A Possível (In) constitucionalidade dos Artigos 1.731 do Código Civil de 2002 e 21, § 3 da Lei 10.257/2001.

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The Possible (Un) constitutionality of articles 1,731 Civil Code and article 21, § 3 of Law 10.257 / 2001.

Resumo: Esse artigo trata da possível inconstitucionalidade dos artigos 1.371 do Código Civil e artigo 21, § 3 da Lei 10.257/2001 quando analisados juridicamente em face da Constituição Federal de 1988. Tais dispositivos tratam da transmissão dos encargos tributários ao superficiário, titular do direito de superfície. Em primeiro lugar, serão analisadas a origem do direito de superfície que reside no instituto da enfiteuse. Posteriormente, se passará a comparação da enfiteuse com o instituto do direito de superfície, que possui regras tanto no Código Civil quanto no Estatuto da Cidade. Serão analisadas algumas características dos institutos. Posteriormente, se passará a análise do artigos 1.371 e 21, § 3 da Lei 10.257/2001, seu modo de interpretação e aplicação. Em seguida, se passará a analisar mais detidamente a inconstitucionalidade dos dispositivos em relação ao ordenamento jurídico pátrio. Por fim, haverá uma proposta hermenêutica interpretativa dos artigos citados, com o objetivo de tentar dar interpretação que conforme tais dispositivos com a Constituição Federal, impedindo-se a sua declaração total de inconstitucionalidade.

Palavras-Chave: Responsabilidade Tributária – Direito de Superfície – Solidariedade Tributária – Art. 1.371 Código Civil – Artigo 21, § 3 Lei 10.257/2001.

Abstract: This article treats the possible unconstitutionality of articles 1,371 of the Civil Code and article 21, paragraph 3 of Law 10,257 / 2001 when analyzed legally in comparison of the Federal Constitution of 1988. Such provisions deal with the transmission of tax charges to the surface owner, who holds the surface right. . Firstly, the origin of the surface right residing in the institute of emphyseus will be analyzed. Subsequently, the comparison of emphyseus with the institute of surface law, which has rules in both the Civil Code and the City Statute, will be passed. Some characteristics of the institutes will be analyzed. Subsequently, the analysis of articles 1,371 and 21, § 3 of Law 10.257 / 2001, their mode of interpretation and application will be reviewed. Next, we will examine more closely the unconstitutionality of the provisions in relation to the national legal system. Finally, there will be an interpretative hermeneutic proposal of the cited articles, with the purpose of trying to give interpretation that complies with these provisions with the Federal Constitution, preventing their total declaration of unconstitutionality.

Keywords: Tax Liability - Surface Law - Tax Solidarity - Art. 1,371 Civil Code - Article 21, § 3 Law 10.257 / 2001.

Sumário: Introdução. 1 - Código Civil de 1916 X Código Civil de 2002 e Estatuto da Cidade: O direito de enfiteuse e o direito de superfície no ordenamento jurídico brasileiro. 2 - O artigo 1.371 do Código Civil e artigo 21, § 3 da Lei 10.257/2001. 3 - Análise da Inconstitucionalidade dos Artigos 1.371 do Código Civil e 21, § 3 da Lei 10.257/2001. 4 – Uma possível solução hermenêutica para o vício de inconstitucionalidade formal dos artigos 1.371 do Código Civil e art. 21, § 3 do Estatuto da Cidade. Conclusão.

Introdução:

O presente artigo busca investigar alguns aspectos do direito de superfície previstos no Código Civil e do Estatuto da Cidade, fazendo o comparativo entre ambos os textos legais. Posteriormente passa-se a análise dos artigos 1371 do Código Civil e 21, § 3 da Lei 10.257/2001 analisando sua possível incompatibilidade com o texto constitucional.

1 - Código Civil de 1916 X Código Civil de 2002 e Estatuto da Cidade: O direito de enfiteuse e o direito de superfície no ordenamento jurídico brasileiro.

A enfiteuse tinha previsão no Código Civil de 1916. Tratava-se de direito real de coisa alheia1 que consistia na permissão de que o senhorio direto pudesse constituir um direito real, alienando a terceiro o domínio útil da coisa, sendo remunerado pelo terceiro enfiteuta através do foro, pago anualmente2, e do laudêmio3, quando houvesse transferência do domínio útil para terceiro. O laudêmio somente era devido nos casos de alienação domínio útil, consistindo em remuneração para o senhorio direto pela opção pelo não uso do direito de preferência previsto pela lei. O artigo 678 do Código Civil de 1916 trazia o conceito legal do direito real de enfiteuse, também chamado de aforamento ou emprezamento:

Art. 678. Dá-se a enfiteuse, aforamento, ou emprazamento, quando por ato entre vivos, ou de última vontade, o proprietário atribui à outro o domínio útil do imóvel, pagando a pessoa, que o adquire, e assim se constitui enfiteuta, ao senhorio direto uma pensão, ou foro, anual, certo e invariável.

Tal direito real era considerado perpétuo4 e permitia que o enfiteuta utilizasse o chamado domínio útil5 do solo para edificar, plantar ou construir, pagando ao senhorio direto um foro anual pelo uso de tal direito real. Tratava-se de direito real que poderia ser constituído tanto pelo Poder Público quanto pelos particulares na exploração de atividades econômicas. Em caso de alienação do domínio útil para terceiros, o enfiteuta deveria notificar o ato ao senhorio direto para avisá-lo da possibilidade transmissão do domínio útil, para que o senhorio direto pudesse exercer seu direito de preferência/prelação na aquisição do domínio útil e recuperação da propriedade plena sobre o bem imóvel6. Caso o senhorio direito não exercesse o direito de opção, o enfiteuta poderia alienar seu domínio útil a terceiro, devendo ser pago o laudêmio ao senhorio direto como forma de remuneração por força da sua renúncia ao direito de preferência.

Eram transmitidos ao enfiteuta pelo senhorio direito poderes bastante amplos, que consistiam nas faculdades de usar, gozar, fruir e uma dispor do bem, havendo uma disponibilidade condicionada a certos requisitos previstos na lei. Daí se tratar a enfiteuse como o mais amplo dos direitos reais sobre coisas alheias7.

