Breves Notas sobre as Alterações Promovidas pela Lei 14.620/2023 no Sistema Jurídico.

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25/03/2024 às 16:44
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RESUMO

SPARGOLI, R. G. Notas Sobre as Alterações Promovidas pela Lei 14.620/2023 no sistema jurídico. 2023. 61 f. Artigo (Revista da Procuradoria Geral do Município de Niterói), 2023.

Neste artigo, será elaborado um estudo em relação as inovações trazidas pela nova lei 14.620/2023, publicada no dia 07 de Julho de 2023. Essa lei trouxe relevantes alterações no sistema jurídico brasileiro, sobre direitos reais, regras de desapropriação, regras de parcelamento do solo urbano, regras do Fundo de Garantia de Tempo de Serviço (FGTS), alterou regras da lei de regularização fundiária, inseriu o direito real de imissão na posse, entre outros assuntos. O objetivo principal dessa lei é retomar o programa Minha Casa, Minha Vida do governo federal, bem como promover alterações que facilitem a inclusão de moradores de baixa renda nos programas federais de financiamento, com o fim de obtenção de moradia digna. Em que pese o objetivo da lei, algumas alterações não foram tão vantajosas assim ou possuem problemas ou geram riscos, além de contrariar o restante do sistema jurídico brasileiro já estabelecido. Convidamos o leitor a acompanhar as alterações promovidas pela referida lei.

Palavras-Chave: Direitos Reais. Desapropriação. Imissão na Posse. Parcelamento do Solo Urbano. Regularização Fundiária. Minha Casa, Minha Vida. Moradia Digna

SUMMARY

SPARGOLI, R. G. Notes on the Changes Promoted by Law 14.620/2023 in the legal system. 2023. 64 f. Paper (Revista da Procuradoria Geral do Município de Niterói), 2023.

In this paper, a study will be carried out in relation to the innovations brought by the new law 14.620/2023, published on July 07, 2023. This law brought relevant changes to the Brazilian legal system, on real rights, expropriation rules, rules for installment urban land, rules of the Severance Indemnity Fund (FGTS), amended the rules of the land regularization law, inserted the real right of immission in possession, among other matters. The main objective of this law is to resume the federal government's “Minha Casa, Minha Vida” program, as well as to promote changes that facilitate the inclusion of low-income residents in federal financing programs, with the aim of obtaining decent housing. Despite the purpose of the law, some amendments were not so advantageous or have problems or generate risks, in addition to contradicting the rest of the already established Brazilian legal system. We invite the reader to follow the changes promoted by the aforementioned law.

Key Words: Real rights. Expropriation. Imission in Possession. Subdivision of Urban Land. Land regularization. My home, my life. Decent Housing.

SUMÁRIO

1 – Introdução.

2 – Alterações no Programa Minha Casa, Minha Vida e na lei do FGTS

3 – Alterações promovidas pela lei 14.620/2023 realizadas no Código Civil

4 - Das Alterações Provocadas no Decreto 3365/41.

5 – Das alterações provocadas pela lei 14.620/2023 no Código de Processo Civil.

6 – Da Reforma produzida pela lei 14.620/2023 na lei de Parcelamento do Solo Urbano (Lei 6766/76)

7 – Outras alterações promovidas pela lei 14.620/2023

8 – Observações Finais: As grandes inovações e críticas da lei 14.620/2023 no ordenamento jurídico.

9 – Conclusão.

Referências

Notas Sobre as Alterações Promovidas pela Lei 14.620/2023 no sistema jurídico.

1 – Introdução.

O presente artigo vem com o objetivo de analisar as alterações promovidas pela lei 14.620/2023, lei que foi aprovada recentemente, no dia 13 de Julho de 2023, entrando em vigor na data da publicação (art. 44 da Lei).

A referida lei vem trazendo modificações ao Programa Minha Casa, Minha Vida, bem como realiza uma série de alterações em outras leis, tais como o Código Civil, a lei de Parcelamento do Solo Urbano (Lei 6.766/76), a lei de registros públicos (lei 6.015/73), promove alterações no Decreto 3.365/41, que trata do instituto da desapropriação, realiza alterações no Código de Processo Civil, bem como realiza alterações em outras leis de menor relevância para fins acadêmicos.

A referida lei traz importantes alterações para diversas disciplinas jurídicas, como direito civil, direito urbanístico, direito administrativo, direito processual civil, entre outros ramos do direito. Realizaremos a análise neste texto daquelas alterações que pareceram ser as mais relevantes.

2 – Alterações no Programa Minha Casa, Minha Vida e na lei do FGTS.

A referida lei traz em seu conteúdo um corpo permanente de normas, de conteúdo próprio sobre o Programa Minha Casa Minha Vida. Desde o artigo 1 da referida lei, a norma legal já demonstra os objetivos trazidos pela lei, indicando que o programa tem o objetivo de desenvolver questões relacionadas ao direito à cidade e à moradia. A aludida lei também se debruça sobre temas como o desenvolvimento urbano, econômico social e cultural.

Também traz questões relacionadas com a sustentabilidade, com a redução de vulnerabilidades sociais, a prevenção de riscos de desastres, geração de trabalho e renda, entre outros temas1. De início, a lei parece ter um caráter bastante abrangente, desejando intervir em diversas questões, desde direito civil, ao direito ambiental, passando pelo direito urbanístico e administrativo, inovando até mesmo em direito processual.

Ainda no corpo permanente de normas da lei, o texto apresenta no seu art. 22 os objetivos do Programa Minha Casa Minha Vida, em enumeração ampla, contendo dez incisos. Os objetivos do programa praticamente reproduzem os objetivos da lei indicados no artigo 1, especificando um pouco mais tais objetivos. Merece destaque o inciso VI, que trata do planejamento e mitigação dos desastres naturais e o inciso X, que trata da ampliação e facilitação da infraestrutura de conectividade e dos serviços de telecomunicações.

O inciso VI incentiva a proteção ambiental e a prevenção dos desastres naturais indo no sentido do princípio da prevenção ambiental, embora tal preocupação já estivesse prevista em outras leis. Tal norma parece mais um lembrete, de que é importante a realização de procedimentos prévios para evitar desastres naturais no âmbito das cidades.

O inciso X trabalha com a ampliação de infraestrutura e de conectividade dos serviços de telecomunicações. Aparentemente, a preocupação da lei é com a questão das cidades inteligentes, as chamadas smart cities, tendência do momento. A ideia de gerar cidades interconectadas com a internet, com ampla capacidade de rede, com aplicação da internet das coisas, dentro da ideia de execução da rede 5G, no Brasil.

O artigo 3 da Lei 14.620/20233 traz as diretrizes do programa, em seus dezenove incisos. É relevante destacar o inciso XVII desse dispositivo, eis que trata da figura do retrofit de prédios degradados, subutilizados ou não utilizados, localizados em áreas centrais da cidades brasileiras. Trata-se de trabalhar com a restauração de prédios antigos, com a preservação da arquitetura original do prédio.

Essa também tem sido uma tendência contemporânea no chamado direito das cidades. Só que a lei prioriza os prédios de pequeno porte, com até 200 unidades habitacionais. Embora a lei use o termo “pequeno porte”, parece que um prédio de até 200 unidades habitacionais, não parece ser de pequeno porte. Numa unidade habitacional isolada destas, há a possibilidade de viverem de 4 a 5 pessoas, podendo o número até ser maior em determinados casos. Levando-se em conta o número de pessoas que podem habitar o prédio, mulplicado pelo número de unidades habitacionais, pode-se chegar a um número de 1000 pessoas habitando o mesmo prédio ou até mais. Talvez, isso não seja um prédio de pequeno porte. Porém, parece ser uma tentativa da lei de ampliar a atuação do programa para atingir prédios degradados em grandes cidades, como Rio de Janeiro e São Paulo, que servem de habitação coletiva para muitas pessoas. Resta saber se a diretiva será bem aplicada para salvar aqueles prédios que ainda estejam em condições de habitação, sem que isso se torne um instrumento para tentar “salvar” prédios condenados pela defesa civil, sem condições mínimas de salubridade e de manutenção.

Os incisos III e XIX do artigo 3 devem ser analisados em conjunto. A lei trata da função social da propriedade e da função social do direito à moradia. No inciso XIX, a norma indica que a União deverá priorizar projetos em Municípios que apliquem os mecanismos de garantia da Função Social da Propriedade, previstos no Estatuto da Cidade.

Aqui a lei exige que a União priorize o financiamento de projetos localizados em Municípios que já tenham leis próprias ou disciplina própria em seu Plano Diretor estabelecendo regras para o parcelamento, uso e edificação compulsórios do solo urbano, aplicação do IPTU progressivo no tempo (função extrafiscal do IPTU) e desapropriação do imóvel urbano, com pagamento em títulos da dívida pública, nos moldes do art. 182, § 4 da CRFB e art. 5 a 8 da Lei 10.257/01. Trata-se de uma determinação legal que obriga a União a investir em Municípios que apliquem os mecanismos de proteção da Função Social da Propriedade, valorizando a autonomia Municipal.

Em que pese ser salutar a previsão, de modo a incentivar que todos os municípios estabeleçam suas próprias regras de cumprimento da Função Social da Propriedade na Cidade, há de se ressaltar que a previsão não pode virar uma obrigação no sentido do Governo Federal não investir em Municípios menores, com população menor, que não estejam por lei obrigados a expedir o Plano Diretor ou a estabelecer normas de proteção da Função Social da Propriedade. A lei usa o termo “priorizar”, justamente por isso. Não cabe a União obrigar a todos os mais de 6.000 Municípios Brasileiros a estabelecerem leis de proteção da Função Social da Cidade, primeiro em razão da preservação da autonomia municipal e do pacto federativo. Segundo, em razão de haver municípios de baixo contingente populacional, sem grande circulação de pessoas ou de riquezas, nos quais a fixação dos mecanismos de proteção não sejam a prioridade do Município.

Se há Municípios que não cobram os próprios impostos da competência municipal, por não haver no respectivo Município fluxo suficiente de pessoas e de riquezas para estabelecer a cobrança da exação, não faz sentido que a lei ou a interpretação jurídica obriguem tais Municípios a fazê-lo. Se não há previsão na lei municipal para a cobrança do IPTU com caráter fiscal, aquele que serve para custear o Município, a máquina municipal, com toda certeza não fará nenhum sentido que a lei municipal possua o IPTU extrafiscal, progressivo no tempo. Deve haver aplicação correta da disposição legal, de acordo com as peculiaridades do próprio Município, bem como haver uma preocupação com o desenvolvimento social e da economia do Município.

Prosseguindo, o artigo 4º da Lei debatida prevê a forma com que os objetivos do programa serão alcançados, por meio das linhas de atendimento que considerem as necessidades habitacionais, elencando as necessidades habitacionais. Trata da provisão subsidiada de unidades habitacionais novas, requalificadas e retrofitadas em áreas urbanas e rurais (inciso I), também em unidades habitacionais derivadas de requalificação em retrofit de prédios degradados, subutilizados ou não utilizados até 200 unidades habitacionais (inciso II), provisão financiada de unidades habitacionais novas, usadas, requalificadas ou retrofitadas (inciso III), fomento à criação de mercados de locação social de imóveis em áreas urbanas (inciso IV), provisão de lotes urbanizados, dotados da adequada infraestrutura (inciso V), melhoria habitacional em áreas urbanas e rurais (inciso VI), apoio financeiro a programas e ações habitacionais de interesse social desenvolvidos por Estados e Munícipios (inciso VII), projeto Moradia Primeiro (inciso VIII) e regularização fundiária (inciso IX).

Aparentemente, a lei faz distinção entre subsídio (inciso I) e provisão financiada (inciso III). A lei deixa claro que aceitará a realização de incentivos4 através de subsídios5, já que o financiamento direto encontra-se em outro inciso. Em geral, as leis que trabalham com o tema dos incentivos via financiamento e subsídios tratam como expressões sinônimas. A lei estabelece uma distinção entre provisão financiada e subsídio, o que não parece ter sido a opção mais técnica. Mas, como os subsídios são tratados em lei como incentivos à empresas (subvenções)6, talvez o legislador tenha feito a distinção para que a chamada “provisão financiada” recaia sobre pessoas naturais, estabelecendo um distinção entre os incisos.

Além do art. 4 da Lei 14.620/2023, há outras menções interessantes no corpo da lei. Por exemplo, o art. 6, V indica que o programa será constituído por alguns recursos, elencando entre eles o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). A lei também traz no artigo 9º menção ao FGTS, indicando regras para a subvenção econômica destinada à pessoa física que tenha por objetivo proporcionar a aquisição ou a produção por meio do programa, que será concedida apenas uma única vez. Traz vedações a concessão de tal financiamento para pessoas que já tenham financiamento junto ao Sistema Financeiro de Habitação (SFH), pessoas que já sejam proprietárias, promitentes compradoras ou titulares de direito de aquisição, de arrendamento, de usufruto ou de uso de imóvel residencial, regular, com padrão mínimo de edificação e de habitabilidade estabelecido pelas regras da administração municipal e pessoas que tenham recebido, nos últimos 10 (dez) anos, benefícios similares oriundos de subvenções econômicas concedidas com recursos do Orçamento-Geral da União, do FAR, do FDS ou provenientes de descontos habitacionais concedidos com recursos do FGTS.

A lei parece permitir que a pessoa natural possa sacar os depósitos de FGTS acumulados, bem como agregá-los com o financiamento do governo, desde que seja o primeiro financiamento habitacional daquela pessoa. Reforça aquilo que fora dito anteriormente para o artigo 4: a lei faz distinção entre subsídios e provisões financiadas, destinando o segundo instituto para o financiamento de pessoas naturais.

A lei também altera a lei 8.036/90, lei que regulamenta o FGTS. Revoga os artigos 6-B, artigo 9, § 3, III, § 3-B e § 3-C,§ 12,§ 15, §16,§ 17, artigos 20-D,§ 3-A, da lei. Também incluí os §§ 27 e 28 no artigos 20 da lei do FGTS.

Chama a atenção a inclusão promovida no artigo 20, § 277 da Lei 8.036/90, que permite que os depósitos do FGTS sejam objeto de alienação ou de cessão fiduciária para liquidação, amortização ou pagamento de parte das prestações decorrentes de financiamento habitacional concedido no âmbito do SFH, observadas as condições estabelecidas pelo Conselho Curador do FGTS, mediante “caucionamento” dos depósitos a serem realizados na conta vinculada do trabalhador.

