Pornografia e cultura do estupro: transformações sociais e repercussões legislativas

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4. DIMENSÕES JURÍDICAS SOBRE A PORNOGRAFIA

Neste capítulo será realizado um mapeamento da dimensão jurídica dentro do debate sobre pornografia no Brasil e em outros países96. Analisar-se-á como os Estados têm efetivamente lidado com o assunto e se já existe alguma regulamentação estatal, seja com a criação de Projetos de Lei, a existência de doutrina jurídico-constitucional ou de legislação de fato vigente.

Primeiramente, é utópico pensar que a indústria pornográfica pode simplesmente ser extinta “por decreto”, principalmente por ser uma das indústrias mais lucrativas do mundo. Por isso, a ideia central, como será demonstrado adiante, é entender como o Estado pode exercer algum tipo de controle sobre a matéria, regulamentando-a para tentar amenizar seus danos.

Considerando a pornografia como um dos elementos favorecedores da cultura do estupro, assim como da perpetuação de outras violências e da desigualdade sexual, o fato de que a sociedade e o Estado não reconheçam suficientemente que se trata de um instrumento de violência é algo problemático. Atualmente, por ela também ser tratada como meio produtor de entretenimento, isso dificulta o avanço das pesquisas que analisam seus efeitos sociais.97

Além disso, nota-se que a estruturação do Estado ignora as particularidades da condição feminina, baseando seu funcionamento sob uma perspectiva masculina. Considerando que o patriarcalismo modela as legislações, estas acabam idealizando o padrão humano do homem para definir e determinar as condutas, fato que torna extremamente difícil lidar com a questão do estupro.98

No Brasil, a falta de compromisso do Estado com a proteção dos corpos femininos foi recentemente ressaltada pelo Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, ao afirmar que “se alguém quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade”. Isso explicita a permissão do Estado sobre a erotização capitalizada da mulher, abordando com certa naturalidade o chamado “turismo sexual”.99

A seguir, observa-se como os pontos levantados sobre a pornografia têm repercutido no mundo jurídico.

4.1. Conflitos entre direitos fundamentais: liberdade de expressão X Igualdade

Existe uma discussão constitucional sobre a possibilidade da proibição da pornografia que merece atenção. Trata-se de um potencial conflito entre direitos fundamentais, o que exigiria uma solução interpretativa. A Constituição Federal de 1988 prevê no rol do artigo 5º, considerado cláusula pétrea, o direito à liberdade de expressão e a igualdade entre os cidadãos:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;

IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;100

Com uma certa frequência, esses direitos se chocam causando conflitos entre normas, que devem ser minuciosamente analisados de acordo com cada caso concreto para serem solucionados, evitando que alguém tenha seus direitos violados. A pornografia entra nessa discussão quando, de um lado, defende-se a irrestrita liberdade de expressão e sexual, mas de outro, luta-se por sua proibição, preservando a igualdade de gênero e política.101 O debate se desenvolve acerca da legalidade da proibição desses materiais ou se isso configura um tipo de censura.

Primeiramente, analisa-se o entendimento consolidado por Catharine MacKinnon, acatado, em sua maioria, pelas feministas radicais. Conforme já abordado, estas enxergam a pornografia como um problema de ordem político-igualitária, uma vez que produz conteúdo misógino que modifica a forma como as mulheres são percebidas na sociedade, gerando uma supremacia masculina em relação à feminina.

MacKinnon se pauta no valor constitucional de igualdade de proteção presente na Décima Quarta Emenda, da Constituição dos Estados Unidos da América - The Fourteenth Amendment to the United States Constitution -, que prevê que nenhum Estado pode privar nenhum cidadão da mesma proteção legal oferecida a todos os demais cidadãos. Com isso, a censura da pornografia seria no sentido de criar igualdade de oportunidades, mesmo sendo uma restrição de liberdade.102

Os materiais pornográficos devem ser proibidos por serem o principal elemento na criação da desigualdade civil entre homens e mulheres, além de gerarem uma discriminação sexual, fato que viola direitos civis. A pornografia causa ferimentos pessoais e abusos coletivos contra as mulheres e, por isso, leis de segurança pública, pessoal e de igualdade civil devem ser implementadas no sistema jurídico, fazendo com que o Estado assuma seu papel de garantidor do direito à igualdade.103

Além disso, a democracia prega um ambiente de igual respeito e consideração para todos e o pornô vai contra esses ideais constitucionais, já que sustenta uma subordinação feminina que silencia as mulheres.104 A proibição desse tipo de conteúdo culminaria no reconhecimento de um sistema que desfavorece mulheres, visto que a livre expressão plena é aplicada aos homens, marcada pela desigualdade, enquanto a liberdade de expressão das mulheres é tolhida.105 Por conta disso, é preciso desencorajar tudo que contribua com a reprodução desse cenário.

