A equiparação de criptoativo à valor mobiliário para fins de tipificação do crime de “insider trading”

05/02/2024 às 17:56

Resumo:


  • A Lei nº 14.478 de 2022 estabelece diretrizes para serviços de ativos virtuais e o Decreto nº 11.563 de 2023 atribui ao Banco Central a competência para regulamentação desses serviços.

  • A legislação introduziu novos tipos penais relacionados ao mercado de criptoativos, alterando o Código Penal e outras leis relacionadas a crimes financeiros e lavagem de dinheiro.

  • Discussões sobre a aplicabilidade do crime de "insider trading" no mercado de criptoativos surgem, considerando a definição de ativos virtuais e sua possível equiparação a valores mobiliários para fins penais.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O Decreto nº 11.563 de 2023, que regulamenta a Lei do Mercado de Ativos Virtuais (Lei nº 14.478 de 21 de dezembro de 2022) trouxe diversas novidades, dentre elas, destaca-se a inclusão de novos tipos penais em legislações já existentes, como o Código Penal e a Lei de Lavagem de Dinheiro. Contudo, uma questão pouco comentada e que gera dúvidas de como se comportará neste cenário, é a prática do complexo crime de “insider trading”. Portanto, o presente texto terá como objeto de análise suas características e eventuais possibilidades de sua aparição no mercado de criptoativos.

Em dezembro de 2022, fora sancionada a Lei nº 14.4781, que dispõe acerca de diretrizes para prestação de serviços de ativos virtuais e regulamentação para as prestadoras desses serviços (exchanges). Na sequência, em junho de 2023, editou-se o Decreto nº 11.5632, que ao regulamentar a Lei de 2022, atribuiu ao Banco Central do Brasil (BCB) a competência para regular a prestação do serviço de ativos virtuais, bem como de suas respectivas prestadoras e demais hipóteses da norma legal supracitada.

Por criptoativos, subtendem-se os ativos virtuais expressos por um código computacional que representa a titularidade e propriedade do ativo, validando-se através de um processo de criptografia3. Seu exemplo mais didático, sem sombra de dúvidas, é a popular “bitcoin”, e isso se deve ao fato dessa criptomoeda ter sido o primeiro criptoativo a circular no mercado global, ainda em 2008. No entanto, os criptoativos não se resumem à essa única moeda, havendo uma vastidão de espécies que circundam o mercado.

Para objeto deste texto, vale-se utilizar do conceito de “ativo virtual” trazido pela norma legal que se prestou a regulamentá-los, assim definindo:

Art. 3º Para os efeitos desta Lei, considera-se ativo virtual a representação digital de valor que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos e utilizada para realização de pagamentos ou com propósito de investimento, não incluídos:

I - moeda nacional e moedas estrangeiras;

II - moeda eletrônica, nos termos da Lei nº 12.865, de 9 de outubro de 2013;

III - instrumentos que provejam ao seu titular acesso a produtos ou serviços especificados ou a benefício proveniente desses produtos ou serviços, a exemplo de pontos e recompensas de programas de fidelidade; e

IV - representações de ativos cuja emissão, escrituração, negociação ou liquidação esteja prevista em lei ou regulamento, a exemplo de valores mobiliários e de ativos financeiros.

Parágrafo único. Competirá a órgão ou entidade da Administração Pública federal definido em ato do Poder Executivo estabelecer quais serão os ativos financeiros regulados, para fins desta Lei.

Um dos principais aspectos da legislação foi a regulamentação da prática de fraudes e crimes no universo do mercado de criptoativos, introduzindo novos tipos penais em três leis distintas, sejam elas, o Código Penal (Lei nº 2.848/1940), a Lei de Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional (Lei nº 7.492/86) e a Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei nº 9.613/98).

Nessa linha, o art. 3º, inciso IV da Lei dos Ativos Virtuais, não atribuiu o caráter de “ativo virtual” às representações de ativos cuja emissão, escrituração, negociação ou liquidação esteja prevista em lei ou regulamento, à exemplo de valores mobiliários e de ativos financeiros, que, por sua vez, sujeitar-se-ão às regras da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), vide artigo 3°, inciso I, do Decreto nº 11.63/2023.

Esse ponto é crucial para o estudo aqui tratado, uma vez que o delito de “insider trading”, já conhecido no mundo do mercado financeiro, encontra sua tipificação no artigo 27-D da Lei nº 6.385/76, que dispõe sobre o mercado de valores mobiliários.