O dispositivo parece permitir que a União e as instituições financeiras participantes do programa de financiamento possam receber diretamente os valores financiados e parcelados através do desconto dos depósitos realizados na conta vinculada do FGTS do trabalhador. A conta vinculada do FGTS do empregado é que servirá como garantia do financiamento, podendo haver o desconto direto na conta vinculada do empregado, nos casos de não pagamento. A norma não parece fazer distinção entre instituições financeiras privadas ou públicas, que financiem a aquisição da habitação. A regra parece se afastar do princípio protetivo do trabalhador e do consumidor, caminhando para uma perspectiva de superendividamento do indivíduo8. É uma forma de garantia da dívida do financiamento do Sistema Financeiro de Habitação (SFH), com os depósitos de FGTS.

A lei reforça o rigor da regra do artigo 20, § 27 da Lei 8.036/90, com alteração realizada pela lei 14.620/2023, com a inserção do parágrafo 289 no mesmo dispositivo legal. Pela aplicação conjunta dos parágrafos enxertados, chega-se a conclusão que o artigo 20, § 27 é aplicável permitindo os descontos dos depósitos de FGTS e não é possível a alegação do art. 2,§ 2 da Lei 8.036/9010, que aduz que os valores depositados na conta vinculada de FGTS são absolutamente impenhoráveis. A regra flexibiliza a impenhorabilidade dos valores depositados na conta vinculada de FGTS do trabalhador para permitir o financiamento, servindo de garantia para as instituições financeiras tais depósitos, sem que o trabalhador possa invocar a impenhorabilidade.

A regra não é favorável ao trabalhador e deixa dúvidas em relação aos financiamentos já em curso. Será que é possível aplicar tal regra aos contratos vigentes, cujo financiamento foi celebrado com base nas antigas disposições (?) É necessário esperar para avaliar como a doutrina e a jurisprudências irão se orientar a respeito do tema. Mas, com tais regras, parece não ser uma boa medida tomar o financiamento habitacional. Até mesmo em razão da possibilidade do empregado poder perder o emprego, mas ficando ainda preso ao pagamento do financiamento habitacional. Deveras, o empregado pode ver todo o dinheiro aportado na conta vinculada do FGTS se esvair em caso de desemprego, sem que consiga adimplir com a obrigação contratada, ensejando a possibilidade de retomada do bem.

Ainda, a lei 14.620/2023 prevê a provisão subsidiada de unidades habitacionais com emprego de dotação orçamentária da União e com recursos do FNHIS, do FAR ou do FDS, as famílias: que tenham a mulher como responsável pela unidade familiar (inciso I), de que façam parte: pessoas com deficiência (inciso II, a), inclusive aquelas com transtorno do espectro autista, pessoas idosas (inciso II, b), crianças ou adolescentes (inciso II, c), pessoas com câncer ou doença rara crônica e degenerativa (inciso II, d), em situação de vulnerabilidade ou risco social (inciso III), que tenham perdido a moradia em razão de desastres naturais em localidade em que tenha sido decretada situação de emergência ou estado de calamidade pública (inciso IV), em deslocamento involuntário em razão de obras públicas federais (inciso V), em situação de rua (inciso VI), que tenham mulheres vítimas de violência doméstica e familiar (inciso VII), residentes em área de risco (inciso VIII), integrantes de povos tradicionais e quilombolas (inciso IX).

No art. 10, a lei indica que os contratos e os registros efetivados no âmbito do Programa serão formalizados, prioritariamente, no nome da mulher e, na hipótese de ela ser chefe de família, poderão ser firmados independentemente da outorga do cônjuge, afastada a aplicação do disposto nos arts. 1.647, 1.648 e 1.649 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).

Em ambos os dispositivos há a preocupação do legislador com a proteção de pessoas em situação de vulnerabilidade. Ocorre que devido a algumas regras específicas da lei, como a regra do FGTS supracitada, há dúvidas se realmente a lei foi editada para favorecer populações em situação de vulnerabilidade social e econômica11, pois o regime pode ser até mais gravoso do que aquele existente anteriormente. A lei não tem como objetivo estipular taxas de juros ou condições mais favoráveis para o financiamento, mas permite os descontos dos depósitos do FGTS da conta vinculada do trabalhador para garantir o financiamento, o que pode configurar verdadeiro “presente de grego” ou “cavalo de Tróia” para aqueles que resolvam aderir ao financiamento, considerando como benéfico, sem olhar as letras pequenas.

Dentro do corpo principal da lei, essas talvez sejam as alterações mais significativas da lei que retoma o Programa Minha Casa Minha Vida. Nos tópicos, seguintes abordaremos sucintamente algumas alterações promovidas pela 14.620/2023 sobre outros diplomas normativos.

3 – Alterações promovidas pela lei 14.620/2023 realizadas no Código Civil

A lei 14.620/2023 alterou levemente a lei 10.406/2002 (Código Civil) para inserir algumas disposições legais. Não promoveu a revogação de dispositivos. Embora breve tenha sido a alteração, a mesma pode gerar intensos debates. Vamos analisa-la.

A primeira menção que a nova lei traz alterando o Código Civil de 2002 recai sobre o artigo 1.225 do Código Civil, que traz o rol de direitos reais. Tal rol sempre foi considerado pela doutrina de direito civil como um rol taxativo12, rol limitado, uma vez que os direitos reais podem impor restrições ao direito de propriedade, protegido constitucionalmente. O rol também demanda previsão legal, visto que atos normativos infralegais não poderiam criar tais direitos, devido ao princípio da tipicidade dos direitos reais13, que estão sujeitos a reserva legal.

Realizando uma análise do dispositivo, a lei 14.620/2023 insere “3 direitos reais” (?). Na verdade, a lei republicou a concessão de direito real de uso e o direito real de laje. Procedeu a “alteração legislativa”, sem realizar qualquer alteração no dispositivo, eis que o direito real de laje e a concessão de direito real de uso já encontravam previsão no código civil. A curiosa “alteração”, parece mais uma republicação do dispositivo para fins políticos, de reivindicação dos benefícios populares e aquisição de espólio político, frutos da aprovação de tais direitos reais, do que uma real inovação no ordenamento jurídico14. A lei 13.465/2017 já estabelecia legalmente tais situações como hipóteses de direitos reais.

Porém, como referido acima, a lei trouxe “3 direitos reais”, um deles realmente é inédito. A lei 14620/2023 trouxe como direito real: “os direitos oriundos da imissão provisória na posse, quando concedida à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios ou às suas entidades delegadas e a respectiva cessão e promessa de cessão” (inciso XIV). Essa previsão realmente inova no ordenamento jurídico, uma vez que inaugura novo direito real.

A imissão na posse por parte dos entes federativos está prevista no Decreto 3365/41, decreto que trata das desapropriações por utilidade pública, que também sofreu alterações da lei 14.620/2023. Trata-se de instituto que permite que o Poder Público adentre no imóvel particular objeto do procedimento de desapropriação (art. 15 do Decreto 3365/41). É instituto de direito administrativo que permite que o Ente Federativo possa adquirir de imediato a posse do bem do particular, imitindo-se na posse do bem durante o processo judicial de desapropriação15, com o objetivo de satisfazer o interesse público, ainda dentro da lógica de supremacia do interesse público sobre o interesse privado.

A imissão provisória na posse não transfere a propriedade do particular para o domínio do Poder Público, mas gera uma situação geralmente irreversível para o particular. O particular se vê esbulhado da posse do bem, restando praticamente ao particular expropriado reivindicar os valores que receberá a título de indenização pela perda da titularidade do bem.

Bem, a lei 14.620/2023 transforma tal instituto do processo de desapropriação em um direito real, fixando novo dispositivo no artigo 1.225 do Código Civil. Também promove alteração no Decreto 3365/41, alterando a redação do artigo 15-A do Decreto 3365/4116.

Comparando o artigo 15-A do Decreto 3365/41 trazida pela Medida Provisória 2.183-56/2001 com a nova redação do artigo 15-A do Decreto 3365/41 trazida pela lei 14.620/2023, notamos que houve alteração no caput do dispositivo. O artigo 15-A trata das regras referentes a aplicação dos juros compensatórios, devidos pelo Poder Público em decorrência da imissão provisória na posse. Tais juros compensatórios são contados a partir da data de imissão na posse do Ente Federativo.

Na redação trazida pela Medida Provisória, a MP citava a desapropriação por necessidade ou utilidade pública e interesse social, inclusive para fins de reforma agrária. A redação trazida pela lei 14.620/2023 altera o enunciado, retirando o trecho “inclusive para fins de reforma agrária” do texto do dispositivo. A alteração não chega a ser significativa, eis que a desapropriação para fins de reforma agrária é regida por lei própria (Lei 8.629/93), sendo que a lei de desapropriação para fins de reforma agrária também já trazia disposições a respeito da imissão provisória na posse da União no respectivo procedimento (art. 2, § 7 e art. 5 § 9 da lei).

As regras de juros compensatórios pertinentes a imissão provisória da posse da União no respectivo imóvel objeto da desapropriação para fins de reforma agrária seguem agora apenas as disposições da lei 8.629/93, não guardando relação com a imissão na posse do decreto 3.365/41. Trata-se apenas de correção legislativa, eis que a doutrina já aplicava o princípio da especialidade, com a norma especial (Lei 8.629/93) prevalecendo sobre a norma geral (decreto 3365/41).

Porém, o parágrafo primeiro do dispositivo trazido pela lei 14.620/2023 para o art. 15-A do Decreto de Desapropriação por Utilidade Pública promete causar polêmica. O dispositivo vem assim redigido: “§ 1º Os juros compensatórios destinam-se apenas a compensar danos correspondentes a lucros cessantes comprovadamente sofridos pelo proprietário, não incidindo nas indenizações relativas às desapropriações que tiverem como pressuposto o descumprimento da função social da propriedade, previstas no art. 182, § 4º, inciso III, e no art. 184 da Constituição.” A atual redação acrescenta uma segunda parte no dispositivo legal, que começa depois da vírgula, indicando que os juros compensatórios não incidem sobre as desapropriações que tiverem como pressuposto o descumprimento da função social da propriedade urbanística e para fins de reforma agrária. O caput não trouxe grande inovação, mas o § 1 do dispositivo introduzido pela lei 14.620/2023 exclui os juros moratórios nas indenizações para fins de desapropriação urbanística e nas desapropriações para fins de reforma agrária.

Aparentemente, o dispositivo vem a derrogar tacitamente o previsto na lei de desapropriação para fins de reforma agrária, uma vez que a lei 8629/93 traz normas específicas a respeito do tema. A lei 14.620/2023 não trouxe revogação expressa de tais dispositivos, embora o decreto 3365/41 expressamente indique que não haverá juros compensatórios nesses casos.

Ademais, a lei nova parece ser eivada de inconstitucionalidade, na medida em que retira do particular o direito do recebimento dos juros compensatórios do particular, atingindo a ideia de justa e prévia indenização em dinheiro (art. 5, inciso XXIV da CRFB)17. Embora o termo “justa indenização” seja termo vago, indeterminado, competindo ao legislador a devida conformação legislativa, a própria Constituição traz ressalva, indicando que a indenização pode não ser justa em todos os caso. É o que ocorre com as desapropriações para fins urbanísticos e as desapropriações para fins de reforma agrária, nas quais a própria Constituição estabelece um regime especial de indenização nesses casos.

No entanto, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu como “indenização justa” nesses casos o pagamento “mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais” para a desapropriação urbanística18. Também estabeleceu a título de “indenização justa” para fins de reforma agrária19 “mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.”

A Constituição Federal já definiu como se dará a indenização nos casos de não cumprimento da função social da propriedade urbana e da função social da propriedade rural para fins de reforma agrária. Inclusive, o artigo 182,§ 4, inciso III da Constituição Federal garante ao particular expropriado o direito de indenização, com juros legais. É possível compreender que o dispositivo constitucional abrange tanto os juros moratórios quanto os juros compensatórios que recaem sobre o imóvel expropriado. Até em razão de terem fatos geradores distintos, os juros moratórios têm por objetivo a recomposição dos prejuízos derivados do atraso no efetivo pagamento da indenização. Já os juros compensatórios têm como objetivo compensar a perda prematura da posse do bem, devido a imissão provisória na posse20.

Inclusive, tanto o STJ como o STF já se manifestaram a respeito dos juros compensatórios, sendo que as cortes nunca fizeram esse recorte legislativo pretendido atualmente pelo legislador, no sentido de retirar o direito ao pagamento de indenização dos juros compensatórios dos imóveis sujeitos a desapropriação social para fins urbanísticos e desapropriação social para fins de reforma agrária. Inclusive há enunciados sumulados sobre juros compensatórios que sempre foram aplicados em tais ações de desapropriação.

A norma parece afrontar a ideia de justa indenização, pois permite que o Poder Público imita-se provisoriamente na posse, sem pagamento de qualquer indenização para fins de esbulho e ocupação antecipada do imóvel, já que veda o pagamento dos juros compensatórios. A norma constitucional já estabeleceu uma forma de sanção do particular que descumpre a função social do imóvel urbano e rural, que é o pagamento em títulos de dívida pública e o pagamento de títulos da dívida agrária, resgatáveis respectivamente em dez anos e em vinte anos, conforme o caso seja de desapropriação do imóvel para fins urbanísticos ou caso seja o de desapropriação do imóvel para fins de reforma agrária.

Haveria um certo bis in idem na conduta do Estado aplicar a indenização por títulos da dívida pública ou por títulos da dívida agrária mais a vedação ao pagamento dos juros compensatórios. Isso, levando-se em conta que já foram aplicadas as outras sanções previstas em lei e pela Constituição Federal, como o parcelamento, edificação ou utilização compulsória do imóvel, bem como pagamento do IPTU progressivo no tempo, com finalidade extrafiscal. Esse excesso de sanções aplicadas sobre o particular e sobre o bem, parece ter objetivo claro, que é a aquisição do bem que não cumpre a sua função social pela União ou pelo Município, sem o pagamento da indenização.

A indenização restaria esvaziada, primeiro em razão dos pagamentos em títulos da dívida pública, com longo prazo de resgate, exigência constitucional não derrogável. Segundo, pela aplicação do IPTU progressivo no tempo, pois como uma sanção urbanística não impede a aplicação da outra, o IPTU permanece devido ao proprietário renitente, outra exigência constitucional não derrogável. Terceiro, em razão da aplicação das outras 2 sanções cumuladas com a vedação ao pagamento dos juros compensatórios, nos casos de desapropriação para fins urbanísticos e para fins de reforma agrária. A aplicação conjunta de todas essas sanções equivaleria a uma expropriação confiscatória, aproximando o art. 182, § 4, III e o art. 184 da CRFB da desapropriação confiscatória, prevista no artigo 243 da CRFB21.

