espetacularização indevida do caso do Triplex (e de outros semelhantes) era total.

A controvérsia do PowerPoint se arrastou no CNMP e somente chegou ao fim quando Deltan Dellagnol decidiu sair do MPF para entrar na política. Muito embora tenha obtido sucesso usando o cargo de procurador para fazer política a carreira parlamentar dele seria abreviada pelo TSE. No final, o STF manteve a decisão que mandou o procurador líder da Lava Jato indenizar Lula por causa do PowerPoint. Curiosamente, o PGR tentou impedir que isso acontecesse.

A destruição do protagonismo midiático da ANPR, do PGR e do MPF obviamente não interessa aos procuradores políticos. A derrota que eles sofreram com a aprovação da Lei do Abuso de Autoridade foi evidente. Tanto que referida Lei foi questionada no STF por diversas associações de membros do Ministério Público (a ANPR entre as tais). Os dois processos (ADI 6239 e ADI 6238) ainda não foram julgados pela Suprema Corte.

A sociedade brasileira precisa se manter alerta e trabalhar para impedir a reconstrução do poder que possibilitou a um bando de procuradores federais ambiciosos comandados por Deltan Dellagnol estropiar a democracia brasileira. O mais importante, contudo, os abusos da Lava Jato não foram um ponto fora da curva. O mais provável é que eles tenham sido o pináculo de um processo de deformação institucional desencadeado pela ANPR que dominou e ainda domina o MPF. A Lei de Abuso de Autoridade é uma conquista civilizatória importante e não deve ser declarada inconstitucional pelo STF.

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Sobre o autor
Fábio de Oliveira Ribeiro

Advogado em Osasco (SP)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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