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É possível reconhecer firma em documento assinado por pessoa já falecida?

21/04/2024 às 13:19
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Cartorários devem agir com cautela ao lidar com pessoas idosas e falecidas, seguindo as normas para evitar fraudes e garantir a segurança dos atos jurídicos.

Recentemente, um caso no Rio de Janeiro provocou diversas reações e, principalmente, espanto. O incidente envolveu a suposta tentativa de um idoso já falecido realizar um saque ou empréstimo em uma agência bancária, acompanhado por alguém que seria sua sobrinha. Esse episódio ocorreu na frente de várias pessoas.

Se você, que está lendo, trabalha ou já trabalhou em cartório, sabe que atos notariais e registrais envolvendo pessoas idosas são comuns nas serventias extrajudiciais.

A cautela na realização de atos notariais e registrais é fundamental para todas as pessoas. Nos últimos anos, observamos a implementação de normas que visam garantir medidas preventivas contra atos de violência patrimonial ou financeira contra idosos, como a Recomendação CNJ 47/2021, que por sua vez reforça a Recomendação CNJ 46/2020.

No Rio de Janeiro, as regras que reforçam as precauções nos atos notariais envolvendo pessoas com mais de 80 anos estão especificadas no artigo 317, caput, e seu parágrafo 1º do Novo Código Notarial, que estabelecem:

"Art. 317. Sendo o estipulante, interveniente, contratante ou contratado, outorgante ou o outorgado ou de alguma outra forma terceiro interessado pessoa física e idosa maior de 80 (oitenta) anos, deverá a realização do ato ser gravada em vídeo, com o registro em imagem da presença de, no mínimo, 2 (dois) integrantes da serventia ou, à critério do tabelião, precedida de videoconferência, com a presença obrigatória do tabelião ou seu substituto legal (art. 20, § 5º, da Lei nº 8.935/1994), realizada com antecedência máxima de 5 (cinco) dias da data que constar da lavratura do ato, a ser arquivada eletronicamente e mencionada no ato, sempre que envolver:

I – disposição de herança;

II – movimentação de contas bancárias;

III – procuração, inclusive para fins previdenciários;

IV – alienação ou oneração de bens ou direitos imobiliários, aeronaves e embarcações;

V – administração de bens ou direitos por terceiros; e

VI – reconhecimento, constituição ou dissolução de união estável ou qualquer outro ato que possa vir a gerar expectativa futura a terceiro de seu reconhecimento ou dissolução.

§ 1º. No caso de utilização de procurações lavradas em outros estados da federação por pessoa que, ao tempo de sua formalização, já fosse MAIOR DE 80 (OITENTA) ANOS, quando da lavratura do ato principal a que se destina, os poderes contemplados na procuração devem ser confirmados por seu outorgante por meio de gravação de vídeo ou videoconferência".

É muito provável que, se o cidadão mencionado no caso (que, segundo informações da internet, tinha 68 anos na época do ocorrido) fosse a um cartório no Estado do Rio de Janeiro, ele poderia lavrar uma procuração ou até mesmo uma escritura sem as precauções mencionadas anteriormente, desde que estivesse consciente e vivo, claro! Isso se deve ao fato de que as regras específicas se aplicam a pessoas com mais de 80 anos. No entanto, essa regra não anula as disposições muito bem estabelecidas pelo Estatuto da Pessoa Idosa (Lei Federal 10.741/2003) nem os atos normativos do CNJ. Vale lembrar que, por lei, é considerada pessoa idosa aquela com idade igual ou superior a 60 anos.

A verdade é que todo cartorário, como eu fui por muitos anos, deve ter em mente que sua atividade não deve prejudicar as pessoas. Por essa razão, deve agir com a cautela esperada de um agente que deve seguir rigorosamente os ditames de sua lei de regência, buscando garantir com sua atuação a 'publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos' (art. 1º da Lei de Notários e Registradores).

