O combate ao lawfare: esforços legislativos em resposta a abusos jurídicos

25/03/2024 às 10:11
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1. Breve introdução

De modo sintético, conceitua-se lawfare como a estratégia deliberada de utilizar o sistema jurídico com o objetivo de desacreditar, prejudicar ou até mesmo neutralizar um oponente. Trata-se, essencialmente, do uso do direito como arma de guerra, intencionando-se alcançar efeitos semelhantes àqueles encontrados em ações militares convencionais, tais como causar danos, minar a legitimidade ou compelir a parte contrária a desperdiçar tempo e recursos financeiros em disputas judiciais1.

Nos últimos anos, essa prática tem recebido maior atenção dos nossos legisladores, em razão do prejuízo causado às vítimas2, à política e à economia nacional. Neste artigo exploraremos o lawfare sob duas perspectivas complementares entre si: a) aquele feito contra indivíduos; e b) aquele direcionado a empresas. Com esse propósito, traçaremos um panorama das proposições em tramitação no Congresso Nacional que visam ao combate de abusos e à proteção aos direitos individuais.


2. A prática de lawfare contra pessoas

Como se sabe, nos últimos anos houve um substancial incremento na ocorrência de casos de lawfare contra indivíduos. Entre os alvos principais dessa prática deletéria estão os dissidentes políticos, os ativistas sociais e os jornalistas. É bastante nítido que os perpetradores buscam silenciar as vozes dissidentes, numa postura que tem por fim minar o Estado Democrático de Direito.

Na política, a prática do lawfare tem um efeito ainda mais danoso: afastar desse campo pessoas que poderiam apresentar contribuições relevantes à comunidade. Em nosso país, é natural que bons quadros hesitem antes de assumirem certos cargos, por saberem que junto dessa responsabilidade poderá vir um passivo judicial que se estenderá por toda a vida do indivíduo, além do consequente prejuízo à imagem pública.

Alinhado ao propósito de vedar essa prática nefasta, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 6474, de 2019, apresentado pelo deputado João Daniel3.

Esse projeto – pioneiro no Brasil – altera a Lei dos Crimes Hediondos (Lei nº 8078, de 1990), para definir como crime a prática de lawfare por juízes, desembargadores e procuradores. Na visão do deputado, o conluio entre membros do Ministério Público e magistrados, assim como a utilização da mídia, acarretam prejuízo à ampla defesa da parte ré.

Já o Projeto de Lei nº 2015, de 2023, de autoria do senador Rogério Carvalho4, criminaliza a prática de lawfare atribuindo-lhe pena de 1 a 4 anos, e multa. Ademais, o projeto do senador sergipano amplia o rol de nulidades expressas no Código de Processo Penal (Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941), para prever que são hipóteses de nulidade processual, entre outras: a) a violação do direito do defensor de examinar o inteiro teor dos procedimentos de investigação criminal; b) a pescaria probatória (fishing expedition), caracterizada pela busca especulativa sem justificativa substancial, sem causa provável ou sem delimitação precisa do objeto jurídico; c) o desrespeito ao dever de que os advogados sejam mantidos no mesmo plano topográfico e em posição equidistante em relação ao magistrado, conforme previsto no art. 6, § 2º, do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei nº 8.906, de 1994); e d) inexistência de voluntariedade em acordos de colaboração premiada ou de não persecução, inclusive nas situações em que prisão de qualquer espécie for utilizada como meio de coação.

Propõe-se, também, alteração de grande relevância para a dinâmica processual: a revogação do art. 563. do Código de Processo Penal. Como aponta Aury Lopes Júnior, o mencionado dispositivo é interpretado como uma licença para que o intérprete se valha da categoria da “relativização das nulidades”, a qual é própria do processo civil e absolutamente inadequada ao processo penal. Portanto, é essencial que a forma, no processo penal, não seja vista apenas como mero requisito burocrático, mas sim como uma garantia e limite de poder.

Feitas essas considerações, tratemos agora do lawfare contra empresas.


3. A prática de lawfare contra empresas

A literatura especializada5 aponta o uso da legislação anticorrupção como ferramenta de guerra econômica, no contexto das disputas empresariais. Sob esse prisma, a aplicação extraterritorial da legislação de alguns países intensifica a possibilidade de que empresas estrangeiras concorrentes sejam alvo de punições por práticas no exterior, sem que tenham instrumentos para proteger-se de abusos nas investigações e condenações.

A respeito disso, Pierucci e Matthiew ressaltam que o valor total das multas pagas por empresas sob a legislação norte-americana anticorrupção (Foreign Corrupt Practices Act – FCPA) foi de apenas 10 milhões de dólares em 2004, tendo o valor subido vertiginosamente para 2,7 bilhões de dólares no ano de 2016. Nesse cenário, as empresas estrangeiras foram as mais impactadas, arcando com a maior parte do valor das multas aplicadas. De fato, entre os anos de 1977 e 2014, apenas 30% das investigações do FCPA tiveram empresas não americanas como alvo; porém, estas foram responsáveis por 67% do valor das multas pagas, numa evidente desproporção.