Outro ponto ressaltado pelas ativistas antipornografia seria a existência de um “contrato sexual” que beneficia os homens, dando-lhes um certo de direito de propriedade sobre as mulheres. O problema da pornografia é que ela materializa esse contrato, ensinando homens desde pequenos que podem livremente objetificar mulheres, as quais estão disponíveis para satisfazerem seus desejos. Nesse sentido, são as mulheres, e não os pornógrafos, que precisam de proteção, uma vez que são humilhadas e obrigadas a ficarem em silêncio por medo, tornando mais difícil sua expressão.106

Ademais, MacKinnon acredita que o principal foco da desigualdade de gênero se encontra na sexualidade. Dessa forma, a indústria pornográfica produz um conteúdo que determina o que é o sexo e como ele deve ser feito partindo de uma visão unicamente masculina e, por isso, estimula a violência contra as mulheres, transformando-a em entretenimento utilizado para satisfazer prazeres.107 Por todos os motivos apresentados, a proibição da pornografia não desrespeitaria o direito de liberdade de expressão, mas apenas asseguraria a integridade e liberdades individuais da mulheres, assim como a plena igualdade de gênero.

Em contrapartida, tem-se o entendimento defendido por Ronald Dworkin e acatado pelos liberais que, em suma, acreditam ser a proibição da pornografia uma reedição moralista e antiliberal da censura.108 Ele se baseia na liberdade de expressão e de imprensa asseguradas pela Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos - The First Amendment to the United States Constitution -, a qual deve ser entendida como um princípio moral e abstrato, logo, capaz de ser atualizado de acordo com o presente momento histórico.109 Para além dos princípios, tem o argumento de que os conteúdos pornográficos representam uma liberação sexual feminina dos padrões patriarcais que lhe foram impostos.110

Existe uma relação intrínseca entre igualdade, liberdade e regime democrático, pois uma sociedade liberal-igualitária deve respeitar o direito de liberdade de expressão, da mesma maneira que uma democracia participativa que se paute nesse princípio deve fazer. Por esse motivo, a pornografia, entendida como uma forma de expressão, é compatível com a democracia.111

Não obstante, a liberdade de expressão não se presta a legitimar atos de violência e permitir a violação de direitos. O que ocorre é que assegura que todos os cidadãos sejam livres para fazerem suas próprias escolhas em relação às suas vidas privadas, sendo essa garantia um dos elementos da justiça democrática.112

Com isso, Dworkin entende que a liberdade como um direito deve favorecer a criação, conservação e disseminação de ideias e opiniões. Nisso, não seria possível se utilizar da censura, mesmo que seja para beneficiar uma parcela da sociedade que se sente ofendida por alguma expressão utilizada por um outro grupo, ou seja, indivíduos não podem ser impedidos de expressarem suas opiniões, mesmo que isso gere um bem comum.113 Só assim uma sociedade pode ser verdadeiramente democrática, pois, de acordo com seu pensamento, “não é a democracia que garante a liberdade de expressão, mas a liberdade de expressão que garante a democracia”.114

Dentro desse contexto, os argumentos levantados por MacKinnon não são suficientes para permitir a proibição da pornografia, mesmo que fosse possível provar empiricamente que eles estão corretos. Isso inclusive abarcaria a igualdade, uma vez que esta prega que todos tenham a oportunidade de se expressarem, por mais lamentável que seja sua posição, o que não significa que tais ideias irão necessariamente prosperar.115

O autor não nega que, por muitas vezes, a pornografia é difamante e insultante, tanto para mulheres, quanto para homens. Porém, isso não justifica sua proibição, uma vez que essa medida iria prejudicar o princípio de liberdade de expressão, que protege todas as suas formas, sem distinções. Isso porque a vida em sociedade exige que seus integrantes pratiquem a tolerância a respeito daquilo que lhes desperte ódio.116