Ademais, com relação a imissão prévia na posse do Poder Público, esse pedido de imissão prévia na posse não é obrigatório para o Estado. O Poder Público pode desapropriar o imóvel sem imitir-se na posse. Se não há imissão na posse, não há aplicação dos juros compensatórios. O fato gerador de incidência dos juros compensatórios nas ações de desapropriação é a desocupação do imóvel pelo particular com ocupação do bem pelo Poder Público. Se a imissão na posse é uma faculdade do Poder Público, não havendo um dever de imitir-se provisoriamente na posse, caso o Poder Público deseje afastar os juros compensatórios, basta a Fazenda não se imitir na posse do bem. O não pagamento de juros compensatórios pode ser afastado pelo Poder Público, desde que o ente federativo não se imita na posse do bem. E isso pode ocorrer sem que haja uma vedação legal expressa em lei proibindo os juros compensatórios.

A vedação legal ao pagamento de juros compensatórios nas hipóteses citadas pela lei parece conferir um incentivo ao Administrador Público que realiza o pedido de imissão na posse em toda e qualquer desapropriação. Se o pagamento dos juros compensatórios é a consequência negativa da imissão prévia na posse, com a vedação do dever de pagar juros compensatórios nas desapropriações, o Administrador se sentirá mais a vontade em pedir a imissão na posse, mesmo sabendo que não é o caso de imissão prévia na posse.

Não que isso fosse impeditivo no passado para a realização da imissão na posse. Mas, de certa forma, parece injusto que o particular seja esbulhado ainda antes da sentença de desapropriação, sem receber o valor integral da indenização e ainda deixe de receber os juros compensatórios, dado o pedido de urgência do Poder Público, já que o Estado pode pedir para imitir-se na posse do bem imóvel, de um hora para outra22 e 23.

A norma aparenta ser inconstitucional, pois inclusive prevê vantagem ao Poder Público Federal e Municipal quando ele imite-se provisoriamente na posse, sem o pagamento da indenização. Além de violar as normas constitucionais supraindicadas, há também violação da legítima expectativa do particular em relação a prévia e justa indenização, violando a boa fé objetiva, na medida em que também é dever do Município zelar pela cidade, sendo que se houve demora no cumprimento da função social do bem, essa demora não pode ser atribuída somente ao particular.

A norma pretende privatizar os prejuízos, deixando somente o particular como responsável por não dar cumprimento a função social da propriedade, quando a responsabilidade pode ser tanto do Poder Público quanto do particular, como pode ser exclusivamente do Poder Público. Haveria para o Poder Público Federal e Municipal um dever de mitigar os próprios prejuízos, derivado da boa fé objetiva (duty to mitigate the loss)24. Os danos aqui não são somente os danos econômicos financeiros, mas também os danos sociais, os danos derivados do atraso no cumprimento da função social, que também é dever do ente federativo.

Em suma, reputamos inconstitucional o respectivo artigo 15-A, § 1 do decreto 3365/41, com alteração realizada pela lei 14.620/2023. No entanto, ressalvamos que pela aplicação da função social da propriedade e da cidade, o intérprete pode chegar a resultado diverso. Porém, é também importante consignar que a Constituição tutela a função social da propriedade, a função social do imóvel urbano e do imóvel rural, a função social da cidade, da mesma forma que tutela a livre iniciativa, a livre concorrência, a propriedade privada, entre outros valores.

Embora seja uma hipótese em que haverá ponderação de valores, que deverá ser enfrentada pelos Tribunais Superiores, há de se considerar sempre as consequências da decisão. Em uma análise pragmática consequencialista25, refutar o pagamento de juros compensatórios pode afastar ainda mais o interesse do particular em realizar investimentos em imóveis ou em realizar parcelamento ou edificação de imóveis urbanos e rurais, o que pode transferir o encargo do cumprimento da função social para a própria União ou para o próprio Município, sem que os entes contem com recursos suficientes para cumprir tal objetivo. Daí ser necessário recorrer ao próprio mercado privado para adquirir fundos novos para realizar os investimentos e cumprir a função social da propriedade. Não há garantia de que o Poder Público Federal ou Municipal darão cumprimento a função social da propriedade do imóvel expropriado em condições melhores do que os particulares.

Realizada essa breve argumentação a respeito do art. 15-A, § 1 do Decreto 3365/41, com redação dada pela lei 14.620/2023, a lei traz outros dois parágrafos para o art. 15-A. No parágrafo segundo, a lei proíbe o pagamento de juros compensatórios também aos casos de apossamento administrativo26 ou de desapropriação indireta e às ações que visem indenização por restrições decorrentes de atos do poder público. Consideramos o parágrafo segundo ainda mais inconstitucional, eis que retira o direito de justa indenização até mesmo nos casos em que o Poder Público realiza a invasão no terreno ou na propriedade do particular, sem qualquer procedimento prévio, esvaziando o conteúdo econômico da propriedade.

Significa que se houver um ato que estabeleça uma limitação administrativa, como a fixação de uma unidade de conservação ou até mesmo uma área de reserva legal, o poder público não pagará juros compensatórios. A norma viola diretamente o artigo 5, XXIV da CRFB, que estabelece o dever de realizar a justa indenização, bem como todos os demais dispositivos que protegem a propriedade privada, ainda que tenha o dever de cumprir a função social. Mais uma tentativa de “calote legislativo” do Poder Público em relação aos particulares.

Também nos casos em que o Poder Público desapropria grande parte do imóvel, mas deixa de desapropriar parcela ínfima da propriedade particular (desapropriação indireta), a indenização no todo com juros compensatórios não é devida. A lei inclusive transpassa a questão da moradia ou do fomento dos programas Minha Casa Minha Vida para adentrar na questão da desapropriação, criando alguns bons privilégios para os entes federativos, reduzirem o montante das indenizações. Sob o argumento de discutir o que seria “justo”, a lei praticamente sepulta os juros compensatórios, que deixam de serem devidos em grande parte dos casos, tornando os juros compensatórios decorrentes de imissão prévia na posse em exceção ou quase revogando tacitamente o instituto dos juros compensatórios nas desapropriações.

Com relação ao parágrafo terceiro do artigo 15-A do Decreto 3365/41, inserido pela lei 14.620/2023, a norma ainda restringe mais a aplicação dos juros compensatórios, na medida em que estabelece que “nas ações referidas no § 2º, o poder público não será onerado por juros compensatórios relativos a período anterior à aquisição da propriedade ou da posse titulada pelo autor da ação”.

A norma ainda é contraditória com o conjunto, pois a parte final do parágrafo primeiro retira os juros compensatórios das ações de desapropriação de imóvel para fins de cumprimento da função social da propriedade urbana e para fins de reforma agrária. O parágrafo segundo esvazia ainda mais as hipóteses de juros compensatórios, pois impede a cobrança nos casos de apossamento administrativo, desapropriação indireta27 e restrições administrativas que retirem o conteúdo econômico da propriedade. O parágrafo terceiro ainda indica que nas hipóteses do parágrafo segundo, não haverá oneração do Poder Público com relação aos juros compensatórios relativos a período anterior à aquisição da propriedade ou posse titulada pelo autor da ação.

O dispositivo também estabelece um calote em relação ao terceiro. Se o imóvel estiver em promessa de compra e venda, com o promitente comprador na posse direta do imóvel e o promitente vendedor na posse indireta do bem, a lei parece não garantir os juros compensatórios ao período anterior a aquisição da propriedade ou da posse titulada pelo autor da ação. Perceba que o caso aqui é de evicção28, pois a perda da coisa está ocorrendo por ato administrativo posterior, que retira a propriedade do particular. Basicamente, o que a lei está dizendo é que não haverá pagamento de indenização a título de juros compensatórios em relação ao atual adquirente ou atual possuidor, nem mesmo em relação ao antigo proprietário ou possuidor indireto.

A lei resolve eventual conflito existente sobre a titularidade da indenização entre dois ou mais particulares, no sentido de não pagar juros compensatórios a nenhum deles. Talvez seja essa a interpretação mais lúcida que decorra da aplicação conjugada dos § 2 e § 3 do artigo 15-A do Decreto 3365/41, com a nova redação. Mais uma vez, a lei recém criada parece ter mais a preocupação de beneficiar o Poder Público sobre o pagamento da indenização pela expropriação do bem, reduzindo o montante até mesmo nas hipóteses em que o imóvel cumpre a sua função social. O particular é desapossado do bem, expropriado pela ação direta ou indireta do poder público. A regra desconsidera no todo o artigo 5, inciso XXIV, bem como os artigos 182, § 4, III e 184 da CRFB, negando efetividade a ideia de justa indenização.

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O Código Civil ainda estabelece esse direito de imissão na posse como um direito real, a favor do Poder Público, como foi visto no início deste tópico. Nesse sentido, como direito real, a imissão provisória na posse deve ser levada a registro, quando a desapropriação recair sobre bens imóveis.

Uma questão que é relevante ressaltar é que tipo de direito real a lei 14.620/2023 criou. Pela redação conferida pela lei ao artigo 1.225 do Código Civil, a lei parece ter conferido autonomia a tal direito de imissão prévia na posse do imóvel, direito real em favor dos entes federativos. Ocorre que quando verificamos as demais alterações introduzidas pela lei 14.620/2023 ao Código Civil, percebemos que houve também alteração no artigo 1.473 do Código Civil, dispositivo que trata da hipoteca.

A Lei 14.620/2023 estabelece “duas novas disposições” a respeito da hipoteca. A primeira inclui a propriedade superficiária dentro dos direitos reais sujeitos a hipoteca. No entanto, tal disposição já constava da lei 13.465/2017, a lei de regularização fundiária. Novamente, o legislador se deu ao trabalho de republicar a lei com instituto já vigente desde 2017, desejando os benefícios da capitalização política, para os responsáveis pela republicação. A situação não gera inovação jurídica nenhuma, apenas gera alteração no sentido de que agora a redação é conferida pela lei 14.620/2023, sendo redação e a numeração do inciso idênticas aquelas previstas na lei anterior.

A segunda nova previsão do art. 1.473 do Código Civil traz como direito real sujeito a hipoteca justamente os direitos oriundos da imissão provisória na posse, quando concedida à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios ou às suas entidades delegadas e a respectiva cessão e promessa de cessão (inciso XI). Ou seja, o dispositivo permite que a hipoteca recaia sobre os direitos oriundos da imissão provisória na posse.

Um primeiro questionamento que poderia ser levantado sobre o novo direito real é quanto ao seu objeto. Pela redação literal do artigo 1.225 do Código Civil, haveria dúvida se ele é um direito real que recai sobre bens móveis ou imóveis. A redação do artigo 1.473 do Código Civil ajuda um pouco quando traz a questão da hipoteca recaindo sobre o direito real de imissão provisória na posse, indicando que tal direito real somente deve recair sobre bens imóveis. Afinal, a hipoteca é um direito real de garantia que tem por característica específica recair sobre bens imóveis.

Porém, a questão não está encerrada. Isto porque a hipoteca é um direito real de garantia que recai sobre imóveis, como regra. Excepcionalmente, a lei pode prever que a hipoteca recaia sobre bens móveis. É o que ocorre, por exemplo, com o artigo 1.473 do Código Civil, incisos VI e VII, que preveem que a hipoteca pode recair sobre navios e aeronaves.

Daí o questionamento persiste: qual é o objeto do direito real de imissão na posse? A pergunta merece reflexão, pois a desapropriação pode recair sobre bens móveis e bens imóveis. O mais comum é que a desapropriação recaia sobre bens imóveis, mas ela pode recair sobre bens móveis também29. Se a desapropriação pode recair sobre bens móveis, logo a imissão provisória na posse pode recair também sobre bens móveis. Seria um novo caso de hipoteca recaindo sobre bens móveis, uma terceira exceção? Há de se aguardar o posicionamento da doutrina e da jurisprudência sobre o tema.

Há também de se indagar se o novo direito real de imissão na posse também recai sobre bens incorpóreos, bens imateriais, intangíveis? Sim, pois é possível desapropriar um direito, inclusive é possível desapropriar um crédito30. Logo, é possível imitir-se provisoriamente na posse de um direito incorpóreo, registrando em cartório para fins de formação de direito real oponível erga omnes, com a possibilidade de uso de institutos como a sequela ou a ambulatoriedade? É uma questão em aberto trazida pela nova lei.

Deve-se ter em mente que em determinadas situações, o particular pode receber a atribuição de desapropriar bens de outros particulares. O próprio decreto 3365/41 admite essa legitimidade executiva para que concessionários de serviços públicos possam desapropriar bens imóveis, que sejam relevantes para a execução do objeto de concessão31. Se o particular pode ter legitimidade para desapropriar os bens, ele pode também se imitir provisoriamente na posse. A situação nova que decorre da interpretação do dispositivo é que a imissão na posse como direito real que é pode ser objeto de cessão32.

Ou seja, o Poder Público pode iniciar um procedimento de desapropriação, expedindo decreto declaratório expropriatório, propor a ação de desapropriação, no caso de fracasso do acordo na via administrativa. Proposta a ação, o Poder Público pode pedir a sua imissão provisória na posse, registrá-la em cartório de bens imóveis e transferi-la a terceiros, particulares, que receberão o direito real de imissão na posse. Através desse direito, parece que o particular poderá realizar ele próprio a desapropriação do imóvel, entregando ao Poder Público o imóvel já livre e desembaraçado do processo e dos demais ônus.

Também há a possibilidade de se realizar o caminho inverso: o poder público expede decreto expropriatório, delega ao particular os atos de execução da desapropriação. O particular propõe a ação expropriatória, pede a imissão provisória na posse, registrando-a em cartório. A partir daqui, o particular poderá ceder o direito real de imissão na posse ao poder público ou a outro particular. A lei 14.620/2023 praticamente franqueia que possa haver subdelegação dos atos executórios de desapropriação, hipótese sequer imaginada pela doutrina.

O dispositivo que estabelece a imissão provisória na posse como um direito real abre margem para várias outras indagações. Acrescente-se que a lei de registros públicos (Lei 6.015/73) também foi alterada para permitir o registro do novo direito real33. As possibilidades são inúmeras. Resta saber como a doutrina e a jurisprudência se posicionará a respeito do novo instituto.

Ultrapassada a análise das alterações provocada na lei no Código Civil, passaremos a análise das alterações provocadas no decreto 3365/41, lei das desapropriações.

4 - Das Alterações Provocadas no Decreto 3365/41.

Como visto acima, a lei 14.620/2023 provocou alterações no Decreto 3.365/41. A lei analisada alterou a sistemática dos juros compensatórios nas desapropriações, restringindo muito a incidência dos juros compensatórios nos casos de imissão prévia na posse pelo Poder Público, nas desapropriações. Entretanto, essa não foi a única alteração promovida pela lei. Vejamos outros dispositivos do decreto de desapropriações que foram alterados.

