Muito debate, dentro e fora dos tribunais, surgiu após o encerramento do julgamento, pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, do Recurso Extraordinário (RE) nº 1.355.208, de relatoria da Ministra Cármen Lúcia, em regime de repercussão geral (Tema 1.184), na sessão de 19 de dezembro de 2023, às vésperas do recesso forense. Naquele momento, a comunidade jurídica, especialmente juízes, tribunais e procuradorias das fazendas públicas, dispunha apenas da tese1 firmada como fonte de consulta para fundamentar suas decisões e manifestações nas execuções fiscais, sem ainda poder contar com o inteiro teor do acórdão, que somente veio a ser publicado no Diário de Justiça Eletrônico de 2 de abril de 2024.
Levando-se em conta que o art. 927 do Código de Processo Civil, em seu inciso I, preceitua que os juízes e tribunais observarão “os acórdãos” em recurso extraordinário e especial repetitivos, diferentemente do que dispõem os incisos II e IV da mesma norma, que determinam a observação dos “enunciados” das súmulas do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, uma primeira observação a ser feita é que, caso haja alguma dúvida na redação da tese firmada no julgamento em regime de repercussão geral, esta deve ser esclarecida mediante o cotejo entre a tese e o restante do conteúdo do acórdão. Isso ocorre porque é o acórdão, e não a tese per se, que vincula as decisões dos juízes e tribunais nas demais instâncias do Poder Judiciário.
E, feitas essas singelas observações preliminares, pretendo abordar neste artigo, à luz do acórdão do RE nº 1.355.208, apenas um dos muitos temas polêmicos que a análise da tese isolada, antes da publicação do acórdão e, portanto, sem acesso a seu conteúdo, gerou, que é saber se é possível a aplicação do item 2 da tese às execuções fiscais que já estavam em andamento quando do encerramento do julgamento do RE, em 19 de dezembro de 2023, ou se a exigência dessas providências deve se restringir às execuções fiscais ajuizadas após essa data.
Da leitura do corpo do acórdão, constatamos que, findados os debates entre os Ministros na sessão plenária do dia 13 de dezembro de 2023, durante a qual foram feitas algumas colocações acerca do que se poderia exigir das fazendas públicas, para que estas demonstrassem o interesse de agir nas execuções fiscais, à luz do princípio da eficiência, encerrou-se aquela sessão com pedido de vista do Ministro Presidente, após voto da Ministra Relatora, que apresentava a seguinte tese:
“É legítima a extinção da execução fiscal de baixo valor, pela ausência de interesse de agir, tendo em vista o princípio constitucional da eficiência administrativa”.
Ao ser retomado o julgamento na sessão plenária de 19 de dezembro de 2023, a Ministra Relatora acrescentou:
“Senhor Presidente, Vossa Excelência já fez o encaminhamento da tese aos Ministros, a partir do que tínhamos discutido na primeira parte enunciada em meu voto, com os acréscimos devidamente construídos. Leio a possibilidade, a proposta de tese de consenso, considerando a negativa de provimento, a qual se deu por maioria, como acaba de ser proclamado.
A tese seria:
‘1. É legítima a extinção de execução fiscal de baixo valor pela ausência de interesse de agir, tendo em vista o princípio constitucional da eficiência administrativa. 2. O ajuizamento da execução fiscal dependerá da prévia adoção das seguintes providências: a) tentativa de conciliação ou adoção de solução administrativa; e b) protesto do título, salvo por motivo de eficiência administrativa, comprovando-se a inadequação da medida. 3. O trâmite de ações de execução fiscal não impede os entes federados de pedirem a suspensão do processo para a adoção das medidas previstas no item 2, devendo, nesse caso, o juiz ser comunicado do prazo para as providências cabíveis.’”.
E, ao final dessa última sessão plenária, o Ministro André Mendonça solicitou um esclarecimento, que foi respondido pelo Ministro Presidente. Nessa ocasião, afastou-se qualquer dúvida de que o Supremo Tribunal Federal estava decidindo pela incidência do item 2 da tese firmada às execuções fiscais já em andamento, verbis:
“O SENHOR MINISTRO ANDRÉ MENDONÇA – (...) Senhor Presidente, plenamente de acordo, apenas peço um esclarecimento: na leitura do item 3, seria "não impede" ou "impede"?
O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO (PRESIDENTE) - O trâmite de ações de execução fiscal não impede. A proposta da eminente Ministra Cármen é que as que já estão em curso podem sofrer a incidência do item 2.