Partindo do século XVIII, surgiu o entendimento de que o princípio da dignidade humana abarcava a liberdade como um valor essencial do ser humano, que deveria ter a possibilidade de realizar seus objetivos sem se submeter a outrem.117 Como já mencionado, a liberdade de expressão é um direito fundamental constitucionalmente previsto, que garante sua plena autonomia, vedando apenas o anonimato para evitar que pessoas não assumam a responsabilidade por seus atos.118 Contudo, diferentemente do modelo liberal, também tem se o Estado Social, que entende que o Estado tem que harmonizar as assimetrias sociais, devendo garantir que o exercício da liberdade seja feito de acordo com o interesse da coletividade.119

Além disso, o princípio da dignidade humana está positivado no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal, como sendo um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Por conta disso, entende-se que ele poderia ser invocado para estabelecer limites à liberdade de expressão120, nos casos em que a lei ordinária se encontrar silente. Vale ressaltar, que o princípio da liberdade é por si só limitado, visto que encontra restrições no próprio texto constitucional e em leis infraconstitucionais121, como por exemplo, quando a lei proíbe o indivíduo de adotar certas posturas, como matar alguém (art. 121, CP) ou quando estabelece o dever de que a propriedade atenda sua função social (art. 5º, XXIII, CF).

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O limite acima mencionado encontra respaldo no princípio da legalidade (art. 5º, II, CF) na Constituição brasileira. Dessa forma, no Brasil, a liberdade de expressão não é vista como um direito fundamental de valor hierárquico superior aos demais, como ocorre no direito estadunidense, tendo que respeitar o sistema constitucional e conviver harmonicamente com outros valores igualmente tutelados. Quando ocorre algum conflito entre esses direitos, como entre a liberdade de expressão e a dignidade humana, ele pode ser resolvido através do princípio da proporcionalidade ou da cedência recíproca entre valores constitucionais.122

Observa-se também a Lei nº 7.716/89 que tipifica, em seu art. 20, como conduta criminosa qualquer discriminação que deprecia e desqualifica em razão de raça, etnia, cor, procedência nacional ou religião.123 Assim, juntamente com o princípio da igualdade entre os cidadãos, nota-se que a liberdade de expressão tem restrições impostas pelo próprio direito, atendendo a valores socialmente presentes.

Nesse sentido, apesar de o presente estudo não concordar com a visão estadunidense de que a liberdade de expressão merece ser plenamente exercida e resguardada em todas as situações, não importando o dano social que possa causar, também não se acredita no completo silenciamento, como proposto por MacKinnon. É irrefutável que materiais pornográficos podem trazer prejuízo para seus consumidores e para terceiros, mas mesmo assim, provavelmente sua proibição não seria um caminho ideal a ser percorrido.

O motivo para isso é que quando se proíbe algo, uma margem é aberta para que outras coisas sejam futuramente proibidas, o que pode acabar gerando precedentes para que um governante mais conservador e autoritário mexa com o que não deve. De qualquer maneira, o sexo é um ato natural do ser humano que deve poder ser expresso em suas mais diferentes formas, afastando-se a ideia puritana de pecado que a igreja católica tanto tentou introduzir. Porém, a partir do momento que causa reiterados danos a alguém, é importante que tenha algum tipo de intervenção.

Também se deve levar em consideração que a completa proibição não levaria necessariamente à extinção da indústria, só a tornaria ilícita. Com isso, continuaria gerando seus efeitos, deixando mulheres, principalmente as que atuam na área, sem o mínimo amparo jurídico e social.

Dito isso, adiante será analisada a forma que alguns países têm se posicionado sobre o assunto.

4.2. Legislações e discussões mundiais

Inicialmente, observa-se o posicionamento dos Estados Unidos da América, num momento em que a indústria pornográfica foi enxergada como possivelmente problemática.

Andrea Dworkin relatou em seu livro “Pornography: men possessing women” como tudo ocorreu. Na primavera de 1983, ela e Catharine MacKinnon foram contratadas pela cidade de Mineápolis para redigirem uma emenda à lei de Direito Civil, que reconheceria a pornografia como uma violação aos direitos civis das mulheres, como uma forma de sexo discriminatório e um abuso dos direitos humanos. Também tinham a responsabilidade de presidir audiências que providenciassem para o Legislativo um material demonstrativo da importância da lei.