O instituto permitia que o enfiteuta utilizasse a coisa como se fosse proprietário pleno e fora regulamentado mais como uma forma de dar aproveitamento a terrenos não utilizados, buscando evitar invasões e improdutividade das terras. O instituto não foi contemplado no Código Civil de 2002, lei revogadora do Código Civil de 1916, tendo o instituto da enfiteuse sido objeto de revogação. Mas, a nova codificação civil resguardou as enfiteuses já existentes durante o Código Civil de 1916, informando que elas permanecem sendo válidas e regidas pela codificação anterior. O novo Código Civil apenas impediu que novas enfiteuses sejam criadas, mantendo-se as já existentes8. Ocorre o fenômeno da ultratividade9 da lei anterior revogada, já que ainda se a aplica o Código Civil de 1916 e legislação correlata da enfiteuse nos dias atuais, por expressa disposição legal10.

A substituição do direito de enfiteuse pelo direito de superfície ocorreu de maneira progressiva no ordenamento jurídico brasileiro. O legislador instituiu o direito de superfície no Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001), sem revogar a enfiteuse, ainda prevista pelo Código Civil de 1916. Então, durante algum período, o direito de enfiteuse e direito de superfície passaram a viger e caminhar paralelamente, até que fosse promulgado o Código Civil de 2002, que revogou a enfiteuse e passou a prever apenas o direito de superfície.

O direito de superfície é definido por Arnaldo Rizzardo da seguinte forma:

“Constitui o direito de superfície na faculdade de construir ou manter, perpétua ou temporariamente, uma obra ou plantação em terreno. O proprietário de um imóvel, concebido na sua integridade, concede o direito a outrem de construir ou plantar em seu terreno, por tempo determinado, formalizando-se através de escritura pública, que sujeita-se ao Registro Imobiliário.”11

Já o professor Flávio Tartuce conceitua o instituto da superfície, nos seguintes termos:

“A superfície é o instituto real pelo qual o proprietário concede a outrem, por tempo determinado ou indeterminado, gratuita ou onerosamente, o direito de construir ou plantar em seu terreno. Tal direito real de gozo ou fruição recai sempre sobre bens imóveis, mediante escritura pública, devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis (art. 1.369 do CC).”12

O direito de superfície é um direito real13, que engloba as faculdades de usar, gozar, dispor relativamente da propriedade e reivindicar para o proprietário. Através desse direito real, o proprietário da superfície poderá plantar, construir ou edificar, sendo o superficiário titular de um direito real com conteúdo econômico. Pode transferir o direito real de superfície para terceiros, bem como tem o direito de sequela, consistente no poder de perseguir a coisa daquele terceiro que injustamente a possua ou a detenha. Da superfície podem ser constituídos outros direitos reais, tais como usufruto, direito real de habitação, direito real de uso, direito real de hipoteca.

Como referido acima, o instituto do direito de superfície é tratado tanto pelo Código Civil de 2002 como pelo Estatuto da Cidade, tendo origem no Estatuto. Pode parecer redundante ou até esquisito o fato de 2 leis editadas praticamente no mesmo momento histórico regulamentarem o mesmo instituto jurídico. Mas, o fato é que a disciplina dos 2 institutos nas aludidas leis guarda diferenças de tratamento. O tratamento poderia ser uniforme, mas o legislador estabeleceu diferenças entre o direito de superfície estabelecido no Código Civil e o Direito de Superfície previsto no Estatuto da Cidade. A seguir, exporemos algumas dessas diferenças.

O Estatuto da Cidade trata do Direito de Superfície nos artigos 21 a 24 da Lei 10.257/2001. Já o Código Civil de 2002 fixa as regras de direito de superfície nos artigos 1.369 a 1377 do Código Civil. Vejamos algumas características dos direitos reais supramencionados.

Como características comuns, os direitos de superfície previstos no Código Civil de 2002 e no Estatuto da Cidade tem o fato de serem direitos reais, que podem ser estabelecidos de maneira gratuita ou onerosa14. Em ambas as leis, há previsão de que o direito real deve ser levado a registro no registro de imóveis, para fins de constituição15. Também é comum a ambos os direitos de superfície o modo de transmissão, que pode ser inter vivos ou causa mortis16. Também há em comum entre as leis o dispositivo que fixa direito de preferência ao proprietário ou ao superficiário, no caso de oferta ou proposta de alienação sobre direito real de superfície para terceiros, ou a propriedade do solo, o que visa a consolidar a propriedade novamente nas mãos de apenas um titular17. Os direitos de superfície tem em comum o fato de que a extinção do direito real ocasionar a consolidação da propriedade plena na figura do novo proprietário. Esse fenômeno é chamado de reversão, que independe de indenização, salvo se as partes estipularam de maneira diversa no contrato de concessão18. Extingue-se o direito de superfície pelo advento do termo contratual, pela desapropriação19 ou pelo desvio de finalidade do direito, fixado no contrato de cessão ou por outra causa que possa extinguir o direito real como a confusão das figuras de superficiário e do proprietário do solo na mesma pessoa, o desaparecimento da coisa, entre outras. O próprio Código Civil estabelece que as regras nele contidas sobre direito de superfície podem ser aplicadas em outros casos de maneira subsidiária, quando constituído o direito por pessoas jurídicas de direito público e quando a legislação especial não dispuser de maneira diversa20.

Especificamente, quando tratamos do Direito de Superfície do Código Civil verificamos que o código estabelece algumas características próprias: a finalidade do direito de superfície não é urbanística; enquanto que o Código Civil estabelece que o direito de superfície regido pela lei geral somente pode ser fixado por prazo determinado21. Isso significa que o direito de superfície do Código Civil não é perpétuo. Tem como objeto apenas o solo, não recaindo sobre o subsolo ou espaço aéreo22.

Com relação ao Direito de Superfície estabelecido no Estatuto da Cidade, este direito é destinado para fins urbanísticos, sendo um dos instrumentos da Política Urbana23. O contrato de concessão do direito real de superfície é celebrado entre o proprietário do solo e o superficiário, podendo ser fixado por prazo determinado ou por prazo indeterminado24. Nesse sentido, o direito de superfície do Estatuto da Cidade pode ser perpétuo ou ser fixado por prazo determinado que permita ao superficiário a exploração da econômica da coisa, conforme remuneração a ser fixada entre as partes. Tem como objeto o solo, subsolo ou espaço aéreo, sendo direito real que pode ser estabelecido de modo mais abrangente do que aquele estabelecido conforme as regras jurídicas do Código Civil25.

3 - O artigo 1.371 do Código Civil e artigo 21, § 3 da Lei 10.257/2001.