Assim, entes e órgãos anticorrupção têm sido acionados por grandes corporações com o único propósito de causar danos às empresas concorrentes. Disputas que deveriam existir apenas no mercado (economia) são, impropriamente, transferidas para as arenas judicial e administrativa6.

Ciente dessa situação, o senador Rogério Carvalho apresentou o Projeto de Lei nº 2016, de 2023. Essa proposição encontra-se em tramitação na Câmara Alta7.

Trataremos, adiante, de seus principais pontos.

Entre outras medidas, o projeto ataca diretamente o problema da cooperação jurídica informal e irrestrita com órgãos e entes internacionais, comum em casos de lawfare contra empresas brasileiras. Sob essa perspectiva, a proposição estabelece que será de responsabilidade do Ministério das Relações Exteriores ou das autoridades centrais de cooperação a responsabilidade por proibir o envio de informações ou documentos de natureza sensível, os quais, caso conhecidos por órgãos estrangeiros, podem, potencialmente, comprometer a soberania, a segurança, a ordem pública ou os interesses vitais da República Federativa do Brasil.

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Dessa forma, essas instâncias nacionais desempenharão o papel de filtro essencial, evitando que informações sensíveis de empresas nacionais (segredos industriais etc.) sejam levadas a conhecimento de órgãos ou entes estrangeiros, causando prejuízo concorrencial às empresas brasileiras.

Outra alteração legislativa da proposta é a instituição – naqueles cenários onde há lacuna quanto à existência de acordos, tratados ou convenções – da proibição de qualquer troca de informações entre autoridades judiciárias e ministeriais nacionais ou estrangeiras sem o envio prévio de cópia do formulário de requerimento de diligências de auxílio direto ao Ministério da Justiça e à Advocacia-Geral da União. Essa medida objetiva evitar que a cooperação internacional se faça com propósitos obscuros e distantes de qualquer publicidade ou controle democrático.

Ademais, o projeto do senador sergipano altera o atual art. 18. da Lei nº 12846, de 2013, invertendo sua atual (e perversa) lógica. Sob essa ótica, a quitação na esfera administrativa criará presunção de ressarcimento na esfera judicial. Isso evitará que da constatação de culpa na esfera administrativa resultem inúmeros litígios judiciais, levando à insolvência empresarial.

Embora sejam pontuais, essas modificações, tomadas em sua totalidade, têm por efeito alterar o sentido e a racionalidade geral do nosso sistema jurídico, reforçando-se a necessidade de punir indivíduos – e não empresas – preservando a economia e os empregos.


4. Conclusão

Diante do exposto, evidencia-se a necessidade premente em combater-se o lawfare em todas as suas formas. As propostas legislativas em trâmite no Congresso Nacional constituem um relevante avanço nesse sentido. Todavia, é necessário rememorar, sempre, que a eficácia dessas (e outras) medidas depende de sua efetiva implantação. É necessário que entes e órgãos estejam atentos à postura de seus agentes, coibindo práticas irregulares com rigor. Somente uma abordagem multidisciplinar (que conte, sobretudo, com as contribuições do direito, da psicologia, da economia e da ciência política), multifacetada e colaborativa poderá conter esse fenômeno, o qual, em última análise, corrói nosso Estado Democrático de Direito.


Notas

  1. Conforme ZANIN MARTINS, Cristiano; ZANIN MARTINS, Valeska Teixeira; VALIM, Rafael. Lawfare: uma introdução. São Paulo: Editora Contracorrente, 2019. p. 24.

  2. Vide RODRIGUES, Amanda. O outro lado: o quebra-cabeça da Justiça na Operação Calvário. Curitiba: Kotter Editorial, 2020.

  3. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2234380 . Acesso em 23.03.2024.

  4. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/156993 . Acesso em 23.04.2024.

  5. PIERUCCI, Frédéric; ARON, Matthiew. Arapuca Estadunidense: uma Lava Jato Mundial. Kotter Editorial, 2021.

  6. Sob a perspectiva da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann, a imposição da lógica de um sistema a outro equivale, em última análise, a uma predação, a qual pode causar colapso sistêmico. Vide LUHMANN, Niklas. Sistemas sociais: esboço de uma teoria geral. Petrópolis: Editora Vozes, 2016.

  7. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/156994 Acesso em 23.02.2024

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Sobre o autor
Marcus Paulo da Silva Cardoso

Graduado em Direito. Especialista em Direito Público.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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