A lei reformadora altera o parágrafo segundo e inclui o § 2-A na lei de expropriações públicas. O artigo 2º do decreto trabalha a ideia de competência declaratória dos entes públicos para promover desapropriação. Geralmente, essa competência é exercida pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios por lei, mas pode também haver a declaração de utilidade pública, necessidade pública ou interesse social por decreto do Chefe do Poder Executivo.

A nova redação do art. 2, § 2 do Decreto 3.365/41 exige autorização legislativa a para a desapropriação dos bens de domínio dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal pela União e dos bens de domínio dos Municípios pelos Estados. O dispositivo trata da desapropriação de bens públicos. É uma situação interessante, pois com a alteração, a lei passa a exigir que a declaração de utilidade pública, necessidade pública e interesse social do bem público que seja propriedade de outro ente federativo, que essa competência declaratória seja exercitada por lei. Dessa forma, quando houver desapropriação de um bem por um dos entes federativos, que pertença a outro ente federativo, o decreto 3365/41 passa a exigir autorização legislativa do Poder Legislativo do ente federativo expropriante34.

Outra alteração produzida pela Lei 14.620/2023 foi aquela inserida pelo art. 2 §2-A. A lei dispensa a autorização legislativa supraindicada no parágrafo segundo, quando houver acordo federativos entre os entes públicos para que seja realizada a desapropriação do bem público. A lei nesse dispositivo traz alteração bem vinda, prestigiando o pacto federativo e o equilíbrio federativo entre os entes federativos.

Prosseguindo, a lei também produz alterações no artigo 3 do Decreto 3.365/41. Tal dispositivo trata da chamada competência executiva, a competência para realizar a desapropriação. Uma vez exercida a competência declaratória declarando o bem de necessidade pública, de utilidade pública ou de interesse social, competência exercida exclusivamente pelos entes federativos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), passa-se a fase da competência executória, isto é, da prática dos atos de desapropriação propriamente ditos. Essa competência executória é mais abrangente, pois permite que os entes federativos que tenham a competência declaratória, mais entidades privadas que sejam concessionárias ou permissionárias de serviço público possam promover a desapropriação.

A lei 14.620/2023 amplia ainda mais o rol de legitimados com competência executória para promover a desapropriação. Anteriormente, o inciso I permitia apenas os concessionários, inclusive aqueles concessionários contratos via Parceria Público Privada (Lei 11.079/2004). Agora, o inciso I traz também permissionários, autorizatários e arrendatários.

A lei também altera o inciso IV do artigo 3º estabelecendo como legitimado para dar prosseguimento ao processo executivo de desapropriação: “o contratado pelo poder público para fins de execução de obras e serviços de engenharia sob os regimes de empreitada por preço global, empreitada integral e contratação integrada.”. Nesse dispositivo, o decreto 3365/41 dialoga com a lei 14.133/21 (nova lei de licitações). A lei 14.133/21 já previa no art. 25, §5, II que o edital de licitação poderia conferir a atribuição ao contratado de realizar a desapropriação autorizada pelo poder público.

Também prevê o art. 46, § 4 da lei 14.133/21, nos regimes de contratação integrada ou semi-integrada, o edital e o contrato devem prever as providências necessárias para a desapropriação autorizada pelo poder público, inclusive devendo definir o responsável pela realização de cada fase do processo de desapropriação (inciso I), bem como a distribuição objetiva dos riscos derivados do processo de desapropriação, regras sobre o custo da desapropriação (inciso IV) e em nome de quem deverá ser promovido o registro de imissão provisória na posse e o registro de propriedade dos bens a serem desapropriados (inciso V). A nova legitimidade ativa para proceder à desapropriação estabelecida no art. 3, inciso IV do Decreto 3365/41 vem em sintonia com os artigos 25, § 5, II e 46, § 4 da Lei 14.133/21, habilitando como novos legitimados para proceder ao processo judicial de desapropriação o contratado vencedor do certame licitatório.

A lei 14.620/2023 ainda insere um parágrafo único no artigo 3, com três incisos. Indica que nas hipóteses do inciso IV do artigo 3, o edital deverá prever expressamente: I - o responsável por cada fase do procedimento expropriatório; II - o orçamento estimado para sua realização; III - a distribuição objetiva de riscos entre as partes, incluído o risco pela variação do custo das desapropriações em relação ao orçamento estimado. Mais uma vez, o dispositivo conversa com as regras que já estavam vigentes para a lei 14.133/21, conforme visto no parágrafo anterior.

Novidade trazida pela lei 14.620/2023 é a presença do artigo 4-A do Decreto 3365/41. A norma indica regra específica para desapropriações envolvendo núcleo urbano informal. Quando o Poder Público tiver que desapropriar este núcleo urbano informal ocupado por população de baixa renda, o ente expropriante deve prever no planejamento, a fixação de medidas compensatórias. No parágrafo primeiro, as medidas compensatórias incluem a realocação de famílias em outra unidade habitacional, a indenização de benfeitorias ou a compensação financeira suficiente para assegurar o restabelecimento da família em outro local. Para que as famílias sejam compensadas, a lei exige cadastramento prévio.

Já o parágrafo segundo traz uma presunção. Equipara a família ou a pessoa de baixa renda, aquela pessoa ocupante da área que, por sua situação fática específica, apresente condição de vulnerabilidade, conforme definido pelo expropriante.

As alterações promovidas pelo artigo 4-A são alterações benéficas no sentido de fornecer maior proteção para aquelas famílias desabrigadas em virtude da defesa civil do Município ou do Estado ter condenado o prédio, constatando a inexistência de condições de saúde, segurança ou salubridade mínimas para manutenção das pessoas naquele local. O Poder Público interdita o imóvel, desocupando o espaço, pois aquele espaço deixou de condições mínimas de habitabilidade. A lei inova indicando que o Poder Público passa a desapropriar o imóvel, devendo pagar as famílias de baixa renda localizadas neste núcleo urbano informal uma indenização, bem como adotar medidas compensatórias. Trata-se de uma medida benéfica para aquelas pessoas que perderam sua moradia em razão interdição do imóvel pelo fim das condições de habitação do prédio.

O artigo 5, § 5 a 7 do Decreto 3365/41 também foram inseridos pela lei 14.620/2023. O § 5 do decreto faz remissão ao parágrafo quarto, incluído pela lei 14.273/21. O § 4 informa o seguinte: “§ 4º Os bens desapropriados para fins de utilidade pública e os direitos decorrentes da respectiva imissão na posse poderão ser alienados a terceiros, locados, cedidos, arrendados, outorgados em regimes de concessão de direito real de uso, de concessão comum ou de parceria público-privada e ainda transferidos como integralização de fundos de investimento ou sociedades de propósito específico.”

Vem o § 5 indicando que o disposto nesse parágrafo quarto também se aplica nos casos de desapropriação para fins de execução de planos de urbanização, de renovação urbana ou de parcelamento ou reparcelamento do solo, desde que seja assegurada a destinação prevista no referido plano de urbanização ou de parcelamento do solo.

Mais uma vez, a aplicação de tais dispositivos conjugados com a já analisado direito real de imissão de posse (art.1.225, XIV do Código Civil) permite intuir que como direito real autônomo, a imissão provisória na posse poderá ser cedida para terceiros, que passaram a ter direito a possuir o bem imóvel até que seja concluída a desapropriação. O § 5 da lei indica que a possibilidade de alienação a terceiros, locação, cessão, arrendamento ou outorga dos bens desapropriados também poderá ocorrer nas hipóteses de desapropriação para fins de execução de planos de urbanização, de renovação urbana ou de parcelamento ou reparcelamento do solo, desde que seja assegurada a destinação prevista no referido plano de urbanização ou de parcelamento do solo. A lei não parece trazer algo novo aqui, pois isso poderia decorrer de mera interpretação do parágrafo quarto do dispositivo.

Uma possível repercussão da aplicação desses dispositivos e do direito real de imissão na posse pode ser o fato do Poder Público não dar o devido andamento ao processo judicial expropriatório. Como agora a lei estabelece esse direito real de imissão na posse do bem imóvel, pode não haver interesse ou vontade política para realizar a desapropriação do bem imóvel. Inclusive, as leis que trabalhavam a desapropriação já tratavam sobre o tema, estabelecendo prazo para que o Poder Público finalize o procedimento expropriatório35 e 36. O direito real de imissão na posse pode interferir e prejudicar diretamente o direito do particular expropriado a pedir a restituição do bem imóvel expropriado, através do instituto da retrocessão37, 38 e 39.

Não se pode concordar com tal conduta de atrasar injustificadamente o processo expropriatório, eis que ele pode até mesmo gerar a expropriação do bem do particular sem o pagamento da indenização. A Administração Pública pode imitir-se provisoriamente na posse do bem e registra-la como direito real, inclusive transferindo-a a terceiro, sem realizar pagamento do valor total da indenização. Posteriormente, pode não dar o devido andamento ao procedimento desapropriatório. Quando este procedimento chegar ao fim ou ultrapassado o prazo legal para a finalização da desapropriação, o particular poderá requerer a devolução do bem, mas este já poderá estar em péssimo estado de conservação, deteriorado ou até mesmo sujeito a perda total, além de onerado com o direito real de imissão prévia na posse do Poder Público. O imóvel pode estar na posse de terceiro, que pode não ter o compromisso ou a responsabilidade de zelar pelo bem até o fim da desapropriação. Nesses casos, quem irá se responsabilizar pela indenização do particular pelos prejuízos eventuais pela não utilização do instituto da retrocessão. A lei 14.620/2023 não traz solução.

Deve haver um certo cuidado ao aplicar as inovações trazidas pela lei 14.620/2023, para que elas não sirva de subterfúgio para o não pagamento da indenização ao particular, redução do valor da indenização ou até mesmo prejudiquem a retomada do bem pelo particular através da retrocessão. Acaso, o Poder Público desaproprie o bem sem cumprir a função de interesse público antes designada, realizando tredestinação ilícita, o particular terá o direito de realizar a retrocessão, reivindicando o bem de volta e o ente federativo ficará responsável pelo pagamento dos prejuízos sofridos pelo bem imóvel. Se o processo de desapropriação40 não findar e o imóvel tiver sido cedido a terceiros através da alienação do direito real de imissão na posse, caso o imóvel sofra danos pela ação do Poder Público ou de terceiros, o Estado deverá indenizar o particular pelos prejuízos sofridos no imóvel, nos casos de retrocessão do imóvel expropriado ou o particular terá o direito ao abatimento dos valores na recompra do bem.

Até em razão do exposto, o parágrafo sexto do artigo 5 do Decreto 3365/41, incluído pela lei 14.620/2023, traz uma disciplina a respeito do caso do imóvel expropriado pelo Poder Público, no qual o Ente Federativo não atende o respectivo interesse social manifestado no Decreto expropriatório. O dispositivo informa o seguinte: “§ 6º Comprovada a inviabilidade ou a perda objetiva de interesse público em manter a destinação do bem prevista no decreto expropriatório, o expropriante deverá adotar uma das seguintes medidas, nesta ordem de preferência: I - destinar a área não utilizada para outra finalidade pública; ou II - alienar o bem a qualquer interessado, na forma prevista em lei, assegurado o direito de preferência à pessoa física ou jurídica desapropriada.”

O dispositivo trabalha com o caso do imóvel desapropriado não cumprir mais a destinação estabelecida no decreto expropriatório. Quando o bem desapropriado não cumprir a destinação projetada no decreto expropriatório, o ente federativo está autorizado a destinar a área ou imóvel para outra finalidade pública ou realizar a alienação do bem a qualquer outro interessado.

O artigo 5, § 6, I do Decreto 3365/41 estabelece regra no sentido de gerar o aproveitamento do imóvel expropriado para outra finalidade de interesse público. Embora a previsão legal seja sempre bem vinda, a norma não inova no ordenamento jurídico uma vez que a doutrina já trabalhava com os conceitos de tredestinação lícita e ilícita.

Na tredestinação lícita, o Poder Público desapropria o bem, mas não aproveita o bem na finalidade de interesse público que ensejou a desapropriação. O ente federativo dá aproveitamento ao bem em outra finalidade de interesse público igualmente relevante. Assim, o desvio de finalidade do interesse público originalmente previsto no decreto expropriatório é substituído por outra finalidade de interesse público igualmente relevante. Nestes casos, de tredestinação lícita, não haverá direito de retrocessão do particular na retomada do bem imóvel.

Já na tredestinação ilícita, o Poder Público desapropria o bem, mas não o aproveita. O bem fica desocupado, desafetado e não preenche nenhuma outra finalidade de interesse. Inclusive, há caso em que a Administração Pública resolve alienar o bem expropriado para outros particulares, para obter lucro, para satisfazer interesses meramente privados. Nesses casos de tredestinação ilícita, o particular expropriado tem o direito de retrocessão.

O dispositivo estudado afirma o dever de gerar o aproveitamento do bem expropriado em outra finalidade de interesse público, tratando da tredestinação lícita no inciso I.

Ocorre que o inciso II permite a alienação do bem expropriado a terceiros particulares em caso de não aproveitamento do bem, resguardado o direito de preferência do particular desapropriado na aquisição/retomada do imóvel. O artigo, 5, § 6º, inciso II trata do instituto de tredestinação ilícita, permitindo ao poder público a alienação do bem expropriado, desde que preservado o direito de preferência do antigo proprietário. Nesse sentido, a lei preserva o direito de retrocessão, devendo haver remissão do artigo 5, § 6, II do Decreto Lei 3365/41 para o artigo 519 do Código Civil, que já trabalhava o instituto da retrocessão.

Já o artigo 5, § 7 do Decreto de Desapropriação, com redação dada pela lei 14.620/2023, a norma trabalha com a desapropriação que venha atender planos de urbanização, de renovação urbana ou de parcelamento ou reparcelamento do solo urbano. A lei apenas indica que nesses casos as diretrizes do plano de urbanização e de parcelamento devem estar previstas no plano diretor, na legislação de uso e ocupação do solo ou em lei municipal específica41.

A lei 14.620/2023 também trouxe alterações de redação no artigo 7 do Decreto 3365/41. O dispositivo trata da prerrogativa do Poder Público adentrar no imóvel desapropriado para realizar vistoria das condições físicas do bem. A redação do dispositivo foi alterada42, mas não houve alteração substancial no conteúdo da norma. O que se pode intuir de novidade da respectiva norma é que ela parece permitir que o particular responsável pelo processo executivo de desapropriação possa fazer uso dessa prerrogativa de adentrar o imóvel desapropriado para realizar a vistoria, sendo tal prerrogativa também passível de ser exercida pelos particulares.

Dando seguimento, a lei 14620/2021 alterou o artigo 15 do decreto 3365/41, conforme já analisado no tópico anterior, quando do tratamento do direito real de imissão na posse. Direcionamos o leitor para o tópico anterior, eis que o tema já foi enfrentado.