Outra semelhança entre o direito real de superfície do Código Civil e aquele previsto no Estatuto da Cidade reside no fato de que as duas leis estabelecerem regras de transferência dos ônus financeiros para o superficiário. A redação dos artigos 1.371 do Código Civil e artigo 21, § 3 do Estatuto da Cidade vem nesse sentido, estabelecendo o dever do superficiário de arcar com as despesas que recaiam sobre o imóvel. O Estatuto da Cidade estabelece uma previsão um pouco diferente do que o Código Civil quanto ao alcance das despesas suportadas pelo superficiário, quando prevê que nem todas as despesas com a coisa sejam de responsabilidade do superficiário. A responsabilidade do superficiário recai apenas aquelas despesas que incidirem sobre a propriedade superficiária. Vejamos os dispositivos:

Código Civil - Art. 1.371. O superficiário responderá pelos encargos e tributos que incidirem sobre o imóvel.

Estatuto da Cidade – Art. 21, (...) § 3o O superficiário responderá integralmente pelos encargos e tributos que incidirem sobre a propriedade superficiária, arcando, ainda, proporcionalmente à sua parcela de ocupação efetiva, com os encargos e tributos sobre a área objeto da concessão do direito de superfície, salvo disposição em contrário do contrato respectivo.

Pelas regras acima, a lei transfere a responsabilidade pelos encargos e tributos ao superficiário, seja sobre toda a propriedade do imóvel como denota a leitura do dispositivo do Código Civil, seja sobre a parcela de ocupação efetiva como expõe o Estatuto da Cidade. Os dispositivos tratam do mesmo tema, embora o Estatuto da Cidade admitem que o superficiário pague as despesas e encargos proporcionalmente sobre a área efetivamente ocupada pelo superficiário.

Perceba que os dispositivos legais são claros no sentido de realizar a transferência do ônus tributário para o superficiário, tratando de maneira específica a questão tributária. A lei poderia ter estabelecido que seriam transferidas as despesas em geral com a coisa para o superficiário, sem entrar em maiores detalhes de que se tratava de despesa tributária ou outras despesas de manutenção da coisa.

É natural que contratos particulares estabeleçam o dever do possuidor direto de pagar os encargos tributários. Essa transferência de encargo ocorre nas mais diversas modalidades de contratos, tais como locação, arrendamento mercantil, alienação fiduciária em garantia, comodato, entre outros contratos que importem na transferência da posse direta de coisa móvel ou imóvel para alguém, ficando o proprietário da coisa com a posse indireta, fenômeno apontado pela doutrina de direito civil como desmembramento da posse ou bipartição da posse26. A transferência da posse por contrato ou por constituição de direito real gera esse desmembramento da posse entre possuidor direto e indireto, sendo o possuidor indireto na maioria das vezes o proprietário da coisa. Antes de ser proprietário, tanto o superficiário quanto o proprietário do terreno são possuidores por exercerem algum dos poderes inerentes ao domínio27.

Através desses contratos em que há esse desmembramento possessório, o possuidor indireto transfere a alguém a posse direta da coisa. No entanto, além de transferir a posse direta, o contrato normalmente prevê que sejam transferidos os encargos de manutenção da coisa para o possuidor direto. Assim, o contrato pode estabelecer a transferência de encargos como despesas ordinárias de condomínio edilício, transferência das despesas de luz, água e telefone para o nome do possuidor direito e demais despesas tributárias, tais como o pagamento do Imposto de Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) e outros tributos como o pagamento de taxa de incêndio, entre outros. As regras legais acima de direito da superfície vão nesse sentido de realizar a transferência da despesa de caráter tributário ao superficiário.

Já que os dispositivos tratam do aspecto tributário do direito de superfície, logo os dispositivos atraem para si a disciplina constitucional tributária. Os dispositivos acima devem ser comparados com o estabelecido no artigo 123 do Código Tributário Nacional. Via de regra, o CTN não admite que a transferência de despesas com tributos por meio de contratos particulares possa ser oposta ao fisco para afastar o dever de pagar tributos. O contrato particular poderá até estabelecer a transferência do ônus tributário para o possuidor direto da coisa, retirando o dever de adimplir o tributo por parte do proprietário/possuidor indireto. Porém, tal cláusula não é oponível em relação a Fazenda Pública. Caso haja o inadimplemento da obrigação tributária por parte do possuidor direto, o fisco poderá realizar o lançamento do crédito tributário contra o proprietário da coisa/possuidor indireto e inscrever o crédito em dívida ativa, para fins de cobrança via execução fiscal (Lei 6.830/80). O contrato particular que preveja a transferência da despesa com tributos é inoponível em relação à Fazenda Pública, por força da aplicação do artigo 123 do CTN, assim redigido:

Código Tributário Nacional - Art. 123. Salvo disposições de lei em contrário, as convenções particulares, relativas à responsabilidade pelo pagamento de tributos, não podem ser opostas à Fazenda Pública, para modificar a definição legal do sujeito passivo das obrigações tributárias correspondentes.

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A regra estabelecida em lei não afasta que as partes possam celebrar nos seus contratos particulares essa transferência do encargo tributário para o possuidor direto. Não há vedação ou proibição nesse sentido. O que a lei não admite é que essa transferência de encargo tributário seja oposta ao fisco, como uma forma de afastar a cobrança da exação tributária. Mesmo que o possuidor direto não tenha adimplido a obrigação tributária, gerando a cobrança do tributo por parte do fisco em relação ao possuidor indireto e proprietário da coisa, o proprietário não poderá se opor a cobrança alegando que o ônus tributário deveria ser adimplido pelo possuidor direto ou que o Fisco deveria mover a execução fiscal em face do possuidor direto. O artigo 123 do CTN prevê essa inoponibilidade das convenções particulares perante o fisco, de modo que o proprietário da coisa deverá adimplir o tributo, tendo direito de regresso em face do possuidor direto, responsável pelo inadimplemento da obrigação contratual. É nesse sentido que a regra foi estabelecida pelo CTN.

Excepcionalmente, o Código Tributário admite que o ônus tributário possa ser transferido por convenções particulares para terceiros, quando houver previsão em lei neste sentido. O próprio artigo 123 do CTN estabelece essa exceção, ao iniciar o texto com a redação “Salvo disposições de lei em contrário, (...)”. Ou seja, lei especial pode prever que a transferência do ônus tributário por contrato particular possa ser oposta em face da Fazenda Pública, de modo que o fisco deva cobrar o crédito tributário do possuidor direto da coisa28.

