Junta Médica ou Odontológica, que a partir de agora denominarei somente Junta, consiste em um mecanismo de regulação de demanda que, aperfeiçoando o previsto na CONSU nº08, atualmente é regrado pela RN nº424 da ANS – Agência Nacional de Saúde Suplementar. Tais mecanismos, é bom que se destaque, são válidos, até mesmo essenciais, visto que o desequilíbrio do sistema não interessa a nenhuma das partes envolvidas.
Mas, preciso lembrar que esse texto não tem intenção de adentrar em assuntos jurídicos de grande complexidade, visto que se destina, primordialmente, aos profissionais da área odontológica, médica e, claro, aos pacientes, consumidores dos serviços das Operadoras de Saúde.
Pois bem. Se eu disse anteriormente que a Junta é um mecanismo de regulação de demanda e tais mecanismos, previstos na legislação, são essenciais, quais os problemas na atual sistemática?
O principal problema diz respeito à forma de escolha do desempatador e à remuneração deste profissional. Isso porque a Operadora de Saúde, em caso “divergência técnico-assistencial” (esse é o texto da norma e não vamos aqui sequer discutir quando há indicação real de realização de Junta e os desvirtuamentos claramente movidos por interesses financeiros dos Planos de Saúde), deve indicar 4 (quatro) opções de profissionais para realizar o desempate ou, ainda, Conselho Profissional com o qual tenha firmado acordo para tal atuação. E, em que pese a intenção dos técnicos que trabalharam na criação da RN nº424 tenha sido a melhor e a solução encontrada tenha, à época, se mostrado satisfatória, com o passar dos anos a experiência prática mostrou que a sistemática implementada fracassou.
Isso porque ao criar as “listas” com opções que podem ser escolhidas pelo cirurgião dentista ou o médico que atende o paciente e, ao mesmo tempo, remunerar aquele que vier a ser escolhido, a Operadora de Saúde passa a ter tais profissionais sobre o seu “cabresto”, afastando a possibilidade de atuação imparcial.
Posso afirmar, sem sobra de dúvida, que é isso que ocorre. Ministro palestras em cursos, Congressos e Simpósios em diversas regiões do País e acompanho relato de dezenas de desempatadores e ex-desempatadores no sentido de terem sofrido “pressão” das empresas para não concordar com o solicitado pelo profissional assistente, por mais que tal profissional tenha atuado de forma adequada, seguindo a melhor técnica e manuais de boas-práticas, como, por exemplo, o Manual editado pelo CBCTBMF.
Como a grande maioria não cede a tais pressões, são extirpados do sistema, sendo colocados na “geladeira”. E não é só isso, há relatos de casos em que o desempatador enfrentou o sistema, acompanhou o entendimento do solicitante e a Operadora “sumiu” com o material, deixando o consumidor no “limbo” para, somente meses depois, informar, de forma mendaz, que Junta não foi concluída.
Entretanto, e nesse ponto reside o grande problema, alguns profissionais, justamente por necessitarem continuar entre aqueles que compõe as opções ofertadas pelas Operadoras de Saúde, ainda que se afastando da melhor técnica e de preceitos éticos, tendem a não contrariar quem os contrata. Esses, infelizmente, cedem às exigências das empresas que os remuneram, passando a fazer parte do “time titular” das operadoras. É bem verdade que cometem diversas infrações éticas e já se ensaiam punições pelos Órgãos de Classe, mas isso será assunto para outro texto.
Convém lembrar que nem mesmo a indicação de Conselhos Profissionais para atuar como desempatador melhora o sistema, visto que o tempo demonstrou que não há empenho para criação de um procedimento justo e, pior ainda, influências políticas podem macular essa sistemática.
Então, o leitor pode perguntar: como é possível identificar laudos de desempatadores que violam a melhor técnica e deveres éticos para atender os interesses das Operadoras? Existem diversos indícios, tais como a conclusão do Desempatador se afastar dos procedimentos adotados por Manuais de Boas-práticas; desempatadores que sempre decidem em favor da Operadora e, pasmem, que se opõe a realização de procedimentos que, quando estão atuando como cirurgiões, solicitam e executam. Não fosse isso, posso lhes garantir, por minha experiência em centenas de ações que visam obrigar planos de saúde a custear procedimentos, que, na esmagadora maioria das vezes, quando há realização de perícia judicial, essa sim com expert isento, a conclusão é no mesmo sentido do requerimento do profissional que atende o paciente e, portanto, contrária ao trabalho do desempatador.