Essas foram as alterações provocadas pela lei 14.620/2023 no Decreto 3365/41. Como visto acima, foram alterações bastante relevantes que alteraram bastante o tratamento do instituto da desapropriação. No próximo tópico, abordaremos as alterações sofridas pela lei 13.105/2015 (Código de Processo Civil).

5 – Das alterações provocadas pela lei 14.620/2023 no Código de Processo Civil.

A alteração provocada pela lei 14.620/2023 no CPC/2015 foi pontual e breve. A lei apenas inseriu o § 4 no artigo 784 do CPC. O dispositivo trata dos títulos executivos extrajudiciais.

O parágrafo quarto foi assim redigido: “§ 4º Nos títulos executivos constituídos ou atestados por meio eletrônico, é admitida qualquer modalidade de assinatura eletrônica prevista em lei, dispensada a assinatura de testemunhas quando sua integridade for conferida por provedor de assinatura.”

A lei insere tal dispositivo permitindo a elaboração de títulos executivos extrajudiciais eletrônicos. Também permite que tais títulos sejam assinados por qualquer modalidade de assinatura eletrônica estabelecida em lei. A norma parece ter mais o objetivo de dar publicidade a tal permissivo, uma vez que na prática, s operadores do direito já vem celebrando e utilizando documentos virtuais e assinaturas digitais no seu dia a dia.

A lei ainda dispensa a verificação da autenticidade da assinatura de testemunhas quando sua integridade fora conferida por provedor de assinatura. A norma recai principalmente sobre o inciso III do caput do artigo 784 do CPC (o documento particular assinado pelo devedor e por 2 (duas) testemunhas.). Porém, essa questão de autenticidade da assinatura de testemunhas pode ser utilizada em outros casos de títulos executivos extrajudiciais, que exijam a participação de testemunhas no ato de gênese do título executivo.

Feita a análise da alteração promovida no Código de Processo Civil pela lei 14.620/2023, passa-se a outra relevante alteração promovida pela referida lei, na lei 6766/76, lei que rege o parcelamento do solo urbano.

6 – Da Reforma produzida pela lei 14.620/2023 na lei de Parcelamento do Solo Urbano (Lei 6766/76)

A lei 14.620/2023 produziu relevante alteração na lei 6766/76, introduzindo os dispositivos do art. 18-A até o 18-F, bem como o disposto no artigo 22, § 1, § 2 e §3 e aquilo que está previsto no artigo 26, § 3 da lei. Foram alterações de caráter abrangente trazidas pela nova lei.

O artigo 18-A da Lei 6766/7643 traz situação realmente inovadora. O dispositivo estabelece um patrimônio de afetação em favor do particular responsável pelo empreendimento de loteamento. Estabelece a possibilidade que o loteador estabeleça um regime de afetação, de forma a proteger o terreno, a infraestrutura e os demais direitos daí derivados do patrimônio pessoal do loteador.

A lei promove uma verdadeira blindagem do patrimônio que será utilizado pelo loteador para realizar o loteamento, separando o patrimônio do empreendimento do patrimônio pessoal do loteador. Isso vale tanto para pessoas físicas quanto para pessoas jurídicas responsáveis pelo empreendimento.

O § 1º do dispositivo é relevante, pois indica que o patrimônio de afetação não se comunica com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do loteador ou de outros patrimônios de afetação por ele constituídos, só respondendo por dívidas e obrigações vinculadas ao loteamento respectivo e à entrega dos lotes urbanizados aos respectivos adquirentes.

È importante esperar para ver como será o comportamento da doutrina e da jurisprudência a respeito do assunto, pois haverá conflito entre o dispositivo acima e as regras que tratam do regime de desconsideração da personalidade jurídica, seja na modalidade maior ou menor. A lei blinda o patrimônio que será utilizado no loteamento, mas também impede que credores outros possam buscar o adimplemento de seus créditos com a penhora e alienação de bens destinados ao empreendimento. Tal norma promete causar polêmicas e diversos conflitos nos foros do Poder Judiciário.

A regra que cria o patrimônio de afetação ainda indica que o loteador será responsável pelos danos causados ao patrimônio de afetação (§ 2). A norma vem para garantir o direito dos demais investidores e dos adquirentes dos imóveis “na planta”, antes da realização do loteamento propriamente dito. Trata-se de garantia mínima para não permitir que os adquirentes e investidores sejam enganados por eventual ação maliciosa de alguns loteadores, que estejam de má fé.

A lei também informa que o patrimônio de afetação deverá ser registrado no registro de imóveis – RGI (art. 18-B da lei). Também podem ser constituídos ônus reais sobre o patrimônio de afetação quando tais ônus reais servirem de garantia do preço da aquisição do bem objeto do loteamento ou do cumprimento da obrigação de implantar o empreendimento (art. 18-B, § único da lei).

A alteração promovida pela lei 14.620/2023 ainda trata da possibilidade da Prefeitura, da Comissão de Representantes e da instituição financiadora da infraestrutura nomearem às suas expensas um representante que fiscalizará as obras q acompanhar o patrimônio de afetação (art. 18-C).

No artigo 18-D, a lei 16.620/2023 estabelece as atribuições do loteador. Elenca em oito incisos as seguintes atribuições: “promover todos os atos necessários à boa administração e à preservação do patrimônio de afetação, inclusive mediante adoção de medidas judiciais (Inciso I); manter apartados os bens e direitos objeto de cada loteamento (Inciso II); diligenciar a captação dos recursos necessários ao loteamento, cuidando de preservar os recursos necessários à conclusão da infraestrutura (Inciso III); entregar à Comissão de Representantes, no mínimo a cada 3 (três) meses, demonstrativo do estado da obra e de sua correspondência com o prazo pactuado ou com os recursos financeiros que integrem o patrimônio de afetação recebidos no período, firmado por profissionais habilitados, ressalvadas eventuais modificações sugeridas pelo loteador e aprovadas pela Comissão de Representantes (Inciso IV); manter e movimentar os recursos financeiros do patrimônio de afetação em pelo menos 1 (uma) conta de depósito aberta especificamente para tal fim (Inciso V); entregar à Comissão de Representantes balancetes coincidentes com o trimestre civil, relativos a cada patrimônio de afetação (inciso VI); assegurar à pessoa nomeada nos termos do art. 18-C o livre acesso à obra, bem como aos livros, aos contratos, à movimentação da conta de depósito exclusiva referida no inciso V deste artigo e a quaisquer outros documentos relativos ao patrimônio de afetação (inciso VII); e manter escrituração contábil completa, ainda que esteja desobrigado pela legislação tributária (inciso VIII)”.

Já o artigo 18-E da lei 6766/76 estabelece a hipótese de extinção do patrimônio de afetação. Informa que o patrimônio de afetação “extinguir-se-á pela averbação do termo de verificação emitido pelo órgão público competente, pelo registro dos títulos de domínio ou de direito de aquisição em nome dos respectivos adquirentes e, quando for o caso, pela extinção das obrigações do loteador perante eventual instituição financiadora da obra.”

Já o artigo 18-F44 da lei traz relevante disposição a respeito do patrimônio de afetação nas hipóteses de decretação de falência ou insolvência civil do loteador. A lei torna imune/intangível o patrimônio afetado dos efeitos da falência ou insolvência civil, não submetendo o patrimônio de afetação ao concurso de credores e ao juízo universal da falência. Há uma blindagem patrimonial, que afasta até mesmo os efeitos da falência, embora o dispositivo seja omisso em relação a desconsideração da personalidade jurídica, sobretudo aquelas sujeitas a teoria menor, como a desconsideração da personalidade jurídica do artigo 28, § 5 do CDC45 e aquela prevista no artigo 4 da Lei 9.605/9846.

A lei 6766/76 ainda foi alterada pela lei 14620/2023 nos artigos 22 e 26. No artigo 22, a regra do § 1 foi estabelecida para inserir disciplina para o Município nos casos de parcelamento do solo implantado e não registrado, sendo mera renumeração do dispositivo, já que a redação anterior trazia apenas um parágrafo único. Como não existiam outros parágrafos, a lei renumerou o parágrafo único anteriormente vigente como parágrafo primeiro, inserindo os parágrafos segundo e terceiro.

O parágrafo segundo trata da atualização do cadastro da gleba que serviu como base para aprovação do loteamento junto ao Município. O dispositivo estabelece a data de registro do loteamento como termo inicial para que o Município realize a atualização do seu cadastro.

No parágrafo terceiro, a lei 6766/76 trata da individualização dos lotes por parte do Município no seu respectivo cadastro imobiliários municipal. A lei estabelece que a individualização dos lotes no cadastro imobiliário municipal somente será realizada a partir da emissão do Termo de Verificação e de Execução de Obras (TVEO). Somente a partir da emissão desse termo, o município individualizará a gleba em lotes no respectivo cadastro, outorgando a propriedade do lote em nome do adquirente ou promissário comprador do lote.

As disposições do artigo 22 possuem caráter mais procedimental, dentro da ideia de procedimento administrativo de loteamento a ser conduzido perante a Administração Pública Municipal.

O artigo 26 da lei 6766/76 foi alterado para produzir alterações no §3 da lei47. O dispositivo estabelece uma permissão para a cessão na posse de imóveis em que a União, Estados, Distrito Federal ou Municípios estejam provisoriamente imitidas. A lei permite que essa cessão na posse se dê por instrumento particular, reforçando o caráter de direito real da imissão na posse.

A lei ainda atribui ao instrumento particular de cessão da posse do direito real de imissão na posse o caráter de escritura pública, nos casos de parcelamentos populares, informando que não se aplicará o artigo 108 do Código Civil48. A codificação privada estabelece a exigência de escritura pública para registro de imóveis no RGI avaliados em valor superior a trinta vezes o valor do salário mínimo. A lei 14.620/2023 afasta a incidência do dispositivo, permitindo que os imóveis objetos de parcelamentos populares sejam inscritos no RGI através de instrumento particular de cessão da posse, mesmo que o imóvel seja avaliado em valor superior a 30 vezes o valor do salário mínimo.

Terminada a análise das alterações realizadas na lei 6.766/76 provocadas pela lei 14.620/2023, analisaremos a seguir outras alterações pontuais da lei 14.620/2023.

7 – Outras alterações promovidas pela lei 14.620/2023

A lei que retoma o programa Minha Casa, Minha Vida traz outras alterações em outros textos normativos.

Por exemplo, a lei 14.620/2023 altera a lei 13.465/2017, que trata do tema da regularização fundiária, contendo em seu corpo a disciplina jurídica a Reurb-S e Reurb-E.

A lei 14.620/2023 altera os seguintes dispositivos da lei 13.465/2017: Art. 30, § 4, art. 36, § 6 e § 7, art. 37, art. 37-A e o art. 44, § 8 da lei.

As alterações mais importantes na lei 13465/2017 dizem respeito a possibilidade dos entes federativos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) e entidades da Administração Indireta desses entes poderem instaurar, processar e aprovar a Reurb -S49 ou a Reurb-E50 e utilizar os demais instrumentos previstos na lei 13.465/2017 nas terras e terrenos de propriedade do ente federativo51. Isso dá a possibilidade de outros entes federativos, como União e Estados possam participar do processo de regularização fundiária de áreas ocupadas por população de baixa renda em terrenos da União ou dos Estados.

Outra mudança está prevista no artigo 3752 da Lei 13.465/2017. Basicamente, o dispositivo impõe ao Poder Público competente implementar a infraestrutura essencial, os equipamentos comunitários e as melhorias habitacionais previstas nos projetos de regularização, assim como arcar com os ônus de sua manutenção. Para cumprir tal objetivo, o Poder Público pode utilizar-se de recursos financeiros públicos e privados.

A lei nova ainda insere o artigo 37-A na lei 13.465/201753, autorizando a transferência do direito de construir correspondente ao potencial construtivo passível de ser utilizado em outro local, que esse direito possa ser utilizado para fins de projetos da Reurb-S. O instituto da transferência do direito de construir já estava previsto no artigo 4, V, alínea “o” e no art. 35 da Lei 10.257/01, não sendo novidade a existência do instituto.

Porém, agora a lei permite que essa transferência do direito de construir possa ser utilizada nos projetos de Reurb-S, que são projetos de Reurbanização Social, para fins de atendimento da população de baixa renda, localizada nas áreas “favelizadas”. Também prevê que as prefeituras podem receber bens imóveis com finalidade diversa da REurb-S, oferecendo em contrapartida ao proprietário a possibilidade de transferência do potencial construtivo do bem doado ou desapropriado amigavelmente (art. 37-A§ único da Lei).

Essas foram as principais alterações ocorridas na lei 13465/2017, provocadas pela lei 14.620/2023.

A lei 14.620/2023 também traz alterações na lei de registros públicos (Lei 6.015/73). A referida lei traz alterações ou inserções nos seguintes dispositivos legais: Art. 176-A, 195-B, caput e § 2, art. 213 § 17, art. 221, incisos II e VI, § 5 e § 6.

Dentre essas alterações na lei de registros públicos, talvez a alteração mais importante seja aquela ocorrida no artigo 176-A da lei, que trata do registro nas hipóteses de aquisição originária da propriedade, como é o caso da desapropriação. A lei 14.620/2023 alterou o dispositivo, trazendo modificações relevantes.

Do artigo 176-A da Lei 6015/7354, o destaque recai sobre o § 5º do dispositivo, que determina a aplicação do art. 176-A ao ato de registro de imissão provisória na posse, em procedimento de desapropriação (inciso I), bem como nos casos de aquisição de área por usucapião ou por concessão de uso especial para fins de moradia (inciso IV) e nos casos de sentença judicial de aquisição de imóvel, em procedimento expropriatório de que tratam os §§ 4º e 5º do art. 1.228 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, Código Civil (inciso V).

Em primeiro lugar, porque a leitura do dispositivo dá a entender que a imissão provisória na posse do bem imóvel passa a ser uma forma de aquisição originária da propriedade, já que o dispositivo aduz que o artigo 176-A será aplicável a essa hipótese. Como visto anteriormente, a lei 14.620/2023 estabelece a imissão provisória na posse como um novo direito real a cargo do Poder Público, que poderá transferi-lo a terceiros, enquanto não se finaliza o procedimento expropriatório.

No entanto, a imissão provisória na posse não pode ou não deveria ser considerada como forma originária de aquisição da propriedade imóvel pelo Poder Público por uma razão bem simples: o processo de desapropriação ainda não foi julgado. Embora seja raro, vícios no processo de desapropriação podem levar a extinção do processo sem resolução do mérito ou até a declaração de nulidade do decreto expropriatório, fazendo com que a transferência da propriedade em favor do Poder Público não se opere.

Mesmo que a lei preveja a imissão na posse como direito real, ainda não se operou a transferência da propriedade imobiliária, pois esta somente se dará com a sentença de procedência da ação de desapropriação.