É nesse sentido que o Estatuto da Cidade e o Código Civil parecem caminhar. Aparentemente, as aludidas leis estão fixando o ônus tributário para o superficiário, titular do direito real de superfície. O proprietário do terreno não deve ser chamado a responder pelos tributos ou encargos inadimplidos caso haja transferido esses encargos para o superficiário. Aliás, a própria lei dá a entender que mesmo que não tenha sido estabelecida cláusula contratual no contrato particular celebrado para operar essa transferência do encargo tributário, o ônus tributário recairia sobre o superficiário, já que a própria lei estabelece que o ônus tributário deve ficar sobre a responsabilidade do superficiário. Significa dizer que se o fisco mover a execução fiscal ou cobrar administrativamente o proprietário do solo, o juiz que seja instado a analisar o caso deverá julgar improcedente eventual demanda proposta pelo fisco, já que há lei em sentido diverso em relação a regra geral fixada no CTN.

Os artigos 1.371 do Código Civil e 21, § 3 da Lei 10.257/2000 entrariam na ressalva prevista no artigo 123 do CTN, já que seria permitido que a convenção particular entre o possuidor direto/superficiário e o possuidor indireto/proprietário do solo no sentido de transferir o encargo tributário para o superficiário pudesse ser oposta em relação ao Fisco. Nesse sentido, restaria ao fisco a cobrança da exação tributária apenas em relação ao superficiário, restando impedido de mover a execução fiscal em face do proprietário do solo. Essa regra claramente reduz a garantia da Fazenda Pública, tendo em vista que a Fazenda fica proibida de perseguir seu crédito em face do proprietário do solo.

Embora seja essa a interpretação que se extrai da leitura atenta dos artigos 1.371 do Código Civil e 21, § 3 do Estatuto da Cidade conjugados com o artigo 123 do Código Tributário Nacional, essa não parece ser a orientação correta a ser seguida para os casos de transferência do ônus tributário para o superficiário via contrato de concessão de superfície registrado em cartório. Opina-se pela existência de vício nas regras legais de transferência dos ônus tributários ao superficiário estabelecidas tanto no Código Civil quanto no Estatuto da Cidade. É o que será visto no próximo tópico.

4 - Análise da Inconstitucionalidade dos Artigos 1.371 do Código Civil e 21, § 3 da Lei 10.257/2001.

Como visto acima, os artigos 1.371 do C.Civil de 2002 e artigo 21, § 3 do Estatuto da Cidade permitem a transferência do ônus tributário via contrato particular ou até mesmo sem contrato entre o proprietário do solo e o superficiário. A lei atribui expressamente ao superficiário o dever legal de arcar com os custos tributários relativos ao direito de superfície, tendo o dono da superfície, pela mera leitura dos dispositivos, o ônus de pagar despesas como o IPTU, a taxa de incêndio, a Contribuição de Iluminação Pública (COSIP), entre outras exações. É essa interpretação extraída quando se combina os dois dispositivos acima com o previsto no artigo 123 do CTN.

Essa orientação aplicada para o direito de superfície não diverge daquela orientação que foi estabelecida ao instituto da enfiteuse ou aforamento previsto no Código Civil de 1916. O Código Civil de 1916 também trazia regra expressa no sentido de transferir o ônus do pagamento do tributo ao enfiteuta29. Aplicado o artigo 682 do Código Civil de 1916 ao direito real de enfiteuse, seria possível se chegar a essa mesma interpretação, afastando o dever de pagar o tributo do senhorio direto.

Porém, no tocante ao Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) a questão não era tão simples assim. Isso em razão do IPTU ter regras gerais também expressas no CTN no sentido de incorporar a base de cálculo do IPTU tanto a propriedade quanto o domínio útil do bem imóvel. Vejamos o artigo 32, caput do CTN:

Art. 32. O imposto, de competência dos Municípios, sobre a propriedade predial e territorial urbana tem como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física, como definido na lei civil, localizado na zona urbana do Município.

O dispositivo é um tanto claro no sentido de incluir a propriedade predial, o domínio útil ou a posse do bem imóvel como fato gerador do IPTU. Essa redação é original do CTN, editado em 1966 e é perfeitamente aplicável nos dias de hoje para os casos de enfiteuse, em que há a cessão do domínio útil, como visto. A lei inclui na base de cálculo do IPTU tanto a propriedade quanto o domínio útil, o que permitiria a interpretação de que o senhorio direto nos casos de constituição do direito real de enfiteuse ainda teria a responsabilidade de adimplir os débitos tributários relativos ao IPTU. Inclusive, o artigo 34 do CTN é bastante claro no sentido de atribuir a condição de contribuinte à figura do titular do domínio útil, o que recai sobre o enfiteuta, mas não afasta a figura o proprietário do terreno30. O dispositivo que gerava o eventual afastamento senhorio direto do dever de pagar o IPTU era o artigo 682 do Código Civil de 1916.

Nesse caso, os dispositivos legais acima (art. 32 e 34 do CTN) entrariam em conflito com o já revogado 682 do Código Civil de 1916, mas ainda aplicável as enfiteuses ainda existentes por força da ultratividade do dispositivo. A regra foi reproduzida nas novas leis no tratamento do direito de superfície, com o artigo 1.371 do Código Civil e artigo 21, § 3 do Estatuto da Cidade transferindo o encargo tributário ao superficiário, da mesma maneira que o Código Civil de 1916 transferia o encargo ao enfiteuta. Quando esses dispositivos legais estivessem sendo combinados com a previsão excepcional do artigo 123 do CTN (“Salvo disposição de lei em sentido contrário”), a conclusão seria de que o proprietário do solo ou senhorio direto nos casos de enfiteuse não deveria ser chamado à pagar o tributo. Porém, há uma previsão legal estabelecendo que o titular do domínio útil e o titular da propriedade no CTN podem ser convocados a adimplir o tributo na condição de contribuintes. Afinal de contas, o IPTU poderia ser cobrado do senhorio direto ou do enfiteuta, quando houvesse a constituição do direito de enfiteuse em favor de terceiro ou a cobrança estaria adstrita ao enfiteuta ou superficiário?