As mulheres que compareceram às audiências relataram com detalhes como foram sexualmente abusadas por influência da pornografia. A lei foi aprovada duas vezes na cidade, em 1983 e 1984, por diferentes Conselhos, mas foi vetada nas duas vezes pelo mesmo prefeito.

Em 1984, a lei tinha sido aprovada em Indianápolis com uma redefinição que focava a pornografia violenta. Contudo, a cidade foi processada por conta disso, tendo os tribunais entendido pela sua inconstitucionalidade.

Já em Cambridge, Massachussets, a lei foi colocada em votação por petição popular em 1985, mas o conselho da cidade se recusou a permitir isso. As ativistas tiveram que entrar com uma ação para terem esse acesso, a qual tiveram êxito, sendo a cidade obrigada a colocar a lei em votação, a qual teve 42% dos votos favoráveis.

Em 1988, a lei também foi colocada em votação em Bellingham, Washington, obtendo 62% dos votos. Elas tiveram que, novamente, peticionar por uma ordem do tribunal que permitisse a votação. A cidade foi processada pela ACLU - American Civil Liberties Union - simplesmente por ter recebido a lei, tendo um juiz federal também entendido pela inconstitucionalidade da lei.

Dworkin esclarece que a lei atua no âmbito civil, não no criminal, permitindo que pessoas que já tenham sofrido danos por conta da pornografia possam processar por discriminação sexual. Esta conduta é entendida, dentro da lei, como: coagir, intimidar ou induzir mediante fraude qualquer pessoa à pornografia; forçar esta a alguém em qualquer lugar que esteja; agredir, atacar fisicamente ou ferir alguém de uma forma que seja diretamente causada por uma parte específica da pornografia. Nisso, os pornógrafos compartilham a responsabilidade sobre a agressão sofrida. Na versão da lei apresentada em Bellingham, discriminação sexual também abrangia as condutas de difamar qualquer pessoa por meio do uso não autorizado na pornografia do seu nome, imagem e/ou semelhança pessoal reconhecível, e de produzir, vender, exibir ou distribuir pornografia para traficar material que causa prováveis agressões as mulheres, assim como diminui seu status civil na sociedade.

A lei define a pornografia como a subordinação gráfica e sexualmente explícita de mulheres em imagens e palavras, como também suas representações como objetos ou mercadorias, que apreciam dor e humilhação, sentindo prazer ao serem estupradas. Também engloba a apresentação de mulheres amarradas, mutiladas ou fisicamente machucadas, em posições de submissão ou servidão, sendo penetradas por objetos ou animais, colocadas em cenários de tortura e degradação. O conteúdo também se classifica como pornográfico se homens, crianças ou transsexuais sejam usados das mesmas maneiras descritas.124

A autora ainda alega que a referida lei teve impacto global por diversas razões: ela informa a verdade sobre o que é pornografia e o que causa e sobre como mulheres são exploradas e machucadas por ela; procura expandir o discurso feminino e aumentar seu status civil, fazendo com que os tribunais sejam lugares onde tenham autoridade; funciona como um mecanismo redistribuidor de poder, visto que o atribui às pessoas prejudicadas; e passa a mensagem de que todas as mulheres importam, incluindo as que estão dentro da pornografia.

Além disso, o texto legal sustenta que a motivação dos recrutadores de cometer abusos é majoritariamente financeira. Por conta disso, as ações devem ser realizadas na seara do direito civil, buscando desincentivar a indústria pornográfica e compensar suas vítimas pelos danos sofridos. A criação de uma lei nesse sentido ocorre para dar uma causa de ação a elas, para que tenham a permissão de processar quem lhes prejudicou.125

Além da lei, há um movimento originário do país, mas já com visibilidade mundial, chamado de “Traffickinghub”. Ele foi fundado em fevereiro de 2020 por Laila Mickelwait com a intenção de fechar o Pornhub, maior site pornográfico do mundo, e responsabilizar seus empresários por lucrarem com o tráfico e a exploração sexual de crianças, mulheres e homens.126

De acordo com o site do Traffickinghub, em janeiro de 2020, Pornhub era o maior site de pornô do mundo, sendo o décimo mais visitado na Internet - superando Netflix, Amazon e Yahoo - e a terceira empresa tecnológica mais influente na sociedade, estando somente atrás da Google e do Facebook. Contudo, já em janeiro de 2021, Pornhub apagou 80% dos vídeos de seu site, perdeu todo o processamento de pagamento (MasterCard, Visa, Discover e PayPal), cancelou seu modelo de negócios e está, atualmente, enfrentando 7 processos judiciais e sob investigação em vários países por abuso sexual de crianças, tráfico sexual e outras atividades ilegais.