No Brasil, muito se esperou a regulamentação dos criptoativos, tendo em vista a consequente segurança mercadológica e proteção aos investidores que a nova norma poderia trazer. No entanto, alguns imbróglios podem surgir nos procedimentos que envolvam as criptomoedas. Nos Estados Unidos, por exemplo, já existem investigações acerca da prática de negociações de ativos virtuais com base em informações privilegiadas, ou melhor dizendo, a prática de Insider trading.

Dessa forma, tendo a ciência de que para eventual tipificação desse crime, há necessidade do envolvimento de valores mobiliários, surge o seguinte questionamento ao tratar das responsabilizações envolvendo criptomoedas no Brasil: Há possibilidade da equiparação de criptoativos à valores mobiliários para eventual criminalização?

A fim de compreender o procedimento dos ativos virtuais, lembra-se que, há algum tempo, antes mesmo de se pensar na existência de criptoativos, o jurista e economista italiano Túlio Ascarelli, em profundo estudo, desenvolveu o que viria a ser a Teoria do Contrato Plurilateral4. Por meio dela, chegou à conclusão de que a pluralidade correspondia a uma circunstância de que os interesses das partes (duas ou mais), devem ser direcionados a uma finalidade em comum, tal como as associações e seus respectivos atos constitutivos.

Ou seja, na perspectiva do autor, enquanto os contratos bilaterais possuem lados e interesses opostos, o contrato plurilateral teria um interesse em comum, com manifestações de um aparente “círculo” de pessoas. Fazendo alusão à teoria no mercado de criptoativos, chega-se ao denominado “blockchain”, uma tecnologia composta por protocolos criptografados, que viabiliza a operacionalidade de uma plataforma responsável por buscar captação de recursos públicos, emitindo ativos virtuais no Mercado Digital, tais como, tokens e criptomoedas.5

Dessa forma, o blockchain é o responsável por criar a “pluralidade contratual” lembrada por Ascarelli, uma vez que realiza registros simultâneos, emitindo ativos em nome de diversos proprietários. A emissão desses ativos, decorre de uma tecnologia conhecida como Distributed Ledger Technology (DLT), uma espécie de “livro razão” dos criptoativos, responsável por permitir que computadores em diferentes locais do mundo, realizem transações e atualizem os registros de forma sincronizada em uma rede. No contexto das blockchains, ocorre o processo denominado de “tokenização” de ativos, convertendo tal moeda em representações digitais, tangíveis e intangíveis.

Com a simplificada demonstração do processo de circulação dos ativos virtuais, cumpre a análise do tema ora proposto, qual seja, sua equiparação a um valor mobiliário, para fins de tipificação do delito de Insider trading.

A Comissão de Valores Mobiliários, ao publicar Parecer de Orientação 406, consolidou os entendimentos da Autarquia sobre normas aplicáveis aos criptoativos. De acordo com o posicionamento do órgão, os agentes de mercado deverão analisar as características de cada criptoativo para determinar se constitui valor mobiliário ou não. Nessa linha, segundo a CVM, considera-se valor mobiliário o criptoativo que:

  • For a representação digital de algum dos valores mobiliários previstos taxativamente nos incisos I a VIII do art. 2º da Lei 6.385 e/ou previstos na Lei 14.430 (i.e., certificados de recebíveis em geral); ou

  • Se enquadrar no conceito aberto de valor mobiliário do inciso IX do art. 2º da Lei 6.385, na medida em que seja contrato de investimento coletivo.

De mais a mais, a CVM também publicou o Ofício Circular CVM/SSE/4/20237, que orienta a equiparação de Tokens recebíveis e Tokens de Renda Fixa à valor mobiliário. Segundo a autarquia, os tokens que atendem ao conceito de Contrato de Investimento Coletivo e de operações de securitização, podem sim, enquadrar-se no conceito de valor mobiliário, isso porque, haveria esforço de terceiro para a geração do benefício econômico esperado pelo investidor.

Ainda no Parecer 40, a CVM salientou que irá fiscalizar os criptoativos que forem considerados valores mobiliários e estivem sob suspeita de fraudes, emitindo alertas de suspensão, instaurando processos administrativos e até mesmo, comunicando aos órgãos responsáveis pela persecução penal nos casos de eventuais crimes na legislação aplicável.

Por consequência, tendo como base as referidas orientações da entidade autárquica, pode se dizer que, haverá possibilidade do crime do artigo 27-D da Lei nº 6.385/1976 no mundo dos criptoativos quando a negociação da informação privilegiada tratar de uma representação digital de um próprio valor mobiliário ou ainda, enquadrar-se no conceito aberto do inciso IX do artigo 2º da referida Lei.