É sempre necessário lembrar que, quando o tabelião ou seu preposto lavra um ato notarial envolvendo uma pessoa idosa sem discernimento de seus atos, estará cometendo um crime, conforme estipulado pelo art. 108. do Estatuto da Pessoa Idosa:

"Art. 108. Lavrar ato notarial que envolva pessoa idosa sem discernimento de seus atos, sem a devida representação legal:

Pena – reclusão de 2 (dois) a 4 (quatro) anos".

O caso ilustrado também envolve um fenômeno que aqueles que trabalham ou já trabalharam em cartórios certamente conhecem: atos realizados em nome de pessoas falecidas. É sabido que pessoas falecidas não podem praticar atos, muito menos atos notariais e registrais. No entanto, ainda existe o risco de que, claramente por meio de fraude, ocorra a transferência de bens de pessoas falecidas, envolvendo atos com reconhecimento de firma, procurações ou mesmo escrituras, o que constitui uma fraude evidente. Hoje em dia, com a interligação de sistemas e rotinas informatizadas, essas práticas tendem a se tornar cada vez mais raras. No entanto, como veremos adiante, ainda podem ocorrer.

Por exemplo, atualmente, quando da lavratura de uma procuração ou mesmo da expedição de uma certidão de procuração, os cartórios do Rio de Janeiro realizam uma consulta na base de dados de óbitos mantida pela Corregedoria-Geral de Justiça (CGJ) a fim de registrar expressamente no documento preparado a existência de informações sobre o óbito. A esse respeito, o artigo 343 do Novo Código Notarial estipula:

"Art. 343. No que diz respeito à sobrevida do outorgante, a eficácia das procurações e substabelecimentos será aferida por consulta às informações sobre registros de óbito em nome ou CPF dos outorgantes junto a plataforma própria mantida pela Corregedoria Geral da Justiça".

A consulta mencionada não é realizada por ocasião do reconhecimento de firma (o que, a meu ver, poderia ser implementado, já que a consulta é gratuita e a base de dados pode ser acessada por qualquer pessoa através do link da Corregedoria Geral de Justiça disponível em https://www4.tjrj.jus.br/Portal-Extrajudicial/CNO/).

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É importante destacar que o reconhecimento de firma pode envolver pessoas falecidas, desde que na modalidade por semelhança, e jamais na modalidade por autenticidade, a qual exige o comparecimento e a assinatura diante do tabelião ou seu preposto. Os incisos I e II do § 1º do art. 498. do Novo Código Notarial fluminense esclarecem o que são as duas modalidades de reconhecimento de firma:

"I – por autenticidade, quando o tabelião ou escrevente autorizado certificar que a assinatura constante do documento que lhe foi exibido pertence, de fato, ao signatário, para tanto exigindo:

a) seu comparecimento pessoal, munido de documento de identificação civil físico ou digital, válido, legível e com foto capaz de identificar o seu titular, podendo o tabelião ou escrevente autorizado, a seu prudente critério, exigir documento atualizado;

b) a aposição da assinatura no documento apresentado e no livro de reconhecimento de firma por autenticidade na presença do tabelião ou seu substituto;

c) a manifestação do signatário, na presença do tabelião ou escrevente autorizado, de que a assinatura já lançada no documento é de sua autoria, assinando, em seguida, o livro de reconhecimento de firma por autenticidade; oi

II – por semelhança, quando o reconhecimento for realizado a partir do confronto visual da assinatura lançada no documento apresentado por qualquer pessoa com aquela depositada na ficha padrão junto ao tabelionato, limitando-se a certificar apenas a similitude entre ambas as grafias das assinaturas e não a sua autoria".

Ressalte-se que, inclusive nos reconhecimentos de firma de pessoas já falecidas, caso haja indícios de que o documento possa estar sendo usado para materializar uma fraude, o tabelião ou seu preposto deve, fundamentadamente e por escrito, negar a realização do ato, sob pena de responsabilização, inclusive em ações regressivas.