Já a Alemanha optou por criar uma lei que exige os sites pornográficos a só permitam seu acesso a pessoas com mais de 18 anos. Por conta disso, ela vem tentando bloquear os principais sites de pornô, que não possuem um sistema de verificação de idade,127 apesar de reconhecer ser uma restrição muito difícil de implementar.

Recentemente, no ano de 2020, o governo da Nova Zelândia utilizou meios publicitários para lançar um vídeo descontraído, com o objetivo de encorajar os pais a conversarem com seus filhos sobre sexo, acesso a sites pornográficos e perigos que a Internet pode trazer.128

O Ministério da Comunicação e Informação do Nepal bloqueou, em 2018, os sites pornôs, proibindo a produção e a distribuição de conteúdo sexual. Isso foi feito, pois o governo identificou a pornografia como a responsável pelo aumento dos casos de estupro no país e também reconheceu um aumento no vício nesses materiais, principalmente entre jovens e adultos, por conta do livre acesso proporcionado pela Internet. As empresas e as operadoras da Internet foram as principais críticas à mudança, alegando que é impossível bloquear todos os conteúdos por conta da quantidade de reproduções que possuem, assim como pela quantidade de plataformas novas que surgem todos os dias. Setores sociais do país também não ficaram satisfeitos com a medida, por entenderem que a proibição não é a maneira correta de combater os crimes sexuais.129

4.2.1. Brasil

Em relação a pornografia no Brasil, existem algumas regulamentações no Código Penal e no Estatuto da Criança e do Adolescente.

No CP130, tem-se a previsão do seguinte crime, incluído em 2018, pela Lei nº 13.718:

Art. 218-C. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio - inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática -, fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza a sua prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia:

Pena - reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o fato não constitui crime mais grave.

§ 1º A pena é aumentada de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços) se o crime é praticado por agente que mantém ou tenha mantido relação íntima de afeto com a vítima ou com o fim de vingança ou humilhação.

§ 2º Não há crime quando o agente pratica as condutas descritas no caput deste artigo em publicação de natureza jornalística, científica, cultural ou acadêmica com a adoção de recurso que impossibilite a identificação da vítima, ressalvada sua prévia autorização, caso seja maior de 18 (dezoito) anos.

Já o ECA131 prevê o seguinte em seus artigos 78 e 240 a 241-E, estes últimos incluídos em 2008, pela Lei nº 11.829:

Art. 78. As revistas e publicações contendo material impróprio ou inadequado a crianças e adolescentes deverão ser comercializadas em embalagem lacrada, com a advertência de seu conteúdo.

Parágrafo único. As editoras cuidarão para que as capas que contenham mensagens pornográficas ou obscenas sejam protegidas com embalagem opaca.

Art. 240. Produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, cena de sexo explícito ou pornográfica, envolvendo criança ou adolescente:

Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.

§ 1º Incorre nas mesmas penas quem agencia, facilita, recruta, coage, ou de qualquer modo intermedeia a participação de criança ou adolescente nas cenas referidas no caput deste artigo, ou ainda quem com esses contracena.

§ 2º Aumenta-se a pena de 1/3 (um terço) se o agente comete o crime:

I – no exercício de cargo ou função pública ou a pretexto de exercê-la;

II – prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade; ou

III – prevalecendo-se de relações de parentesco consangüíneo ou afim até o terceiro grau, ou por adoção, de tutor, curador, preceptor, empregador da vítima ou de quem, a qualquer outro título, tenha autoridade sobre ela, ou com seu consentimento.

Art. 241. Vender ou expor à venda fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente:

Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.

Art. 241-A. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou divulgar por qualquer meio, inclusive por meio de sistema de informática ou telemático, fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente:

Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.

§ 1º Nas mesmas penas incorre quem:

I – assegura os meios ou serviços para o armazenamento das fotografias, cenas ou imagens de que trata o caput deste artigo;

II – assegura, por qualquer meio, o acesso por rede de computadores às fotografias, cenas ou imagens de que trata o caput deste artigo.