Não é possível conceber a imissão na posse como um direito real que abrevia a propriedade do particular, pois o particular ainda não foi ressarcido integralmente, não recebendo a justa e prévia indenização a que tem direito. Pela redação do dispositivo, o Poder Público pode iniciar o processo de desapropriação, imitir-se na posse do bem, registrá-la em cartório de imóveis e considerar adquirido o imóvel, sem pagar a indenização. Além de afrontar o dever de indenizar o particular que perdeu a propriedade do seu imóvel, a medida pode servir como mecanismo de pressão para que o particular reduza a indenização, já que ainda terá que suportar o tramite processual, até que o processo de desapropriação chegue ao seu termo final. Isso pode levar anos discutindo o valor da indenização.

A possível consequência desta regra é insultante para particulares que tem seus bens expropriados, pois o particular perde a propriedade do bem, tem que se submeter a negociação com o Poder Público para tentar receber o valor de mercado do bem acrescido de encargos legais, precisa discutir judicialmente a diferença quando as partes não chegam a um consenso. Perde o bem na imissão na posse, recebe um valor bem inferior em troca e se quiser receber o resto ainda tem que aguardar o tortuoso caminho que o Judiciário brasileiro lhe reserva. Inclusive, parece que o legislador resolveu usar a demora do Poder Judiciário em analisar as demandas como mecanismo de pressão psicológica para que o proprietário expropriado aceite um valor menor, seja na negociação administrativa, seja em sentença. O Poder Público resolveu adiantar a perda da propriedade, sem garantir a indenização, violando os dispositivos constitucionais a respeito da desapropriação, bem como os direitos fundamentais do expropriado.

Não se desconhece que o artigo 5, LXXVIII da Constituição Federal assegura aos litigantes em processo judicial e administrativo a razoável duração do processo. Ocorre que esse direito fundamental nunca foi regulamentado pelo legislador, mesmo tendo aplicabilidade imediata (art. 5, § 1 da CRFB). Não há uma definição legislativa do que é considerado como duração razoável do processo, sendo que o Poder Público é um dos maiores litigantes existentes atualmente no Poder Judiciário.

Muitas vezes, o processo de desapropriação é moroso, é lento, pois é necessária produção de prova pericial para fazer avaliação das condições do imóvel, do valor de mercado, para se chegar ao valor real de indenização. Não há previsão de fim do processo ou um prazo de duração razoável do processo, que caso descumprido gere direito de indenização. Dessa maneira, a lei acaba transferindo o ônus do tempo para o particular expropriado, restando ao particular só lamentar a via crucis que terá que enfrentar para receber sua indenização.

É possível verificar a inconstitucionalidade no dispositivo legal que torna a imissão provisória como um direito real que gera aquisição originária da propriedade. Não é em razão de se gostar ou não gostar do dispositivo. O texto normativo afronta o art. 5, XXIV, art. 182, § 4, III, art. 184 da CRFB ao negar ao particular o direito de obter a justa e prévia indenização. Trata-se de um jeitinho fornecido pelo legislador poderem adquirir integralmente a propriedade do bem imóvel, sem pagamento de indenização.

Retomando, a lei 14.620/2023 ainda acrescenta o art. 176-A § 5, incisos IV e V na lei 6.015/73. Destaque-se o inciso V, pois trata da sentença judicial de aquisição de imóvel, em procedimento expropriatório de que tratam os §§ 4º e 5º do art. 1.228 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).

O dispositivo previsto no artigo 1.228, § 4 e § 5 do Código Civil de 200255 sempre foi de interpretação controvertida na doutrina e nos tribunais. A doutrina sempre teve dificuldade em fixar a natureza jurídica do instituto protegido pelo dispositivo, já que nunca se chegou a um consenso. Quando a jurisprudência enfrentou o tema, ela também não ajudou muito a pacificar a questão, escolhendo uma natureza jurídica.

Foram formuladas 4 teses sobre a natureza jurídica do instituto. A primeira delas considerava que o artigo 1.228, § 4 e § 5 do Código Civil seria uma hipótese de usucapião. Seria um caso de usucapião coletiva. A segunda tese indica que o caso seria de desapropriação. A terceira tese informa que o instituto trazido pelos artigos 1.228, §4 e § 5 seria uma nova forma de aquisição da propriedade, uma forma de aquisição “sui generis”. A quarta teoria a respeito do tema indicaria que seria caso de uma acessão especial invertida56.

Sem entrar nas críticas a respeito de cada uma das teorias57, a teoria que “predominou” era a terceira, no sentido de que o artigo 1.228, parágrafos quarto e quinto do Código Civil de 2002 trabalhavam a ideia de um novo instituto, uma nova forma de aquisição da propriedade. Tal modalidade não seria um direito real, pois não tinha previsão em lei sobre o tema no artigo 1.225. O instituto foi denominado por alguns como “Desapropriação social. Desapropriação judicial indireta. Expropriação privada58.” Vários nomes foram sendo criados pela doutrina ao longo do tempo.

Agora, a lei 14.620/2023 veio fixar nova regra a respeito desse tema. A lei indica que para esse instituto trazido pelos § 4 e § 5 do artigo 1.228 do Código Civil como uma forma de registro de aquisição originária da propriedade. Embora a norma seja nova, ela não resolve a crise hermenêutica. Sim, pois o artigo 176-A, §5, inciso V da lei de registros públicos estabelece que o registro será uma forma de aquisição originária da propriedade, mas a usucapião também é uma forma de aquisição originária da propriedade, bem como também o é a desapropriação. Aliás, o instituto previsto no art. 1.228, § 4 e § 5 do Código Civil também pode ser um instituto novo, sui generis que funciona como uma forma de aquisição originária da propriedade. A regra pode ser inserida na primeira, na segunda e na terceira correntes.

Talvez, a regra do artigo 176-A da lei 6.015/73 apenas ponha termo a quarta corrente, pois a acessão invertida não geraria a aquisição originária da propriedade, mesmo que coletiva. A acessão invertida encontra previsão no artigo 1.255, parágrafo único do Código Civil e permite a aquisição da propriedade ao possuidor que planta ou edifica no terreno, mas cuja plantação ou edificação excede consideravelmente o valor do terreno, de modo que o valor daquilo que foi plantado ou edificado exaspera o valor do terreno. A lei permite que o dono das sementes ou do dono dos materiais adquira a propriedade do terreno, desde que pague uma indenização para o antigo proprietário59.

Em que pese haver o pagamento da indenização60 ao antigo proprietário do terreno, a aquisição via acessão invertida parece uma forma de aquisição derivada da propriedade imóvel, pelo dono das plantas e das sementes ou responsável pela obra. A medida visa a atender a função social da propriedade, conferindo ao proprietário das plantas e das sementes ou o responsável pela construção, o domínio do terreno. Porém, parece haver uma transferência direta do bem do antigo proprietário do terreno ao novo titular, responsável pela plantação ou edificação. Inclusive, o registro não gera nova matrícula do imóvel ou a extinção das demais obrigações/ônus que recaem sobre o bem, justamente porque o dispositivo ora investigado (art. 176-A, § 5 da lei 6.015/73) não prevê que haverá aquisição originária do bem nos casos do art. 1.255, parágrafo único do Código Civil. A omissão da previsão do registro na forma do artigo 1.255, § único do Código Civil parece afastar a acessão invertida como uma hipótese de forma de aquisição originária da propriedade.

Nesse sentido, se não há previsão do art. 1.255, parágrafo único no rol de hipóteses de formas de registro de aquisição originária da propriedade do art. 176-A, § 5 da Lei 6.015/73, mas há previsão no mesmo dispositivo legal de que o instituto do artigo 1.228, § 4 e § 5 do Código Civil é forma de aquisição originária da propriedade, a conclusão que se chega é que o artigo 1228, § 4 e § 5 do Código Civil não trata da acessão invertida coletiva. Tratam-se de institutos diferentes.

A polêmica permanece em relação as demais correntes fornecidas pela doutrina, mas é possível sustentar com algum grau de segurança jurídica que a hipótese do art. 1.228, § 4 e § 5 do Código Civil não é caso de acessão invertida coletiva.

O artigo 195-B da Lei 6.015/7361 alterado pela lei 14.620/2023 também traz alteração importante para fins urbanísticos. Para fins do cumprimento do artigo 30, § 4 e 37 da Lei 13.465/2017 já enfrentados acima, a lei 6.015/73 passou a permitir que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios possam solicitar ao registro de imóveis competente a abertura de matrícula de parte ou da totalidade de imóveis urbanos sem registro anterior. Também permite que o Município, em acordo com o Estado, possa requerer, em nome do Estado, a abertura de matrícula de imóveis urbanos estaduais situados nos limites do respectivo território municipal no registro de imóveis competente.

O artigo 221, incisos II e VI62 da lei 6.015/73 também se correlaciona com o artigo 26, § 6 da lei 6.766/76, na medida que autoriza o registro de escritos particulares autorizados em lei, assinados pelas partes e pelas testemunhas, com as firmas reconhecidas. Se a lei 6.766/76 atribui ao instrumento particular de cessão da posse do direito real de imissão na posse o caráter de escritura pública, nos casos de parcelamentos populares, informando que não se aplicará o artigo 108 do Código Civil, logo esse registro será realizado na forma do art. 221, II e V da lei 6.015/73.

No tocante ao artigo 221, inciso II da lei 6.015/73, o parágrafo 5 do dispositivo desburocratiza procedimentos, visando a facilitar o registro do bem imóvel. Ocorre que a flexibilização se dá em favor das instituições financeiras63. O texto permite que instituições que atuem com crédito imobiliário e autorizadas a celebrar instrumentos particulares com caráter de escritura pública, que essas instituições financeiras quando forem apresentar os escritos particulares possam realizar o ato dispensando testemunhas e o reconhecimento de firma. Talvez, a norma possa até vir a facilitar o trabalho dos adquirentes de imóveis.

Já o parágrafo sexto do artigo 221 da lei 6.015/73 trata do inciso VI do mesmo dispositivo. A regra trata do registro de contratos e termos administrativos nas hipóteses de desapropriação extrajudicial (sem processo judicial de desapropriação). O dispositivo informa que “os contratos e termos administrativos mencionados no inciso VI deverão ser submetidos à qualificação registral pelo oficial do registro de imóveis, previamente ao pagamento do valor devido ao expropriado”. Parece mais uma providência burocrática do registro que deverá ser observada.

Finalizamos o presente tópico de análise das demais alterações promovidas pela lei 14.620/2023 em outras leis esparsas. Passaremos a seguir a consignar as observações finais a respeito da lei.

8 – Observações Finais: As grandes inovações e críticas da lei 14.620/2023 no ordenamento jurídico.

A lei 14.620/2023 promove inúmeras mudanças no ordenamento trazendo novidades benéficas e outras não passíveis de elogios. Trata-se de lei ampla e abrangente que altera institutos de direito civil, de direito administrativo, de direito urbanístico, do direito registral, do direito processual civil, entre outros ramos do direito.

É necessário realizar algumas observações finais a respeito da aludida lei.

A primeira delas é sobre o direito real de imissão de posse. A questão parece nova, mas já haviam outras alterações no Decreto Lei 3365/41 que já vinham induzindo a ideia de que a imissão na posse seria um direito real autônomo. Não estava na lei, nem no Código Civil, mas quando houve a inserção do art. 34-A64 pela lei 13.465/2017 no corpo do texto do decreto lei 3365/41, já havia uma orientação no sentido de induzir que a imissão na posse passava a transferir a propriedade do bem desapropriado.

Mas, a lei 14.620/2023 inovou ao trazer a imissão na posse como um direito real autônomo. Só que o legislador não mediu as consequências dessa inovação. Isso em razão de estabelecer a desapropriação como um instituto e a imissão provisória na posse como um segundo instituto.

A desapropriação é modalidade de intervenção drástica e supressiva na propriedade alheia, que transfere obrigatoriamente e de maneira originária, para o patrimônio do ente federativo a propriedade do bem, com fundamento no interesse público e após o devido processo legal, mediante pagamento de indenização.

Já a imissão prévia na posse passa a ser vista como um direito real autônomo que pode ser obtido durante o curso do processo expropriatório. O ente federativo pode dar entrada no processo judicial de desapropriação e imitir-se provisoriamente na posse do bem imóvel, registrando o documento no Registro de Imóveis e passando direito real autônomo, que pode ser negociado com terceiros.

A junção dos 2 institutos pode trazer algumas dificuldades, pois pela lei, ambas são formas de aquisição originária da propriedade. O fato de ambos os institutos serem formas de aquisição originária da propriedade levanta a dúvida do que ocorre quando tem início o procedimento judicial desapropriatório, com o pedido deferido de imissão prévia na posse com registro no RGI, formando o direito real autônomo de imissão na posse. Essa dúvida surge pelo seguinte: será que o Poder Público não precisa mais finalizar o procedimento de desapropriação?

Na verdade, como referido anteriormente, o procedimento de desapropriação serve para realizar a indenização do particular expropriado, havendo divergência do momento temporal em que seria transferida a propriedade para o Poder Público via desapropriação. Nas duas correntes citadas, uma delas indicava que a desapropriação somente concederia o direito do Poder Público registrar a propriedade no domínio público com a sentença de desapropriação, enquanto que a outra indicava que somente após o pagamento total da indenização ao particular é que haveria a possibilidade do Poder Público inscrever o imóvel em seu nome, em nome do ente federativo, tornando público aquele bem.

Seja qual corrente que o leitor adote, fato é que a lei 14.620/2023 coloca uma dificuldade maior quando cria o direito real de imissão prévia na posse como instituto autônomo, desatrelado da própria desapropriação. Uma vez requerida a desapropriação e dentro do processo judicial desapropriatório se requer a imissão na posse com deferimento e posterior inscrição no RGI, formando direito real autônomo e título transacionável com terceiros, o Poder Público perde o interesse em prosseguir com a desapropriação. Embora o particular tenha muito interesse em prosseguir com o processo para receber a indenização, o Poder Público não terá muito interesse, na medida em que já conseguiu todo o seu objetivo, que era adquirir o domínio sobre aquele bem imóvel para cumprir a finalidade de direito público do decreto expropriatório.

Só que o direito real de imissão na posse não transfere a propriedade do imóvel. Isso significa que o Poder Público ainda não é dono do imóvel. Ele tem apenas a posse do bem e pode registrar essa posse para negociá-la como direito real autônomo. Algumas dúvidas surgem dessa situação.

A primeira delas é se a posse virou agora um direito real. Sempre houve muita discussão na doutrina de direito civil se a posse seria um direito real autônomo, pois não consta no rol do artigo 1.225 do Código Civil. Com a introdução do inciso XIV no artigo 1.225 do Código Civil pela lei 14.620/2023, a posse do Poder Público pode ser considerada como direito real, desde que levada a registro. Isso pode alterar completamente o entendimento jurídico da doutrina civilística, na medida que muitos doutrinadores podem ganhar mais subsídios para defender um direito real de posse.