(...) Agradeço à Ministra Cármen Lúcia a presteza com que acudiu ao pedido desta Presidência para trazer este processo a julgamento. Como todos sabem - e darei os dados em seguida -, a execução fiscal é o maior gargalo da Justiça brasileira. Esta decisão vai permitir que possamos avançar de maneira significativa na redução do estoque de execuções fiscais existentes no país. Ministra Cármen Lúcia, Vossa Excelência prestou ao Tribunal, ao país e a mim mesmo, pessoalmente - por isso lhe sou grato -, um grande serviço.” (destaque nosso).
Nenhuma outra manifestação posterior sobre esse ponto do acórdão foi feita naquela sessão, de modo que ficou evidenciado o que foi decidido pelo plenário do Supremo Tribunal Federal: as execuções fiscais em curso podem sofrer a incidência do item 2 da tese.
Como assim decidiu o Supremo Tribunal Federal no acórdão, digo eu: mostrava-se necessário compatibilizar esse novo entendimento com o disposto no art. 23. da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/1942). Esse artigo determina que a decisão judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou condicionamento de direito, deverá prever um regime de transição quando indispensável, a fim de que o novo dever ou condicionamento seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente, sem prejuízo aos interesses gerais.
E assim o fez a Suprema Corte ao fixar, no item 3 da tese, que
“o trâmite de ações de execução fiscal não impede os entes federados de pedirem a suspensão do processo para a adoção das medidas previstas no item 2, devendo, nesse caso, o juiz ser comunicado do prazo para as providências cabíveis”.
Essa, a meu sentir, é a forma correta de interpretar, à luz do que restou consignado no acórdão do RE nº 1.355.208, o item 3 daquela tese. Trata-se, portanto, de um regime de transição entre o entendimento jurisprudencial anterior — quando não se exigia, como condição da ação de execução fiscal, a tentativa de conciliação, a adoção de solução administrativa e o protesto do título (Certidão de Dívida Ativa – CDA) — e o novo entendimento firmado no julgamento do Tema 1.184 de Repercussão Geral. Esse regime se aplica às execuções fiscais já em andamento que, do contrário, seriam todas extintas sem resolução do mérito, salvo nos casos excepcionais de entes federativos que já adotavam essas duas medidas antes de ajuizar suas execuções fiscais. A extinção se daria por falta das condições da ação, o que, nos termos do art. 485, § 3º, do Código de Processo Civil, pode ser reconhecido em qualquer tempo e grau de jurisdição, enquanto não ocorrer o trânsito em julgado.
O regime de transição consiste em permitir que os entes federados que ainda não adotaram essas duas providências previstas no item 2 da tese — nas execuções fiscais ajuizadas antes do julgamento do Tema 1.184 — requeiram a suspensão da execução fiscal para implementá-las. Além disso, devem comunicar ao Juiz o prazo para cumprimento das medidas, sob pena de extinção do processo por falta das condições da ação.
Para concluir, é importante destacar que, como o acórdão do RE nº 1.355.208 ainda não transitou em julgado no momento em que este artigo foi escrito, o Supremo Tribunal Federal eventualmente poderá explicitar ou alterar algum dos pontos aqui analisados. No entanto, até que isso ocorra, com a recente publicação do acórdão, parece não restar mais dúvidas de que o julgado paradigma seguiu no sentido de que as execuções fiscais já em andamento na data da conclusão do julgamento do Tema 1.184 de Repercussão Geral, em 19 de dezembro de 2023, podem “sofrer a incidência do item 2” da tese firmada. Isso, contudo, não impede que os entes federados requeiram a suspensão das execuções fiscais para cumprir as medidas extraprocessuais nele previstas, dentro de um prazo a ser solicitado ao juízo da execução (item 3), a fim de evitar a extinção da execução fiscal.
Nota de Atualização (do Editor)
Em 29 de abril de 2024, foi publicado o acórdão dos Embargos de Declaração, que foram acolhidos, por unanimidade, sem efeitos infringentes, para esclarecer que a tese se aplica apenas aos casos de execução fiscal de baixo valor, nos exatos limites do Tema 1.184, incidindo também sobre as execuções fiscais suspensas em razão do julgamento desse tema pelo Supremo Tribunal Federal, nos termos do voto da Relatora.
Nota
1 Tese do Tema 1.184 de Repercussão Geral: 1. É legítima a extinção de execução fiscal de baixo valor pela ausência de interesse de agir tendo em vista o princípio constitucional da eficiência administrativa, respeitada a competência constitucional de cada ente federado. 2. O ajuizamento da execução fiscal dependerá da prévia adoção das seguintes providências: a) tentativa de conciliação ou adoção de solução administrativa; e b) protesto do título, salvo por motivo de eficiência administrativa, comprovando-se a inadequação da medida. 3. O trâmite de ações de execução fiscal não impede os entes federados de pedirem a suspensão do processo para a adoção das medidas previstas no item 2, devendo, nesse caso, o juiz ser comunicado do prazo para as providências cabíveis