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Em análise do próprio delito de Insider trading, assim é o dispositivo:

Art. 27-D. Utilizar informação relevante de que tenha conhecimento, ainda não divulgada ao mercado, que seja capaz de propiciar, para si ou para outrem, vantagem indevida, mediante negociação, em nome próprio ou de terceiros, de valores mobiliários

Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa de até 3 (três) vezes o montante da vantagem ilícita obtida em decorrência do crime

§ 1º Incorre na mesma pena quem repassa informação sigilosa relativa a fato relevante a que tenha tido acesso em razão de cargo ou posição que ocupe em emissor de valores mobiliários ou em razão de relação comercial, profissional ou de confiança com o emissor

§ 2º A pena é aumentada em 1/3 (um terço) se o agente comete o crime previsto no caput deste artigo valendo-se de informação relevante de que tenha conhecimento e da qual deva manter sigilo.

Logo, entende-se pelas orientações da CVM que, a caracterização das moedas virtuais como valor mobiliário acarretam à competência da própria Lei nº 6.385/76, isso, por lógica, sujeitam os agentes deste mercado à prática de suas próprias tipificações penais.

Em conclusão, ainda resta a dúvida se, assim como o Decreto que regulamentou o mercado de criptoativos incluiu novas condutas penais nas Leis de Lavagem e de Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, haveria necessidade de regular especificamente os crimes contemplados pela Lei do Mercado de Valor Mobiliário, ou a mera equiparação de moeda virtual à valor mobiliário bastaria para fins penais?


Notas

  1. BRASIL. Lei nº 14.478, de 21 de dezembro de 2022. Dispõe sobre diretrizes a serem observadas na prestação de serviços de ativos virtuais e na regulamentação das prestadoras de serviços de ativos virtuais; altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para prever o crime de fraude com a utilização de ativos virtuais, valores mobiliários ou ativos financeiros; e altera a Lei nº 7.492, de 16 de junho de 1986, que define crimes contra o sistema financeiro nacional, e a Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998, que dispõe sobre lavagem de dinheiro, para incluir as prestadoras de serviços de ativos virtuais no rol de suas disposições. Diário Oficial da União, Brasília, 21 de dezembro de 2022. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/lei/L14478.htm

  2. BRASIL. Decreto nº 11.563, de 13 de junho de 2023. Regulamenta a Lei nº 14.478, de 21 de dezembro de 2022, para estabelecer competências ao Banco Central do Brasil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 13 de junho de 2023. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2023/Decreto/D11563.htm. Acesso em: outubro de 2023.

  3. TRINDADE, Manoel Gustavo Neubarth; VIEIRA, Márcio dos Santos. Criptoativos: conceito, classificação, regulação jurídica no Brasil e ponderações a partir do prisma da Análise Econômica do Direito. RJLB-REVISTA JURÍDICA LUSO-BRASILEIRA, v. 6, p. 867, 2020.

  4. ASCARELLI, Túllio. Problemas das Sociedades Anônimas e Direito Comparado/ - São Paulo: Quorum, 2008. - 753 p.

  5. SILVA, Susi Castro; MONTEIRO, Vitor Borges. Criptomoedas (ou criptoativos?) como meio de pagamento no Brasil e a lógica do Cisne Negro: da ausência de regulamentação específica ao desempenho da criptoeconomia durante a pandemia de Covid-19. Economic Analysis of Law Review, v. 12, n. 2, p. 145-170, 2021.

  6. CVM divulga Parecer de Orientação sobre criptoativos e o mercado de valores mobiliários. Gov.br. 11/06/2022. Disponível em: https://www.gov.br/cvm/pt-br/assuntos/noticias/2022/cvm-divulga-parecer-de-orientacao-sobre-criptoativos-e-o-mercado-de-valores-mobiliarios. Acesso em: 01 de fev. 2024.

  7. CVM orienta sobre caracterização de tokens de recebíveis e de tokens de renda fixa como valores mobiliários. Gov.br. 04/04/2023. Disponível em: https://www.gov.br/cvm/pt-br/assuntos/noticias/2023/cvm-orienta-sobre-caracterizacao-de-tokens-de-recebiveis-e-de-tokens-de-renda-fixa-como-valores-mobiliarios. Acesso em: 01 de fev. 2024.

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Sobre o autor
Lazaro Bertolini Da Ros

Advogado com atuação em Direito Tributário e Penal. Pós graduando em Direito Tributário pelo IBET.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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