O segundo problema é que se a imissão provisória na posse pode se tornar um direito real, há a necessidade de se delimitar o que ela é em relação a propriedade. Sim, pois o direito real de propriedade sempre foi considerado o direito completo, aquele em que o titular reúne as faculdades de usar, gozar, dispor e reivindicar. Todos os demais direitos reais sempre foram concebidos como derivações do direito real de propriedade, representando hipóteses de redução do direito real de propriedade para fins de permitir que terceiro recebesse o bem, seja para usá-lo, seja para servir como uma garantia (daí até o nome dos direitos reais de garantia, penhor, hipoteca e anticrese).

Também se poderia ceder apenas o uso ou o poder de reinvindicação ou o poder de disposição como um direito real. Aliás, também se poderia ceder apenas o solo, o subsolo ou o espaço aéreo, por exemplo. Veja o direito de superfície: assim como a antiga enfiteuse, o direito de superfície permite a cessão apenas da superfície e/ou do solo para o terceiro, sem que o proprietário perca a titularidade do bem imóvel.

Tradicionalmente, os direitos reais representam certos graus de mitigações do direito real de propriedade. Se o legislador criou o direito real de imissão na posse, isso significa que a posse passa a ser objeto de registro. Sò que é possível ter posse, sem ter propriedade. Daí a questão: será que quando o Poder Público transmite a imissão na posse como direito real à terceiros, ele não está transferindo mais direitos do que tem? Sim, pois ele ainda não tem a propriedade. E mesmo que se considere a posse como direito real autônomo, o que ocorre quando ela conflita com a propriedade?

Mesmo que se adote a teoria da função social da posse, teoria adotada pelos doutrinadores de direito civil que seguem a linha do direito civil constitucional, considerando a posse como um direito autônomo e oponível em relação ao proprietário, a dúvida persiste: em eventual conflito prevalecerá a posse ou a propriedade. Já que agora a posse é um direito real, até onde ela autoriza a relativização do direito de propriedade.

Ademais, é possível intuir que o novo direito real trará problemas difíceis. Imagine que o Poder Público registrou a imissão da posse em cartório, constituindo o direito real. Posteriormente, ele cede essa posse para terceiros, sem terminar o processo expropriatório. O terceiro abandona o bem. Vem um outro sujeito, um quarto interessado e passa a ocupar o bem, a título de posse. Detém a posse direta do imóvel. Passa o tempo e ele reúne os demais requisitos para obter a usucapião. Nesse caso, haverá direito de usucapir? E ele reivindicará em relação a quem: o antigo particular expropriado? O Poder Público? O terceiro que tinha direito real de imissão na posse, mas abandonou o bem? É difícil responder essa questão.

Para todos os efeitos, o proprietário do bem registrado permanece sendo o particular. Mas, na matrícula do imóvel haverá o registro da imissão prévia na posse em favor do poder público ou em nome do terceiro. Como foi visto, este registro é forma de aquisição originária da propriedade, mas consideramos o dispositivo inconstitucional, pois o processo de desapropriação ainda não chegou ao seu termo, não tendo o particular titular originário sido ressarcido. Mesmo que permaneça hígido o dispositivo, no caso acima é possível alegar a usucapião? É uma outra forma de aquisição originária da propriedade. Será que cabe alegação de imprescritibilidade do bem, pois ele é bem público? Mas, o título de propriedade não foi registrado no RGI em nome do Estado?

Há dúvidas até se o bem é realmente público, pois o processo judicial de desapropriação não findou. Há também o registro da imissão na posse como direito real. Será que esse registro de imissão na posse como direito real é o suficiente para transferir o domínio para o Poder Público, transformando aquele bem privado em bem público? E quando o direito real de imissão na posse for transferido para terceiros, o bem volta a ser privado? A partir de quando o operador do direito deve contar o prazo da usucapião nessas hipóteses? É do registro do direito real de imissão na posse no RGI ou da transferência do direito real de imissão na posse em favor do terceiro? É a partir do momento em que o terceiro abandona a posse do bem? Mas, quando isso se deu exatamente? Quando que o “quarto interessado” passa a manifestar posse própria para fins de obter posse ad usucapionem para fins da contagem do prazo para a usucapião?

Aliás, o terceiro que adquire a posse nessas condições está fazendo uso de uma posse justa ou injusta? Sim, pois somente a posse injusta, viciada pela violência ou clandestinidade permite a usucapião. A doutrina tradicional de direito civil sempre entendeu que o vício que inquina a posse como injusta por precariedade não convalesce. É justamente aquela posse que é transferida por contrato: contrato de comodato, contrato de locação, contrato de alienação fiduciária, promessa de compra e venda. Se a posse direta é transferida por contrato, restando o proprietário com a posse indireta, o possuidor direto nunca poderá usucapir o bem contra o proprietário, pois sua posse direta foi adquirida por contrato. Nesse caso, caso o possuidor direto se insurja contra o proprietário, a doutrina sempre entendeu que esse vício na posse é um vício por precariedade. O possuidor direto somente terá algum direito a usucapir o bem ou ter seu prazo contado, caso demonstre que a qualidade da sua posse mudou e que a posse direta do bem não está mais lastreada no contrato que lhe deu origem.

Ora, a posse que é transferida pelo Poder Público ao particular com base no direito real de imissão na posse é uma posse transferida por contrato. Nesse caso, o particular que recebe a imissão provisória na posse, recebendo a posse direta do bem, não poderá aduzir a usucapião contra o Poder Público. Seja pela imprescritibilidade dos bens públicos, seja pela precariedade do caráter possessório. Porém, o quarto interessado, aquele que ocupa o bem após abandono do terceiro titular do direito real de imissão na posse, este sujeito pode não ter qualquer relação jurídica com o Poder Público. Nesse caso, ele pode usucapir? Aplica-se a ele a imprescritibilidade dos bens públicos? Ele pode ceder a sua posse ou realizar uma acessio possessionis, uma soma de posses com uma quinta pessoa? Só o registro da imissão prévia na posse como direito real transfere a propriedade para o Poder Público? Não há resposta para nenhuma dessas indagações.

A mera posse do bem não rompe com a propriedade do particular. Todas as leis até agora sempre indicavam que para haver registro de propriedade através da posse, o possuidor deveria cumprir alguns requisitos para a sua posse obtivesse o poder de romper com a propriedade anterior, caracterizando a aquisição originária da propriedade via usucapião. Nesse caso, havia até um procedimento judicial especial de usucapião no CPC/1973, que fora extinto com o CPC/2015. O novo CPC trouxe outras possibilidades, como a aquisição da usucapião pela via administrativa. Mas, sempre preenchendo requisitos.

Agora, a lei permite que a posse gere uma possível transferência da propriedade, mesmo que sem prazo. Para isso, basta que o Poder Público desaproprie o bem e imita o terceiro na posse, registrando o título em cartório. O terceiro pode ser “titular da posse com aptidão para adquirir a propriedade”, sem que tenha demonstrado qualquer requisito. Isso pode dar azo a toda uma sorte de prevalecimentos, já que o ato de desapropriação é realizado por agentes políticos eleitos, que podem ter seus próprios interesses. Eles podem desapropriar o bem, registrar a imissão na posse em nome de terceiros ou transferir o direito real de imissão na posse por contrato, seja para se vingar de desafetos políticos, seja para realizar medidas populistas, paternalistas em favor de terceiros. O instrumento da imissão prévia na posse como direito real pode ser utilizado até mesmo para fins de corrupção. É possível que o agente político inclusive deixe a conta da indenização do expropriado para as próximas gerações, realizando prejuízo intergeracional para as futuras gerações.

Outra questão, nos casos em que há a desapropriação e o pedido de imissão prévia na posse, registrado em cartório de registro de imóveis, gerando o direito real de imissão na posse. Se o processo de desapropriação prosseguir e chegar ao seu termo, com determinação do valor final da indenização em favor do particular expropriado. Feito o depósito dos valores na conta do particular expropriado e o registro da propriedade em nome do poder público, o direito real de imissão provisória na posse será extinto. Isso porque a desapropriação é forma de aquisição originária da propriedade. Logo, como fica a situação do terceiro que recebe o direito real de imissão na posse do Poder Público? Ele perde a posse, a propriedade e tem que restituir o bem ao Poder Público. O Estado passará a ter que indenizar também o titular do direito real de imissão na posse pela perda da posse para o Poder Público? Também não há uma solução prévia para tal questão.

Uma outra observação a nível processual que pode ser realizada para a imissão provisória na posse é que talvez, como agora ela se tornou um título que pode ser registrado em cartório, tornando-se direito real, é possível discutir o caráter da decisão que confere a tutela de imissão na posse. Tradicionalmente, a imissão na posse sempre foi tratada como um pedido de tutela de urgência em favor do Poder Público. Era um provimento liminar que designava a necessidade de urgência na concessão da posse do imóvel para o Poder Público, para fins de realização do interesse público ilustrado no decreto expropriatório.

Com todas as alterações sofridas pela legislação processual de desapropriação pela imissão na posse ao longo do tempo65, o termo liminar utilizado pela doutrina passou a ser insuficiente para trabalhar a ideia dos provimentos jurisdicionais urgentes, passando a ser utilizado o termo tutela de urgência. No início do CPC/1973, toda provimento jurisdicional urgente era considerado uma cautelar, havendo o processo cautelar e o pedido de cautelar incidente. O termo tutela de urgência só foi produzido depois. A tutela de urgência é um termo gênero, que também foi cunhado pela doutrina a partir da reforma sofrida no CPC/73 pela lei nº 8.952/94, que passou a prever a figura da tutela antecipada. Como passou a existir dois provimentos de urgência no Brasil, a doutrina passou a utilizar o termo de tutela de urgência como um gênero para se referir a tutela cautelar e a tutela antecipada como espécies, sendo que esta só poderia ser pedida incidentalmente, enquanto aquela poderia ser requerida através de um processo cautelar autônomo ou incidentalmente, no tramite do procedimento principal.

A imissão na posse é uma tutela de urgência, pois quando da sua origem era uma liminar pedida em procedimento sumário, que devia ser analisada em prazo exíguo devido a relevância e urgência do interesse público, já que o proprietário perderia a posse do bem, sem que o Poder Público tivesse pago ainda indenização.

Com o passar dos anos e a intensificação dos estudos da doutrina de processo civil, a doutrina passou a investigar se o caso era de uma tutela de urgência liminar cautelar ou de uma tutela de urgência liminar antecipada. Tradicionalmente, sempre se associou a imissão provisória na posse do Poder Público no imóvel desapropriado como uma tutela de urgência liminar cautelar, na medida em que ela “garantia para satisfazer”. Isso em razão da imissão provisória na posse ser concedida para garantir a desapropriação, já que precisavam ser tomados atos preparatórios para aquisição do bem, bem como proceder a derrubada do bem imóvel em prol do interesse público corporificado no decreto expropriatório.

Como tutela de urgência, a doutrina e a jurisprudência exigiam para a concessão da tutela cautelar a demonstração dos requisitos da tutela de urgência, que era a fumaça do bom direito (fumus boni iuris) e o perigo da demora (periculum in mora). Somente assim ficaria demonstrada a urgência, o que permitiria a concessão do provimento cautelar.

Atualmente, o CPC/2015 aprofundou ainda mais a discussão, cunhando o termo tutela provisória. Esta tutela provisória seria classificada em tutela provisória de urgência (subdividindo-se em tutela provisória de urgência cautelar e tutela provisória de urgência antecipada) e a chamada tutela de evidência. Ou seja, a tutela provisória é um gênero que compreende a tutela de urgência e a tutela de evidência, como espécies.

Essa nova classificação da tutela provisória pode trazer reflexos para a imissão provisória na posse de bem imóvel, nos procedimentos judiciais de desapropriação. Primeiro, em razão de ser possível sustentar que pode haver imissão na posse sem a existência de urgência. Ou seja, a desapropriação pode ocorrer e o pedido de tutela provisória de imissão na posse pode ocorrer sem a demonstração do requisito da urgência (fumus boni iuris e periculum in mora).

O pedido de imissão na posse de bem imóvel pode continuar sendo realizado incidentalmente, mas não só com base na tutela provisória de urgência. Pode ser realizado o pedido de imissão na posse do bem imóvel, com base na tutela provisória de evidência, já que esta se destina a tutela de um direito evidente66, de um direito claro e manifesto em favor do requerente da tutela, que exige uma técnica específica para tutelar o direito.

Ora, o direito de imissão prévia na posse do bem imóvel pode ser realizado com base na tutela provisória de evidência, pois há um direito evidente67 a ser tutelado. Com a declaração de desapropriação via decreto expropriatório, o particular titular do imóvel sabe que perderá o imóvel, restando para ele ser indenizado pela retirada abrupta de sua propriedade. Mas, há um juízo de certeza de que o bem será retirado do domínio do particular. Tanto é verdade, que a discussão no processo judicial de desapropriação é mais sobre o preço, o valor da indenização. O particular tem um espaço defensivo de contestação bastante limitado, pois pode alegar que há nulidade do decreto expropriatório, eventual vício processual e a não concordância com o preço (art. 20 do Decreto Lei 3365/41). Há até certa discussão na doutrina se essa limitação da defesa do particular expropriado, se essa limitação defensiva seria constitucional, pendendo a discussão para a corrente que afirma que haveria constitucionalidade68 dessa limitação defensiva no juízo expropriatório.

Como a alegação defensiva é limitada, o particular praticamente somente terá o direito de reivindicar em juízo o direito de indenização pelo valor que entende como valor de mercado, como preço justo pela perda do bem. Assim, uma vez declarada a expropriação do bem via decreto ou lei expropriatória, há uma grande certeza que o particular perderá o bem imóvel, restando discutir a indenização. Tanto é verdade, que o poder público pode solicitar a imissão prévia na posse do bem imóvel, bem como intervir no imóvel para verificar as condições do bem até mesmo antes da imissão na posse ou sem imissão na posse. O Poder Público pode enviar um fiscal para avaliar as condições físicas do imóvel expropriado, antes da sentença de desapropriação.

Isso já demonstra que o particular expropriado já deve ter um juízo de certeza que perderá o bem, se contentando em receber a indenização pelo valor justo. A sentença judicial indicará qual é o valor justo, mas pode haver recurso de apelação ao Tribunal para que o Tribunal defina se mantém a sentença ou a reforma, indicando que aquele valor não é justo e indicando o valor que entende como justo.