Nesse sentido são as teses firmadas nos Temas 777 e 940 do Supremo Tribunal Federal, como assentam decisões recentes do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e de São Paulo:

"APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL. ATO PRATICADO NO EXERCÍCIO DE FUNÇÃO NOTARIAL E REGISTRAL. Sentença proferida pelo Juízo a quo condenando a Fazenda Pública estadual ao pagamento de indenização por dano material em decorrência de RECONHECIMENTO DE FIRMA, POR AUTENTICIDADE, DE PESSOA JÁ FALECIDA para alienação de veículo. Prova produzida nos autos que demonstram a irregularidade do ato perpetrado pelo serviço notarial, permitindo assim a alienação do veículo a terceiro, em prejuízo à parte autora. Serviço notarial que possuía outros procedimentos junto à Corregedoria-Geral de Justiça deste Tribunal para apuração de irregularidades similares, sendo posteriormente desativado por ato do Corregedor-Geral de Justiça. Atividade notarial e registral que se submete à fiscalização do Poder Público, cujo ingresso se dá por concurso público, nos termos do art. 236, da Constituição Federal. Tratando-se de serviço público exercido em caráter privado por delegação constitucional, recaindo sobre o Estado o ônus da responsabilização civil pelos danos que decorrem do exercício de função pública. Inteligência do art. 37, § 6º, da Constituição Federal. Matéria objeto do Tema 777 da Repercussão Geral. Configurada a responsabilidade do Estado do Rio de Janeiro. Precedentes do STF e desta Corte. Valor da indenização fixado de forma adequada, observando o preço médio estimado pela tabela FIPE para o mês em que ocorreu alienação fraudulenta. Correção monetária que deve ter como termo inicial a data do evento danoso. Súmula 43 do STJ. Manutenção da sentença. Honorários recursais. RECURSO CONHECIDO e DESPROVIDO".

TJRJ. 0440131-27.2012.8.19.0001. J. em: 06/02/2024.

"Processual civil. Responsabilidade civil. Erro notarial. RECONHECIMENTO DE FIRMA de pessoa não constante do documento, FALECIDA anteriormente à contratação. Inobservância das Normas da Corregedoria Geral de Justiça. Conduta a contribuir, eficazmente, para negócio fraudulento. Responsabilidade objetiva do Estado. Matéria sob vigilância dos Temas 777 e 940 (teses fixadas no C. Supremo Tribunal Federal). Ajuizamento em face de cartorárias. Descabimento. Impositiva e cogente extinção parcial do processo. Responsabilidade civil. Erro notarial. Reconhecimento de firma de pessoa não constante do documento, FALECIDA ANTERIORMENTE À CONTRATAÇÃO. Inobservância das Normas da Corregedoria Geral de Justiça. Conduta a contribuir, eficazmente, para negócio fraudulento. Responsabilidade objetiva do Estado. Matéria sob vigilância dos Temas 777 e 940 (teses fixadas no C. Supremo Tribunal Federal). Danos material e moral ocorrentes. Critério para fixação de valores indenizatórios. Sentença de improcedência reformada. Recurso provido".

TJSP. 1050594-31.2019.8.26.0100. J. em: 19/04/2022.

Sobre o autor
Julio Martins

Advogado (OAB/RJ 197.250) com extensa experiência em Direito Notarial, Registral, Imobiliário, Sucessório e Família. Atualmente é Presidente da COMISSÃO DE PROCEDIMENTOS EXTRAJUDICIAIS da 8ª Subseção da OAB/RJ - OAB São Gonçalo/RJ. É ex-Escrevente e ex-Substituto em Serventias Extrajudiciais no Rio de Janeiro, com mais de 21 anos de experiência profissional (1998-2019) e atualmente Advogado atuante tanto no âmbito Judicial quanto no Extrajudicial especialmente em questões solucionadas na esfera extrajudicial (Divórcio e Partilha, União Estável, Escrituras, Inventário, Usucapião etc), assim como em causas Previdenciárias.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS, Julio. É possível reconhecer firma em documento assinado por pessoa já falecida?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7599, 21 abr. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/109103. Acesso em: 2 mai. 2024.

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