Em relação ao instituto da enfiteuse, a regra do artigo 682 do Código Civil de 1916 era aplicável em razão da Constituição Federal de 1967 não exigia qualquer procedimento legislativo especial para a criação de exceções legais ao artigo 123 do CTN. Bastava a edição de uma lei ordinária, aprovada pelo quorum de maioria simples para que fosse criada uma exceção ao artigo 123 do CTN. Como não havia exigência de processo legislativo especial31, as exceções ao artigo 123 do CTN poderiam ser editadas por mera lei ordinária. Assim, a regra do artigo 682 do Código Civil de 1916 foi recepcionada pela Constituição de 1967 com Emenda Constitucional de 1969 e se adaptava perfeitamente à partícula excepcionadora do artigo 123 do CTN. Ademais, a bem ver a situação jurídica, como o CTN é lei posterior em relação ao Código Civil de 1916, o dispositivo que exonerava o senhorio direto do dever de pagar tributos é anterior em relação ao artigo 123 do CTN. Mesmo havendo a regra do CTN que impedia que as convenções particulares pudessem ser opostas ao fisco com a finalidade para afastar a cobrança tributária, a regra antiga do Código Civil de 1916 encaixava-se perfeitamente na exceção do artigo 123 do CTN. Razão pela qual nunca se discutiu muito sobre o tema, aplicando-se o artigo 682 do Código Civil de 1916 para exonerar o senhorio direto de pagar tributos em relação ao terreno cuja superfície tinha sido cedida. Esse era o cenário do instituto da enfiteuse pré constituição de 1988, numa época em que a Constituição não valia32 e que se entendia pela completude da codificação privada33 como forma de resolver todos os conflitos. Essa ideia intrínseca ao período pré-constitucional passou a sofrer transformações durante a vigência da Constituição. O Código Civil de 1916 foi revogado pelo Código de 2002, já perante a Constituição Cidadã de 1988, mas a regra do artigo 678 do Código Civil de 1916 foi replicada para o direito de superfície presente no Código Civil de 2002, sem maiores questionamentos.

Alguns poderiam acreditar que não haveria o referido conflito, já que se aplicaria as regras especiais do Código Civil de 1916 sobre enfiteuse e as regras do Código Civil de 2002 e do Estatuto da Cidade sobre direito de superfície para resolver o suposto conflito. Nesse sentido, embora o Código Civil seja norma geral para as relações particulares, o diploma privado seria lei especial tributária em relação ao Código Tributário Nacional. Em se tratando de regras gerais de cobrança de tributos, o CTN é lei geral sobre o tema, sendo que o Código Civil de 1916, de 2002 e o Estatuto da Cidade seriam normas especiais a respeito do tema. Eventual conflito entre o CTN e as leis privadas e urbanísticas seria resolvido em favor das leis privadas e urbanísticas, restando afastada a regra dos artigos 32 ou 34 do CTN ou sendo realizada uma leitura restritiva, que não alcançasse o senhorio direto e o proprietário do terreno da cobrança base de cálculo do IPTU. A resolução do conflito se daria pelo critério da especialidade de solução de antinomias, pelo qual lei especial prevalece sobre lei geral. Se o CTN prevê que exceções legais podem permitir a transferência do ônus tributário a terceiros através de contrato particular e existe na lei civil e urbanística previsão expressa para admitir essa transferência para o enfiteuta ou superficiário, logo aplicar-se-iam as disposições do Código Civil e do Estatuto da Cidade, sendo essas regras especiais e excepcionais em relação a regra geral.

Adiantamos que fazendo uma leitura atual dos dispositivos supracitados, não é possível concordar com tal ponto de vista, eis que se enxerga a existência de um vício inconstitucionalidade nos artigos 1.371 do C.Civil de 2002 e artigo 21, § 3 do Estatuto da Cidade34. Trata-se de uma inconstitucionalidade formal e que decorre de interpretação dada pelo STF em outros casos envolvendo a imposição de responsabilidade tributária a terceiros por força de lei.

A questão da inconstitucionalidade do art. 1.371 do Código Civil de 2002 e do artigo 21, § 3 do Estatuto da Cidade decorrem do fato de essas regras estabelecerem exceções tributárias, hipóteses que tratam da matéria de responsabilidade tributária. Autorizam a transferência do tributo à pessoa diversa da figura do proprietário, impondo taxativamente a responsabilidade do superficiário, afastando a responsabilidade do proprietário do solo. Como visto acima, o artigo 123 do CTN não proíbe que isso seja feito. Apenas exige que lei estabeleça essa exceção. Se o Código Civil e o Estatuto da Cidade estabelecem essa exceção, como leis ordinárias que são, esse requisito estaria preenchido e a regra legal do art. 123 do CTN seria inaplicável aos casos de enfiteuse e superfície.

No entanto, quando confrontamos tais dispositivos com a Constituição Federal, essa interpretação não é admissível. Primeiro, em razão de se tratar de regra de responsabilidade tributária como referido anteriormente. Se há a transferência do encargo tributário a terceiro, há transferência da responsabilidade tributária. O CTN indica que essa transferência da responsabilidade tributária pode ser realizada através de lei, pois além do artigo 123 do CTN, o artigo 128 do CTN também permite essa transferência da responsabilidade tributária para terceiro que não seja o contribuinte. Ou seja, admite-se que seja transferida a responsabilidade tributária para terceiro que não praticou o fato gerador tributário:

CTN - Art. 128. Sem prejuízo do disposto neste capítulo, a lei pode atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação, excluindo a responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a este em caráter supletivo do cumprimento total ou parcial da referida obrigação.

Perceba que o dispositivo permite a transferência da responsabilidade tributária à terceiro que tenha relação direta com o fato gerador da obrigação tributária. Perceba que esse é o caso do senhorio direto ou do proprietário do solo, eis que os 2 são titulares do bem imóvel, percebendo remuneração para deixar que terceiro explore economicamente o terreno, plantando, construindo ou edificando.

A lei trata da transferência da responsabilidade pelo crédito tributário à terceira pessoa. Ocorre que analisando a Constituição, encontramos a redação do artigo 146 do texto magno, que no seu inciso III, “a” e b”, que estabelece que cabe a lei complementar estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes e também sobre obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários35. A Constituição estabelece uma reserva de lei complementar relativa a essas matérias de direito tributário, uma vez que são matérias que forçosamente podem impor restrições aos direitos dos contribuintes. Daí a Constituição ter-se exigido um quórum legislativo qualificado de aprovação de maioria absoluta para aprovação de projetos relativos a tais temas36.

A Constituição não trata expressamente da matéria relacionada à responsabilidade tributária. Não há qualquer menção expressa de que a matéria responsabilidade tributária seria matéria reservada a lei complementar, na Constituição Federal. Porém, quando a Constituição trata das expressões obrigação e crédito tributário como matérias reservadas à lei complementar, o constituinte automaticamente está tratando de responsabilidade tributária. Como visto, a redação do artigo 128 do CTN fala que a lei pode atribuir responsabilidade pelo crédito tributário a terceiro por força de lei. Se a responsabilidade pelo crédito tributário pode ser transferida à terceiro por força de lei, pela redação do CTN, e o artigo 146, III, “a” e “b” da Constituição Federal exigem lei complementar para tratar de crédito tributário, logo podemos chegar a conclusão de que a lei complementar também deve cuidar dos temas de responsabilidade tributária, pois é tema afeto à ideia de crédito tributário.