Outra falha gritante no texto da RN nº424 diz respeito à questão das indicações de marcas de OPMEs (Órteses, Próteses e Materiais Especiais). Isso porque o texto, para alguns, é dúbio, deixando margem para interpretações que reputo equivocadas.
Se de um lado é claro que o profissional assistente deve indicar ao menos (3) marcas, existe uma parte do texto que supostamente justificaria a instalação de Junta quando a Operadora não concordar com as marcas indicadas. Em minha opinião, tal equívoco ocorre porque os envolvidos não notam ou não querem notar que a Junta pode ser instaurada em razão de, como já dito “divergência técnico-assistencial” e não pura e simplesmente em razão de motivação financeira, única observada quando a Operadora não concorda com nenhuma das marcas indicadas, pretendendo impor, em meu entendimento de forma indevida, aquelas que aceitam suas condições, limitações, “pacotes”.
Tal situação, entretanto, é nitidamente absurda, visto contraria o verdadeiro intuito de norma, que visa dirimir divergências técnico-assistenciais e não financeiras. Além disso, não se pode obrigar o profissional que atende o paciente, lembra-se, único responsável pelo procedimento, a utilizar materiais que, ainda que homologados, por exemplo, quando se tratarem de placas e parafusos, não conhece detalhes sobre ensaios técnicos, de resistência, composições de ligas utilizadas, mecanismos de produção, condições de higiene, etc.
Dito tudo isso, surgem as perguntas: o que está sendo feito para solucionar tais problemas, melhorando o sistema? Quais as soluções?
É preciso ressaltar que, entre diferentes tipos de profissionais, diversas vozes tem se levantando em busca de alterações, melhorias.
Nesse sentido, tive a oportunidade, em fevereiro de 2024, acompanhando a Diretoria do CBCTBMF - Colégio Brasileiro de Cirurgia e Traumatologia Buco-Maxilo-Facial e membros do CRO-RJ, de participar de reunião com a Diretoria de Normas e Habilitação de Produtos da ANS. Um dos temas tratados foi justamente a necessidade de aprimoramento da regulamentação que trata de Juntas. Restou claro inexistir dúvida que o sistema atual não vem funcionando bem e que precisa de alterações.
Para o caso da pretensão das Operadoras imporem marcas diferente das 3 (três) indicadas, por se tratar de questão interpretativa, entendo que a solução será obtida de forma mais breve. Isso porque, a pedido da Diretoria do CBCTBMF já preparo expediente para instar a ANS a aclarar o tema. Não se olvide, todavia, que o Judiciário tem sido firme e robusta jurisprudência tem sido criada no sentido de prevalecerem as indicações do profissional assistente.
Já no que diz respeito aos demais problemas anteriormente narrados (e existem outros ainda), pela necessidade de alteração regulatória, preceitos legais mais rígidos e toda uma ritualística tem que ser seguidos, o que indica um horizonte um pouco maior. De toda forma, o CBCTBMF já iniciou os estudos para adotar as medidas ao seu alcance a fim de colaborar com o aprimoramento do sistema.
Então, aprimorando a pergunta, quais são as soluções para melhorar questão ligada aos desempatadores? A primeira e mais forte ideia entre as até então debatidas indica a necessidade de formação de listas públicas de profissionais habilitados a funcionar como desempatadores, ainda que por regiões a serem definidas, sendo que as nomeações devam seguir uma ordem sequencial inalterável. Tal medida conferiria autonomia para os profissionais atuarem com a imparcialidade necessária. Há ainda, uma sugestão, que entendo que deva ser melhor debatida, de criação de um fundo remuneratório custeado pelas Operadoras. Essa última proposta, todavia, não pode excluir a necessidade de criação de ordem imutável de nomeações, portanto, não sujeita aos interesses das Empresas interessadas no resultado das Juntas.
Enfim, existe um caminho ainda a ser trilhado, mas creio que não há mais volta e o sistema será, sem dúvida, aperfeiçoado.
Aguardemos cenas dos próximos capítulos.