§ 2º As condutas tipificadas nos incisos I e II do § 1 o deste artigo são puníveis quando o responsável legal pela prestação do serviço, oficialmente notificado, deixa de desabilitar o acesso ao conteúdo ilícito de que trata o caput deste artigo.

Art. 241-B. Adquirir, possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia, vídeo ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

§ 1º A pena é diminuída de 1 (um) a 2/3 (dois terços) se de pequena quantidade o material a que se refere o caput deste artigo.

§ 2º Não há crime se a posse ou o armazenamento tem a finalidade de comunicar às autoridades competentes a ocorrência das condutas descritas nos arts. 240, 241, 241-A e 241-C desta Lei, quando a comunicação for feita por:

I – agente público no exercício de suas funções;

II – membro de entidade, legalmente constituída, que inclua, entre suas finalidades institucionais, o recebimento, o processamento e o encaminhamento de notícia dos crimes referidos neste parágrafo;

III – representante legal e funcionários responsáveis de provedor de acesso ou serviço prestado por meio de rede de computadores, até o recebimento do material relativo à notícia feita à autoridade policial, ao Ministério Público ou ao Poder Judiciário.

§ 3º As pessoas referidas no § 2 o deste artigo deverão manter sob sigilo o material ilícito referido.

Art. 241-C. Simular a participação de criança ou adolescente em cena de sexo explícito ou pornográfica por meio de adulteração, montagem ou modificação de fotografia, vídeo ou qualquer outra forma de representação visual:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.

Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas quem vende, expõe à venda, disponibiliza, distribui, publica ou divulga por qualquer meio, adquire, possui ou armazena o material produzido na forma do caput deste artigo.

Art. 241-D. Aliciar, assediar, instigar ou constranger, por qualquer meio de comunicação, criança, com o fim de com ela praticar ato libidinoso:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.

Parágrafo único. Nas mesmas penas incorre quem:

I – facilita ou induz o acesso à criança de material contendo cena de sexo explícito ou pornográfica com o fim de com ela praticar ato libidinoso;

II – pratica as condutas descritas no caput deste artigo com o fim de induzir criança a se exibir de forma pornográfica ou sexualmente explícita.

Art. 241-E. Para efeito dos crimes previstos nesta Lei, a expressão “cena de sexo explícito ou pornográfica” compreende qualquer situação que envolva criança ou adolescente em atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou exibição dos órgãos genitais de uma criança ou adolescente para fins primordialmente sexuais.

Observa-se que o CP criminaliza a conduta de divulgar cenas de estupro ou de sexo, nudez e pornografia, estas sem o consentimento da vítima, no geral. Já o ECA traz penas privativas de liberdade para quem associe, de qualquer maneira, crianças e adolescentes à pornografia, independentemente de consentimento, o que se justifica diante do status de vítima vulnerável.

Além dessas previsões legislativas, uma busca no site da Câmara Legislativa e do Senado Federal, feita para verificar a existência de material mais recente sobre o assunto com a palavra-chave “pornografia”, mostrou que, apenas no ano de 2020, cinco projetos de lei sobre o tema foram propostos, e mais um foi proposto no ano de 2021, assim como quatro ideias legislativas, duas no ano de 2020 e duas no ano de 2021. Todos os PL’s ainda se encontram em análise e ambas as ideias legislativas não obtiveram apoio suficiente para seguirem adiante. Na sequência, analisa-se alguns pontos relevantes observados.

Dos seis PL’s apresentados, três deles132, todos da Câmara dos Deputados, têm o objetivo de aumentar a pena cominada para crimes de cunho sexual ou que envolvem pornografia, assim previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente e no Código Penal. Dentre as motivações, em suma, está o fato de relevante aumento desses crimes durante o isolamento social; tais condutas merecerem uma resposta mais dura do Estado por serem socialmente reprováveis; e para impedir a concessão de fiança e para permitir a prisão preventiva de quem comete tais crimes, visto que para tal precisam de uma pena mínima superior as atualmente cominadas.

Os outros três PL’s133 optaram por diferentes caminhos. Um deles, apresentado no Senado Federal, busca uma mera atualização legislativa para incluir os novos tipos penais do Código Penal no rol dos crimes que autorizam a infiltração da polícia na Internet. Já o outro, originário da Câmara dos Deputados, traz como proposta a obrigatoriedade dos sites com conteúdo adulto de realizarem uma fiscalização etária de seus visitantes na hora do acesso, para evitar que menores de idade consumam livremente os materiais pornográficos, assim como a diminuição do cyberbullying e da pedofilia. Por fim, o terceiro PL encontrado, proposto também na Câmara, tem o objetivo de implementar o “Fevereiro cinza”, uma campanha destinada a promover ações, ao longo do mês de fevereiro, que conscientizem sobre os custos sociais da pornografia e seus efeitos nocivos para a saúde mental e física e para os relacionamentos.