O mesmo raciocínio pode ser aplicado também a ideia de obrigação tributária, embora essa ideia exija um esforço hermenêutico maior por parte do intérprete. Segundo a doutrina de direito tributário, há uma relação bastante próxima entre obrigação e crédito tributários37. A obrigação tributária seria a consequência jurídica de um fato gerador. O fato gerador surgiria pela prática no mundo concreto da conduta estabelecida em lei, fixada como hipótese de incidência tributária. Executada a conduta prevista abstratamente na lei como hipótese de incidência tributária, haveria a prática do fato gerador da tributação o que faria surgir a obrigação tributária. Essa obrigação tributária impõe ao sujeito passivo o dever de adimplemento de tal obrigação tributária prevista na lei, que pode consistir num dar, fazer ou não fazer. A lei tributária pode estabelecer naquela lei que preveja a hipótese de incidência, que uma vez praticada aquela conduta, haverá o dever de pagar tributos por parte do sujeito passivo (obrigação de dar/obrigação de pagar). Ocorre que o fisco ainda não sabe o que se deve pagar, nem quem deve pagar. Para tanto, quando o fisco apura a existência do fato gerador e o não pagamento voluntário por parte do sujeito passivo, o fisco precisa constituir o seu crédito para passar a cobrá-lo do sujeito passivo, seja ele contribuinte, seja ele responsável. Daí haver a necessidade do lançamento do crédito tributário, procedimento formal com vistas a apurar a existência do fato gerador da obrigação tributária, determinar a matéria tributária, delimitar o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo para fins de fixar a responsabilidade pelo pagamento da exação38.

Dito dessa forma, uma vez realizado o lançamento, o ato administrativo esclarecerá e tornará públicos os elementos da obrigação tributária e o valor do crédito tributário a ser cobrado, conferindo liquidez a tal crédito. Estabelecer os elementos da obrigação tributária é aplicar concretamente a regra matriz tributária, consistente na demonstração dos elementos material, espacial, temporal (critérios antecedentes relativo à hipótese de incidência), subjetivo e quantitativo (critérios consequentes, relativos a relação jurídica tributária)39. Para não descer a maiores minúcias com relação à regra matriz de incidência, pois desnecessária ao deslinde da questão, investigaremos apenas o critério do consequente subjetivo, relativo aos sujeitos da relação jurídica tributária.

Como visto, o lançamento deve fazer aplicar concretamente a regra matriz tributária, que tem como um de seus elementos o aspecto subjetivo. Significa que um dos elementos da relação tributária e que devem ser determinados pelo lançamento como matéria tributável é o aspecto subjetivo da relação, que consiste na fixação dos sujeitos ativo e passivo da relação jurídico tributária. O sujeito ativo da relação jurídica tributária é sempre o ente federativo que possua competência impositiva ou entidade titular da capacidade tributária ativa. No caso do IPTU outros tributos municipais, o sujeito ativo da relação jurídica tributária é o contribuinte.

Já com relação ao sujeito passivo da relação jurídica tributária, este normalmente é o contribuinte, ou seja, aquele que praticou o fato gerador da obrigação tributária40. Porém, como já visto, a lei pode transferir a responsabilidade pelo pagamento do tributo a um terceiro, que tenha relação pessoal e direta com o fato gerador da obrigação. Assim, o artigo 122, parágrafo único, inciso II do CTN41 estabelece que sujeito passivo da obrigação tributária pode ser o responsável, tendo ele relação direta com o fato gerador.

Perceba o leitor que a Constituição estabelece reserva de lei complementar tanto para a obrigação quanto para o crédito tributário. Se a Constituição exige lei complementar para que se regulamente a obrigação tributária, sendo que as regras legais de obrigação tributária da lei complementar devem recair sobre a fixação dos elementos da obrigação tributária e constatado que o aspecto subjetivo da matriz de incidência tributária é um desses elementos da obrigação, forçoso concluir também que a lei complementar deve recair sobre o elemento subjetivo da obrigação tributária, definindo as hipóteses do contribuinte42 ou do responsável tributário. Mais uma vez, de acordo com a Constituição de 1988, a Carta Magna exige lei complementar para definir a figura do responsável tributário ou estabelecer os casos em que haverá a responsabilidade tributária43.

Se é certo que a Constituição Federal de 1988 exige lei complementar para se estabeleçam as regras de responsabilidade tributária, sendo o próprio CTN recepcionado pelo Supremo Tribunal Federal e pela doutrina como lei complementar44, torna-se importante concluir que as regras de transferência do encargo tributário para terceiro, por também serem regras relativas a imposição de responsabilidade tributária, estas regras também devem ser estabelecidas por lei complementar. É essa a interpretação que se alcança do artigo 146, III, “a” e “b” da Constituição.

Essa constatação põe em dúvida a constitucionalidade dos artigos 1.371 do C.Civil de 2002 e 21, § 3 da Lei 10.257/2001. Se os artigos transferem os ônus tributários apenas ao superficiário, afastando o dever legal do proprietário do solo de arcar com as despesas tributárias, tais dispositivos em confronto com o artigo 146, III, “a” e “b” da Constituição, pois estabelecem regras que fixam responsabilidade tributária na figura do superficiário e excluem o proprietário contribuinte do dever legal de pagar os tributos que eventualmente recaiam sobre a propriedade de terreno imóvel urbano, caso do IPTU, ou de outros tributos derivados do exercício do direito de propriedade, casos da taxa de incêndio ou da Contribuição sobre Iluminação Pública (COSIP).

Perceba que como referido acima, o direito de superfície não se confunde com o extinto direito real de enfiteuse, embora seja um direito real dogmaticamente dele derivado e guarde muitas similitudes. Havia a mesma previsão de transferência do encargo tributário ao enfiteuta, na redação do artigo 678 do Código Civil de 1916. Como visto, as regras que estabelecem a transferência do encargo tributário para a responsabilidade do superficiário são regras que estão previstas em lei ordinária. Se a Constituição Federal exigiu que as questões referentes ao tema de crédito e obrigação tributários sejam tratados por lei complementar e as regras de responsabilidade tributária são regras relativas a obrigação tributária e ao crédito tributário, logo a Constituição exige lei complementar para tratar do tema da transferência da responsabilidade tributária. Nesse sentido, quando o legislador editou leis ordinárias para disciplinar o tema no Código Civil de 2002 e no Estatuto da Cidade, o legislador teria incorrido em uma inconstitucionalidade formal dos dispositivos, tendo em vista a edição de regras de responsabilidade tributária fora das diretrizes estabelecidas na Constituição.

