Servidor público que pratica assédio sexual não pode mais ser punido por ato de improbidade administrativa

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Imagine que no contexto de uma repartição pública, um servidor público faz comentários de teor sexual sobre uma colega de trabalho, envia mensagens inapropriadas, tenta frequentemente tocá-la de forma inadequada ou um professor de um colégio público ou universidade federal faz o mesmo com alunas. Essas condutas, apesar da gravidade, deixaram de ser punidas como ato de improbidade administrativa. Entenda!

Introdução

No cenário jurídico brasileiro, recentes mudanças legislativas têm gerado debates acalorados e reconfigurado o entendimento sobre diversos temas, especialmente no que tange à improbidade administrativa. Uma das questões mais polêmicas e significativas nesse contexto é a redefinição do enquadramento do assédio sexual no âmbito administrativo, uma vez que este ato, historicamente considerado como violador dos princípios da Administração Pública, agora encontra-se em uma posição de ambiguidade legal.

Alterações promovidas pela Lei 14.230/2021

Com a promulgação da Lei 14.230/2021, diversas alterações foram introduzidas na Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92), impactando diretamente a tipificação e punição de condutas ímprobas. Uma das mudanças mais notáveis foi a revogação do inciso I do artigo 11 da LIA, que anteriormente previa como improbidade administrativa o ato de "praticar ato visando fim proibido em lei". Essa reforma teve implicações significativas na interpretação e aplicação da lei, principalmente no que diz respeito aos atos considerados ímprobos.

Um dos aspectos mais marcantes dessas alterações é a retroatividade para fatos anteriores à mudança legislativa. Antes da reforma, atos de assédio sexual no ambiente de trabalho, especialmente no contexto de órgãos públicos, eram frequentemente enquadrados como improbidade administrativa, visto que eram considerados violações dos princípios da moralidade e legalidade. Contudo, com a supressão do referido inciso, tais condutas deixaram de ser automaticamente consideradas como improbidade administrativa.

Um exemplo emblemático desse impacto é o caso de um médico perito do INSS que foi demitido por assédio sexual contra seguradas de autarquias previdenciárias. Antes das alterações legislativas, essa conduta seria facilmente enquadrada como improbidade administrativa. No entanto, após as mudanças na lei, a tipificação desse comportamento tornou-se mais complexa e sujeita a interpretações diversas.

No mencionado caso, o INSS buscou enquadrar o assédio sexual como ato de improbidade por violação aos princípios da Administração Pública, argumentando que a nova legislação não revogou essa possibilidade. No entanto, o juiz responsável pela análise do caso observou que a revogação do inciso I do artigo 11 da LIA trouxe uma mudança substancial na tipificação dos atos ímprobos. O magistrado ressaltou que, embora o assédio sexual continue sendo punido em outras esferas do direito, como o âmbito criminal e civil, a nova lei não mais prevê sua inclusão automática como improbidade administrativa.

A Lei 14.230/2021 pode retroagir para atingir fatos anteriores ou nos quais os processos estejam em curso?

A alteração promovida pelo legislador no texto original da Lei nº 8.429/92, no sentido de tornar taxativo o rol do art. 11 da lei 8.249 e que tornou diversos atos impuníveis na instância da improbidade administrativa, é clara e plenamente válida, pois a própria Constituição Federal delega à legislação ordinária a forma e tipificação dos atos ímprobos, assim como a gradação das sanções constitucionalmente estabelecidas (CF/88, art. 37, § 4º).

Ocorre que, os Ministérios Públicos de todo o país, em especial o Ministério Público Federal, estão se insurgindo contra essas alterações e orientando os membros a continuarem imputando atos de improbidade decorrentes de assédio sexual a agentes públicos.

Isso porque, a 5º CCR do MPF, instância revisional dos núcleos de combate à corrupção integrantes da instituição, expediu nota técnica defendendo a inconvencionalidade da Lei 14.230/2021, por ferir a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (a Convenção de Mérida), promulgada pelo Decreto n. 5.687/2006. Um dos argumentos principais utilizados é que as alterações constituem retrocesso ao tratamento do combate à corrupção.

No entanto, a redação antiga do Art. 11 da Lei de Improbidade já era amplamente criticada devido a alta subjetividade do dispositivo legal mencionado, o que dava ensejo a extrema largueza da sua interpretação e ocasionava abusos e prejuízos a gestores e servidores públicos probos.

Apesar dessa discussão, o STF já se manifestou pela constitucionalidade das alterações e destacou expressamente que as alterações benéficas e referentes a tipicidade do ato de improbidade devem retroagir para atingir atos anteriores a entrada em vigor da lei, uma vez que a punição de atos de improbidade se insere dentro do chamado direito administrativo sancionador, situação apta a atrair os postulados básicos de proteção previstos para o direito penal, tal como o princípio da retroatividade benéfica.

Conclusão

Desse modo, o agente público que pratique assédio sexual no exercício de suas funções não pode mais ser punido por atos de improbidade.

As alterações promovidas prestigiaram a necessidade de uma interpretação rigorosa e restritiva dos atos passíveis de enquadramento como ímprobos. Com a supressão do rol exemplificativo e a adoção de uma lista taxativa de condutas consideradas como improbidade, a lei busca conferir maior segurança jurídica e evitar interpretações extensivas que possam ampliar em demasia o campo de aplicação da norma.

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No entanto, é importante ressaltar que essa mudança legislativa não significa impunidade para os casos de assédio sexual ou outras condutas reprováveis no ambiente administrativo. Ao contrário, tais comportamentos continuam sendo passíveis de sanções, porém, agora, sua tipificação e punição devem seguir os novos parâmetros estabelecidos pela legislação vigente.

Diante desse contexto, torna-se fundamental uma reflexão aprofundada sobre as implicações das alterações na Lei de Improbidade Administrativa e seus reflexos na proteção dos princípios éticos e morais que regem a Administração Pública. É necessário encontrar um equilíbrio entre a necessidade de combater efetivamente condutas ímprobas e a garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos, especialmente das vítimas de assédio sexual e outras formas de abuso de poder no ambiente de trabalho.

Sobre a autora
Barbara Kelly Ferreira Lima Maranhão

Minha trajetória profissional inclui estágios significativos em instituições renomadas, como a Defensoria Pública do Distrito Federal, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) e no Ministério Público Federal (MPF), neste órgão atuei no Núcleo de Combate à Corrupção, acompanhando casos de grande envergadura.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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