Em relação às ideias legislativas encontradas no Senado Federal,134 apenas uma se diferiu das demais ao propor uma política pública para educar sobre os possíveis males do conteúdo pornográfico: ao acessar o site, o visitante seria redirecionado para uma página do Ministério da Saúde contendo todos os avisos importantes. Todas as outras três optaram por buscar pela criminalização da pornografia, com sua completa proibição, seja para preservar a família e a dignidade humana, seja para erradicar os males que o conteúdo traz.

Nos sites ainda foi possível encontrar PL’s e ideias legislativas mais antigas, observando-se que é um assunto que já vem sendo debatido há alguns anos. Majoritariamente, as propostas apresentaram o objetivo de criminalizar ou aumentar a pena de algum crime, percebendo-se que o conteúdo em si não mudou muito para as propostas mais atuais.

Primeiramente, observa-se que das dez propostas propriamente analisadas, apenas uma foi idealizada por uma mulher, a saber, um dos PL’s que aumenta as penas cominadas no ECA para os crimes de pornografia infantil. Isso pode evidenciar, mais uma vez, a perpetuação do papel das mulheres como coadjuvantes até dentro dos contextos que as dizem respeito, visto que, como já ressaltado, elas são as que mais sofrem com os males da pornografia, seja dentro ou fora da indústria. Acredita-se que qualquer legislação que venha a ser feita e aprovada sobre o tema, deve ser elaborada por mulheres que realmente entendam sobre o funcionamento da indústria e seus possíveis efeitos colaterais, para que seja uma lei que efetivamente funcione na prática.

Outro ponto importante de se destacar é que a maioria das iniciativas mencionadas possuem conteúdo limitado ao campo do Direito Penal. Já se verificou que a pornografia é um problema estrutural dentro da sociedade, que atinge mundialmente os cidadãos, causando danos físicos, morais e psicológicos. Com isso, uma mera criação de uma lei penal ou uma mudança legislativa não é capaz de resolver o problema na sua raiz. A questão acaba se limitando à superfície do problema, servindo apenas como uma medida paliativa - quando serve -, sem funcionar como uma solução real.

Além disso, atualmente já existem estudos que apontam para a ineficácia do aumento de pena como método de redução da criminalidade,135 não tendo uma pena maior o cunho de funcionar como uma intimidação para as pessoas não cometerem certos crimes, não sendo uma efetiva medida para prevenir o delito. É necessário que a letra da lei seja alinhada com alguma política pública que a torne eficaz, como por exemplo, a implementação de educação sexual nas escolas brasileiras. Também, é importante existir programas focados em amparar as vítimas, a dar todo o suporte psicológico necessário e que possa fornecer ferramentas concretas que as possibilitem de buscar alguma reparação do dano que sofreram.

Por fim, é evidente que manter a discussão no âmbito do Direito Penal não é o caminho para acabar com os problemas da pornografia. Esta atinge a sociedade de diferentes formas, exigindo uma interdisciplinaridade nas suas soluções propostas, alinhando a questão criminal com o Direito Civil, com políticas públicas dentro do Ministério da Saúde, com ampla divulgação dos males da pornografia, entre outros.

Das propostas avaliadas, as que aparentemente se enquadram nesse quesito são a que propôs um redirecionamento a uma página do Ministério da Saúde com informações sobre os males da pornografia, ao acessar um site de vídeos pornôs, e a campanha do “Fevereiro cinza”. Ambas são exemplos de como essa conscientização pode ser feita e divulgada para a sociedade, mas é importante ressaltar que, isoladas, elas não têm como terem força suficiente para lidar com um problema dessa dimensão.

O caminho a ser percorrido é longo, mas ele precisa começar em algum lugar. Dessa forma, um estudo bem detalhado e pormenorizado acerca da pornografia e do que ela é capaz de causar, quem são suas vítimas, como e com o que elas sofrem, pode ser capaz de encontrar as melhores formas para lidar com a questão.

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