Não se trata apenas de uma interpretação isolada. Em matéria relacionada a aplicação do artigo 146, III, “b” da Constituição Federal de 1988, o STF julgou o caso da prescrição e da decadência tributária, estabelecidas pela lei 8.212/91 no prazo de 10 anos. Tratava-se de lei ordinária que estabeleceu prazo de 10 anos para o lançamento do crédito tributário (decadência) e para a inscrição em dívida ativa com cobrança do crédito pelo executivo fiscal (prescrição) para as contribuições da seguridade social, que segundo o STF possuem natureza tributária. A Suprema Corte ao julgar o Recurso Extraordinário 560.626-1/RS45 reconheceu a inconstitucionalidade da criação de novos prazos de prescrição e de decadência tributárias através de lei ordinária, em contrariedade com os prazos fixados pelo CTN. Dada a relevância da matéria, além do caso ter sido julgado através do regime de Repercussão Geral, o STF decidiu por editar um enunciado vinculante, categorizado no verbete nº 8 da Súmula Vinculante da sua jurisprudência46.

Em outro caso, no julgamento do RE 562.276/PR, também envolvendo a cobrança de contribuição social para custeio da seguridade social, o Supremo Tribunal Federal categoricamente afirmou que a matéria de responsabilidade tributária é matéria reservada à lei complementar. Partindo dessa premissa, o STF anulou cobrança de exação que atribuía responsabilidade solidária entre o sócio não gerente, o sócio gerente e a sociedade empresarial ao argumento de que a lei que previra a solidariedade entre os sócios criva uma regra de responsabilidade tributária por lei ordinária, o segundo a Suprema Corte violaria a Constituição47.

Esses 2 casos coletados na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal demonstram que a responsabilidade tributária é matéria cuja regulamentação depende de lei complementar. Nesse aspecto, o fato dos artigos 1.371 do C.Civil de 2002 e 21, § 3 do Estatuto da Cidade estabelecerem regras semelhantes de transferência do ônus tributário para o superficiário através de regras previstas em leis ordinárias denota a existência de uma possível inconstitucionalidade. Trata-se de um caso de inconstitucionalidade formal, por vício no processo de elaboração da lei de acordo com as regras constitucionais presentes no texto constitucional48. Não se trata de um vício na matéria tratada, tendo em vista que o artigo 123 do CTN admite que lei especial autorize a transferência do encargo tributário por contrato ou convenção entre particulares, de maneira excepcional, sendo tal convenção oponível ao fisco, desde que se adeque as previsões constitucionais e legais tributárias.

Embora não seja uma matéria tão corriqueira nos tribunais, a questão da inconstitucionalidade dos artigos 1.371 do Código Civil e 21, § 3 da Lei 10.257/2001 deixa um vazio no ordenamento. Eventualmente, se o Supremo Tribunal Federal vier a declarar as normas inconstitucionais por violação do artigo 146, III, “a” e “b” da Constituição haverá a necessidade de suprir a lacuna, além de eventualmente modular os efeitos da decisão para afastar os efeitos ex tunc da inconstitucionalidade.

Por isso, dedicaremos o derradeiro tópico desse trabalho para expor uma solução que acreditamos que seja adequada para suprir a inconstitucionalidade formal apontada neste texto.

5 – Uma possível solução hermenêutica para o vício de inconstitucionalidade formal dos artigos 1.371 do Código Civil e art. 21, § 3 do Estatuto da Cidade.

Tendo em vista a possível inconstitucionalidade formal apontada neste texto, cumpre a este trabalho apontar uma solução que seja apta a produzir efeitos jurídicos válidos para os casos em que o proprietário do terreno cede o ônus tributário para o superficiário, via contrato de arrendamento da superfície.

A solução não é muito sofisticada, mas encontra apoio em dispositivos legais do próprio Código Tributário Nacional.

Como visto acima, a lei transfere ao superficiário o dever de pagar os tributos relativos ao terreno. Só que em razão do vício de inconstitucionalidade formal dos dispositivos supracitados, essa regra não pode ser aplicada. O legislador até pode editar uma nova lei nesse sentido, que seja aprovada pelo quórum de maioria absoluta, de modo a reproduzir literalmente o texto hoje existente. Mas, perceba que a nova lei complementar não terá força para afastar o vício da inconstitucionalidade indicado quanto aos casos já existentes.

Uma nova lei complementar editada no mesmo sentido dos dispositivos referidos poderia sanar o vício de inconstitucionalidade para os casos futuros ocorridos após a edição da lei. Nesse caso, a lei complementar se alinharia com a ressalva destaca no início do artigo 123 do CTN e também se alinharia com os artigos 122 e 128 do CTN, além de se conformar ao artigo 146, III, “b” do CTN.

Enquanto a lei complementar não vem, a solução para determinar a quem caberia o ônus tributário do pagamento dos tributos incidentes sobre o imóvel em que há a decomposição do direito de superfície seria atribuir essa responsabilidade tributária aos 2 sujeitos que guardam relação direta com o fato gerador da obrigação tributária. O ônus pelo pagamento dos tributos seria tanto do superficiário quanto do proprietário do terreno. Haveria solidariedade entre o superficiário e o proprietário do terreno por serem ambos considerados proprietários e contribuintes do imposto.

A regra geral da solidariedade é que a mesma não se presume, decorre da lei ou da vontade das partes49. Essa regra é aplicável tanto para as relações regidas pelo direito civil quanto para aquelas regidas pelo direito tributário50. Afinal, não se pode impor a terceiro uma responsabilidade tributária solidária com o contribuinte, sem previsão legal. Haveria violação do princípio da legalidade tributária, que prevê que não haverá tributo ou cobrança tributária sem prévia lei que preveja o tributo ou a possibilidade de cobrança. Essa é uma garantia do sujeito passivo, seja ele contribuinte, seja ele responsável. Também não seria possível indicar que o tributo estaria sendo utilizado com efeito de confisco ou de sanção política, já que não havendo lei elegendo a pessoa como responsável tributária, o agente da Fazenda Pública poderia escolher se cobraria do superficiário, do proprietário do solo ou de terceiro que não tenha qualquer relação jurídica com o fato gerador. A lei é uma garantia de que as regras de cobrança do tributo serão prévias e terão o conhecimento do contribuinte.