Esse juízo de certeza clássico da perda da propriedade pelo particular expropriado interfere na interpretação que se pode dar a tutela provisória de imissão na posse. É possível sustentar que se possa pedir a tutela provisória de imissão na posse com base no juízo de certeza de que o particular perderá a propriedade, restando aí o direito evidente do Poder Público a titularizar a coisa. É muito raro que após a imissão provisória do Poder Público no bem imóvel, que o particular retome a posse do bem, restando para ele apenas a indenização.

Assim dito, se há esse juízo de certeza de que o particular perderá a propriedade do bem, é possível sustentar a existência de um direito evidente do Poder Público em desapropriar o imóvel, que decorre justamente do decreto expropriatório. Se há um direito evidente do Poder Público em expropriar o imóvel, o requerente poderá realizar o pedido de imissão na posse do bem imóvel com base na tutela provisória de evidência.

Há argumentos para justificar a evidência do direito, conforme visto acima, com base na expedição do decreto expropriatório. Ademais, o artigo 311, II e IV do CPC69, que preveem as hipóteses de concessão da tutela provisória de evidência, estabelecem a possibilidade de se pedir tutela provisória de evidência com base em prova documental. Com base no inciso II, a tutela de evidência será concedida se as alegações de fato puderem ser demonstradas apenas documentalmente e houver tese de precedente repetitivo ou em súmula vinculante a respeito. Com base no inciso IV, se a petição for instruída com prova documental dos fatos constitutivos do direito do autor, a que o réu não consiga oferecer prova que seja capaz de gerar dúvida razoável no juízo a respeito do direito do autor. É justamente o que ocorre com a tutela de imissão provisória na posse.

Embora o inciso II do artigo 311 do CPC seja uma previsão de tutela provisória de evidência mais benéfica para a imissão na posse, pois é possível a concessão liminarmente70, logo no início do procedimento, o inciso II acaba exigindo que já tenha um precedente repetitivo ou súmula vinculante a esse respeito. Não há notícia disso na nossa jurisprudência, mas nada impede que com o passar dos anos e com o amadurecimento da tese aqui sustentada, que os Tribunais se posicionem a respeito, permitindo a concessão de tutela imissão prévia na posse do bem como uma espécie de tutela de evidência, com base no inciso II do artigo 311 do CPC e aí essa tutela passe a ser considerada como uma tutela de evidência concedida liminarmente.

Também é possível sustentar a concessão da tutela provisória de imissão na posse com base no inciso IV do artigo 311, mas sem a concessão liminar71, logo no início do processo. Talvez, por esse dispositivo seja até mesmo mais fácil sustentar a existência de um direito evidente passível de ser tutelável via tutela provisória de evidência, pois o dispositivo permite que o interessado alegue seu direito a tutela de evidência, desde que demonstre a prova do ato constitutivo do seu direito através de prova documental desde o oferecimento da petição inicial, prova documental a que o réu não consiga produzir outra prova que induza uma dúvida razoável no juízo.

É possível que o Poder Público demonstre a evidência do direito a imissão na posse através da prova documental, apresentando o decreto expropriatório ou lei expropriatória que declare a desapropriação daquele bem imóvel. Essa é a prova constitutiva do direito alegado que é a desapropriação do bem, sendo que a imissão prévia na posse é um minus, é uma consequência da desapropriação. É um pedido de apossamento do bem após aquele bem ter sido declarado de necessidade pública, de utilidade pública ou de interesse social. Trata-se de um ato preparatório, instrumental, que permite que a Administração Pública assuma a posse do bem para proceder aos demais atos que atendem o interesse público.

O direito da Administração Pública imitir-se no bem imóvel torna-se evidente com a expedição do decreto expropriatório ou com a promulgação da lei de efeitos concretos expropriatória. Demonstrado o direito evidente, a Administração Pública pode imitir-se provisoriamente na posse do bem pela concessão da tutela de evidência, com base no artigo 311, IV do CPC, dado que o particular expropriado quase não terá provas a produzir que infirmem o direito da Administração Pública de desapropriar o bem imóvel. Isto em razão da sumariedade da tutela no âmbito da desapropriação, bem como a restrição defensiva e probatória a que o particular está sujeito.

A vantagem da concessão da tutela de imissão prévia na posse via tutela provisória da evidência está exatamente na desnecessidade de se alegar e provar urgência da imissão do Poder Público na posse do bem imóvel. Não será necessário provar urgência para o Poder Público imitir-se na posse de um bem desapropriado. Mesmo nos casos em que não houver urgência no apossamento administrativo, a tutela provisória de imissão na posse poderá ser concedida com base na tutela de evidência, pois há um direito evidente em favor do Poder Público, qual seja, o direito evidente de apossar-se do bem expropriado, dada a pouca chance do particular reverter tal situação.

Outra observação a ser realizada com base na imissão da posse é que como ela se tornou um direito real autônomo, passível de ser registrado no cartório de registro de imóveis assim que a decisão judicial de imissão na posse for expedida, também tem relação com a natureza da tutela de imissão na posse. Como vimos, a lei sempre tratou ela como uma hipótese de tutela provisória de urgência de caráter cautelar, em que pese sustentarmos que agora é possível a tutela de imissão na posse com base na tutela provisória de evidência, sem demonstração de urgência.

Se é possível dizer que imissão prévia na posse do bem é o caso da tutela provisória de urgência cautelar, o Poder Público interessado que tiver expedido lei de efeitos concretos ou decreto do Chefe do Poder Executivo expropriando o bem, o Poder Público poderá manejar petição inicial solicitando a tutela cautelar em caráter antecedente, submetendo-se ao rito do artigo 305 a 310 do CPC/2015. Dessa forma, o Poder Público poderá requerer a imissão provisória na posse do bem, antes de ajuizar a ação de desapropriação ou de existir processo judicial de desapropriação. Ou até mesmo antes da manifestação do particular expropriado a respeito da indenização na fase administrativa. Esse pode ser outro mecanismo utilizado pelo Poder Público para obter a posse do bem, enquanto discute administrativamente o valor da indenização.

Caso o particular não aceite o valor oferecido administrativamente, o Poder Público, deverá apresentar o pedido principal no prazo de 30 dias a contar da efetivação da tutela cautelar de imissão na posse, sendo tal pedido deduzido nos mesmos autos do pedido de tutela cautelar (art. 308 do CPC/2015). Poderá apresentar o pedido e também se submeter a audiência de conciliação e mediação, para tentar novamente a solução amigável do litígio com pagamento da indenização (art. 308, § 3 do CPC).

Uma última observação ainda no que toca a imissão provisória e a tutela de urgência. Como referido acima, a imissão na posse sempre foi reputada como uma tutela de urgência de natureza cautelar, pois ela “garante para satisfazer”. Significa que essa tutela é vista como uma garantia fornecida pelo Poder Judiciário, de modo a preservar a concessão da tutela definitiva, que é o pagamento da indenização e o registro da propriedade em nome do Poder Público, como nova matrícula, uma vez que se trata de forma de aquisição originária da propriedade.

Ocorre que agora a imissão prévia na posse virou direito real autônomo, passível de registro no RGI e transacionável com terceiros. Devido essa sistemática, o Poder Público e o terceiro que desapropria o bem, em execução do decreto expropriatório ou da lei expropriatória de efeitos concretos, eles podem ter interesse apenas na imissão na posse, para leva-la a registro. Como visto, a lei 6.015/73 trata a imissão na posse como uma forma de aquisição originária da propriedade, pois indica que ela pode ser levada a registro gerando uma nova matrícula.

Sendo assim, o Poder Público ou particular expropriante podem ter interesse apenas na imissão na posse, este direito autônomo. É possível sustentar que além das tutelas provisórias de urgência cautelar e de evidência, o responsável pela desapropriação requeira um tutela provisória de urgência antecipada na modalidade antecedente.

Se a imissão provisória na posse e a propriedade são dois direitos reais autônomos diferentes, sendo que um recai sobre a posse e outro recai sobre a propriedade, eles podem ensejar diferentes tipos de tutela. É sabido que o procedimento judicial de desapropriação se destina mais a apurar se o montante ofertado a título de indenização para o particular está correto ou se o particular tem direito de receber um valor maior a título de indenização.

Se o caso é de apurar a indenização, os objetos da sentença de desapropriação e do registro da propriedade são diferentes. A sentença de desapropriação serve para fixar o montante da indenização devido, sendo que o registro da propriedade em nome do Poder Público é apenas um efeito secundário72. A rigor, o bem já não pertenceria mais ao proprietário particular desde a expedição do decreto expropriatório ou desde a lei de efeitos concretos que determina a desapropriação. Inclusive, com a imissão na posse pelo Poder Público, o proprietário perde também a posse do bem.

O registro da propriedade no RGI em nome do Poder Público poderia ser visto como um efeito secundário, um efeito anexo da sentença de desapropriação. O objeto principal da sentença de desapropriação seria determinar o valor da indenização do particular, bem como verificar se o valor ofertado inicialmente pelo Poder Público é justo ou injusto. A discussão na sentença de desapropriação não recai sobre se deve ou se não deve ser desapropriado o imóvel. A discussão recai sobre o preço.

Pois bem. Se o registro da sentença de desapropriação em cartório é um efeito secundário, anexo, para fins de registro da propriedade em nome do Poder Público, logo esse é um efeito da sentença de desapropriação, que pode ser antecipado pela técnica da antecipação dos efeitos da tutela provisória. A tutela provisória antecipada, ela não antecipa a sentença ou a desapropriação. Na verdade, ela antecipa os efeitos da sentença73. O efeito final da sentença condenatória é instar o Estado ao pagamento da indenização pela diferença apresentada entre o que o Estado ofereceu e o que o juízo entendeu como devido.

O efeito secundário da sentença condenatória nas ações de desapropriação é o registro da propriedade em nome do ente federativo. Tradicionalmente, esse efeito somente poderia ser concedido após a sentença, por derivar da sentença. Ocorre que pela técnica da tutela provisória antecipada, o efeito da sentença anexo do registro da propriedade em nome do Poder Público pode ser antecipado para o Poder Público.

Antes não havia muito sentido antecipar os efeitos da tutela nas ações de desapropriação, pois a ação de desapropriação já fornece a imissão provisória na posse a título de tutela cautelar. Mas, até o termo cautelar foi cunhado depois, sendo que no CPC/1939 todos os provimentos urgentes era tudo considerado dentro do “guarda chuva” das liminares.

Agora, como a imissão provisória na posse é um direito real autônomo, apartado direito real de propriedade, pode existir interesse em se realizar uma antecipação dos efeitos da tutela dentro da desapropriação, para antecipar o efeito da sentença relativo ao registro da propriedade. Assim, o Poder Público pode registrar a propriedade no RGI, mas transferir a posse através do direito real de imissão na posse para terceiros. A propriedade do bem público passará a ser dissociada da sua posse. E, enquanto isso, a ação judicial de desapropriação prossegue para verificação da indenização devida ao particular expropriado.

É possível vislumbrar que o Poder Público possa até mesmo solicitar a estabilização dos efeitos da tutela provisória antecipada antecedente74 para que possa registrar a propriedade do bem. Isso pode ser útil para fins de fornecer a segurança jurídica sobre quem passará a ser o proprietário do bem imóvel expropriado, bem como quais são os direitos que recaem sobre o bem. A indenização prosseguirá o processo judicial de desapropriação, mas o efeito secundário da autorização para registrar o bem imóvel pode ser antecipado dentro da sistemática dos artigos 303 e 304 do CPC. E caso siga as regras do artigo 304 do CPC, a tutela antecipada antecedente se tornará estável. Não recai sobre a decisão que antecipa a tutela a coisa julgada, mas recai sobre a decisão judicial que antecipa os efeitos da tutela a estabilidade reforçada da decisão do art. 304 do CPC.

No caso de ausência de impugnação ou recurso, estabilizada a tutela e registrado imóvel no RGI em nome do Poder Público, o particular passará a ter prazo para pedir a revisão, reforma ou invalidação da decisão. Será de 2 anos o prazo para que o particular possa rever, reformar ou invalidar a decisão que estabiliza a tutela provisória antecipada antecedente na desapropriação, contado esse prazo da ciência da “decisão que extinguiu o processo”. Nesse caso, não haverá extinção do processo de desapropriação por causa da necessidade de se avaliar se a indenização oferecida para particular pelo Poder Público foi justa. Haverá uma extinção parcial do processo sem exame do mérito em relação ao registro da propriedade, pois é esse pedido que se torna estável. A indenização prossegue sendo objeto litigioso do processo judicial de desapropriação.

Raciocínio similar não pode ser usado com imissão na posse como direito real autônomo. Isso porque a posse não é um efeito necessário, essencial da propriedade. Posse e propriedade são institutos jurídicos diferentes75. A posse pode conduzir o possuidor a obter a propriedade, mas isso não se dará em todos os casos. Inclusive, é possível haver ação do proprietário, que não foi possuidor e nunca foi possuidor, para reivindicar a propriedade, a chamada ação reivindicatória. Nesse caso, a posse não conduz a propriedade, pois a pessoa pode ter adquirido a propriedade do bem antes de adquirir a posse desdobrada do bem, seja ela direta ou indireta.

Ou seja, com a aquisição da propriedade, a posse não é um efeito necessariamente derivado da propriedade. A posse é um direito autônomo em relação a propriedade. Quem tem propriedade pode não ter posse. E quem tem posse pode nunca ter tido propriedade. Nesse caso, não é possível que o Poder Público peça a antecipação dos efeitos da tutela provisória antecedente da posse em uma ação de desapropriação, uma vez que o efeito anexo da sentença é o registro da propriedade no RGI. O que o Poder Público pode pedir em antecipação é o registro da propriedade, como efeito anexo da sentença de desapropriação que é76. A posse não é um efeito secundário anexo da propriedade.

9 – Conclusão:

Feitas todas as observações acima, a lei 14.620/2023 trouxe inúmeras inovações no ordenamento jurídico, tendo alterado o Código Civil para introduzir a questão dos direito real autônomo de imissão na posse. Também alterou inúmeros dispositivos do decreto lei de desapropriações, alterou dispositivos da lei de parcelamento do solo urbano, do Código de Processo Civil, da lei de regularização fundiária, da lei de regência do FGTS, entre outras leis.

A lei produziu diversas alterações no ordenamento trazendo algumas soluções em alguns trechos, outras inovações em outros e até mesmo pontos a serem criticados ou mesmo rejeitados pela pecha da inconstitucionalidade.

Encerramos o texto, aspirando que as inovações trazidas sejam suficientes para cumprir o objetivo da lei: tutelar o direito fundamental de moradia, fornecendo moradia digna para todos. Há um longo caminho a percorrer para tanto.

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Sobre o autor
Rodrigo Gil Spargoli

Advogado. Especialista em Direito Civil Constitucional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Especialista em Direito do Estado e Advocacia Pública pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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