Ocorre que este não é o caso na situação de propriedade decomposta em direito de superfície. Nesse sentido, é possível afirmar que tanto o superficiário quanto o proprietário do solo tem interesses em comum no pagamento das exações tributárias relativas ao bem imóvel. Esse interesse em comum decorreria da própria leitura do artigo 34 do CTN, em relação a base de cálculo do IPTU. Se o superficiário ou o proprietário do solo não pagarem os tributos que incidam sobre a propriedade do imóvel (IPTU ou outros eventualmente), o resultado disso será a cobrança judicial da exação pelo fisco, com a consequente perda da propriedade por penhora e expropriação judiciais da coisa para pagamento da dívida. A coisa será alienada judicialmente a terceiro, o montante arrecadado em parte será destacado ao fisco e as despesas com o custo do processo e o restante será devolvido proporcionalmente ao superficiário e ao proprietário do solo. Essa solução não agrada ao proprietário do solo e nem ao superficiário, pois ambos perderam suas respectivas propriedades, por um valor mais baixo do que o praticado no mercado e receberão ainda menos em razão das multas aplicadas, juros de mora, correção monetária, despesas processuais, custos com advogados, recursos, entre outras despesas.

O Código Tributário Nacional estabelece a previsão de solidariedade entre pessoas que tenham interesses comuns na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal. Veja a redação do artigo 124, I do CTN51. Sendo certo que há interesse comum do superficiário e do proprietário do solo na manutenção da coisa, há a possibilidade de indicar que os 2 são interessados no pagamento do tributo, situação que denota a existência de solidariedade tributária nos moldes do CTN. Assim, o fisco poderia cobrar os tributos relativos ao imóvel tanto do superficiário quanto do proprietário do solo. Os dois seriam responsáveis solidariamente pelo pagamento de tais tributos52.

Admitida a solidariedade tributária entre os interessados (superficiário e proprietário do solo), o julgador do caso concreto poderia realizar interpretação conforme a Constituição sobre os artigos 1.371 do Código Civil e 21, § 3 do Estatuto da Cidade, no sentido de admitir que um contrato que preveja a transferência do encargo tributário por contrato, mas que este seja inoponível em relação ao fisco. Ao invés de entender que os dispositivos recaem na exceção trazida pelo artigo 123 do CTN, deve ser compreendido que se aplica a regra do artigo 123 do CTN. Dessa maneira, as convenções particulares entre superficiário e o proprietário do solo não são oponíveis em relação ao fisco. Em razão de ambos os sujeitos que praticam o fato gerador como contribuintes por serem proprietários ou guardam relação pessoal e direta com o fato gerador por exercerem de algum modo a posse sobre a coisa (posse direta para o superficiário e posse indireta para o proprietário do solo), o fisco poderia direcionar a cobrança ou eventual execução tributária em face tanto do proprietário do solo quando do proprietário da superfície (superficiário). Ambos são titulares da coisa, possuindo direito real sobre o bem imóvel, sendo também titulares de poderes inerentes ao proprietário. Haveria solidariedade tributária53, pois além do interesse comum, ambos podem ser considerados proprietários da coisa na condição de contribuintes, como se fossem coproprietários do bem, em condomínio indivisível ou podem ser considerados possuidores, considerado um desmembramento possessório.

Em última análise, a solução também poderia ser extraída da redação do artigo 32 do CTN, considerando ambos possuidores da coisa. O proprietário do solo seria o possuidor indireto, enquanto que o proprietário da superfície seria o possuidor direto, de modo que a cobrança do IPTU, por exemplo, poderia ser manejada tanto em relação ao possuidor direto (superficiário) quanto em relação ao possuidor indireto (proprietário do solo). A cobrança de outros tributos como a taxa de incêndio e a contribuição de iluminação pública recairiam sobre o superficiário em função de ser ele que está usufruindo da coisa, na condição de contribuinte.

A interpretação conforme a Constituição dos artigos 1.371 do Código Civil e 21, § 3 do CTN seria no sentido de permitir que a convenção entre particulares fosse realizada, mas que essa convenção particular não fosse oponível ao fisco. As partes poderiam celebrar a transferência do encargo tributário, mas o fisco poderia cobrar de ambas as partes. Realizado o adimplemento da integral da obrigação tributária por parte do superficiário ou do proprietário do solo, o mesmo teria direito de regressar em relação ao proprietário inadimplente somente em relação a quota parte que não era de sua responsabilidade. Um dos proprietários paga integralmente ao fisco e tem direito de regresso em relação ao outro proprietário, em relação a quota parte não adimplida. Essa seria uma forma de salvar os dispositivos legais, de modo a não interpretá-los como uma forma de transferência de todo ou qualquer encargo tributário ao proprietário superficiário, mas como uma permissão de transferência de encargos tributários por convenções particulares, desde que não oponíveis tais convenções particulares ao fisco. Seria uma forma de compatibilizar os artigos 1.371 do Código Civil e 21, § 3 do Estatuto da Cidade com os preceitos do CTN e com o artigo 146, III, “a” e “b” da Constituição Federal.

Conclusão

O presente trabalho se dedicou a investigar a compatibilidade dos artigos 1.371 do Código Civil e 21, § 3 do Estatuto da Cidade com o Código Tributário Nacional e com a Constituição Federal. Inicialmente, foi realizado um breve estudo sobre a origem do direito de superfície, que veio a substituir o antigo instituto da enfiteuse, extinto pelo Código Civil de 2002, mas ainda vigente para as enfiteuses ainda existentes, em razão da ultratividade promovida pelo artigo 2.038 do Código Civil de 2002. Passou-se a análise do direito de superfície, tendo este previsão inicial no Estatuto da Cidade e, posteriormente, a sua fixação no Código Civil de 2002. Investigaram-se algumas das características do direito de superfície, estabelecendo semelhanças e diferenças entre o direito de superfície presente no Código Civil de 2002 e aquele previsto no Estatuto da Cidade. Sinaliza-se a existência de vício de inconstitucionalidade formal nos dispositivos face a previsão do artigo 146, III, “a e b” da Constituição Federal e a interpretação dada pela doutrina e pelo Supremo Tribunal Federal ao dispositivo, exigindo lei complementar para o estabelecimento de regras sobre responsabilidade tributária. Por fim, propôs-se solução hermenêutica via técnica interpretação conforme a Constituição, buscando dar interpretação que harmonize os dispositivos legais entendidos como inconstitucionais com os preceitos da Constituição e do Código Tributário Nacional.

Trata-se de questão relacionada com o direito constitucional urbanístico, que poderá ser enfrentada futuramente pelo Supremo Tribunal Federal, seja em regime de repercussão geral, seja em regime de controle concentrado de constitucionalidade.

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Sobre o autor
Rodrigo Gil Spargoli

Advogado. Especialista em Direito Civil Constitucional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Especialista em Direito do Estado e Advocacia Pública pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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