4. O direito à aposentadoria especial como direito fundamental e a vedação ao retrocesso
O direito ao meio ambiente equilibrado, nele compreendido o do trabalho, é direito fundamental previsto na Constituição Federal (SERAFIN; REUPKE; JACOBSEN, 2021, p. 724), contudo, em certos casos, há uma demanda social por atividades que expõe os trabalhadores à ambientes nocivos. A aposentadoria especial, nos moldes anteriores à EC 103/2019, funcionava como uma espécie de retribuição aos trabalhadores que executam funções necessárias para o bom funcionamento das engrenagens sociais às expensas da própria saúde.
Importante frisar que a aposentadoria especial também determina o efeito compensatório ou indenizatório ao segurado a fim de compensar, de certa forma, o exercício de atividades atípicas, porém imprescindíveis, com sua exposição permanente ao risco, diferenciando-as das demais atividades ordinárias por traduzirem perigo de dano iminente à sua saúde e integridades física e psíquica (AGOSTINHO; SALVADOR; DA SILVA, 2019, p. 9).
Além da função reparatória, Serafin, Reupke e Jacobsen reforçam o caráter protetivo da aposentadoria especial:
Independentemente do conceito ou do doutrinador a que se recorra, é certo que, em todos eles, uma constatação se repete: a aposentadoria especial ostenta um nítido caráter protetivo. Trata-se, a toda evidência, de um benefício previdenciário concedido para preservar a saúde, o bem-estar e a integridade do trabalhador submetido rotineiramente a condições de trabalho especiais.
Portanto, não há dúvidas do necessário afastamento do trabalhador da atividade nociva antes que ele venha a se tornar incapaz ao labor: caráter protetivo da aposentadoria especial.
Dito isso, pergunta-se: haverá eficácia da norma protetiva de preservação da saúde, a qual tem direta relação com a preservação da vida e com o princípio da dignidade humana, fixando-se idade mínima à sua fruição? (SERAFIN; REUPKE; JACOBSEN, 2021, p. 740).
No mesmo sentido, leciona Marcelo Gonçalves da Silva:
A aposentadoria especial pode em uma observação superficial destoar desse contexto, no entanto, sua razão de existir é a mesma que os demais benefícios, e de modo bastante singular também protege a perda da capacidade laboral.
Essa proteção ocorre de modo diferenciado na aposentadoria especial, que se trata de um benefício ao segurado que tiver trabalhado sujeito a condições de trabalho que prejudiquem a saúde ou a integridade física, durante 15 (quinze), 20 (vinte) ou 25 (vinte e cinco) anos, conforme dispuser a lei.
A especialidade que dá nome ao benefício advém de sua característica particular de que, nessa modalidade de benefício, a proteção à capacidade produtiva/de trabalho do segurado ocorre de modo preventivo, ou seja, o trabalhador é retirado do meio laboral nocivo (insalubre/perigoso) a fim de que seja evitado um evento futuro incerto, porém, de alta previsibilidade, ou de certeza relativa (DA SILVA, 2020, p. 48).
Resta claro que o benefício tem como finalidade impedir que o segurado seja acometido de doenças ou outros malefícios irreversíveis, em decorrência da exposição prolongada a determinados agentes que, comprovadamente, levam à debilitação da integridade física ou psíquica do obreiro (AGOSTINHO; SALVADOR; DA SILVA, 2019, p. 14).
Segundo, Theodoro Vicente Agostinho e outros (AGOSTINHO; SALVADOR; DA SILVA, 2019, p. 34-35) os direitos sociais do trabalhador previstos na Constituição Federal são direitos fundamentais e, portanto, estão sujeitos à cláusula de vedação ao retrocesso.
Marcelo Gonçalves da Silva, destaca os sentidos positivo e negativo do princípio da vedação ao retrocesso:
O princípio da proibição do retrocesso social apresenta dois sentidos: um positivo representado pela ideia de progressão constante no nível de efetivação dos direitos sociais, e um negativo, que consiste no zelo por uma produção legislativa que não suprima ou reduza o nível de efetivação ou consistência normativa já alcançada. Assim, a observação do princípio universal de direitos humanos da proibição do retrocesso social protege o titular do direito a uma eventual eliminação de uma conquista jurídico social já inserida no ordenamento jurídico, uma espécie de proteção ao “direito social adquirido” (DA SILVA, 2020, p. 42).
Agostinho, Salvador e da Silva, concluem que as alterações realizadas na aposentadoria especial constituem notório retrocesso, e elas tem por objetivo obter cifras na economia às expensas da saúde do trabalhador. Lembram ainda que as moléstias impostas aos trabalhadores, que deverão laborar sob condições insalubres por longos períodos, serão suportadas pela própria Previdência Social. Corre-se o risco de economizar com os benefícios que deixarão de ser concedidos devido à limitação etária e, em contrapartida, aumentar os gastos com benefícios por incapacidade, seja temporária ou permanente (AGOSTINHO; SALVADOR; DA SILVA, 2019, p. 35).
Marcelo Gonçalves da Silva assevera que a motivação econômica jamais poderia justificar a mitigação do direito do trabalhador à sua integridade física:
Portanto, não há cálculo atuarial que justifique o risco de se reinserir no ordenamento a exigência de idade mínima para a aposentadoria especial, principalmente quando essa idade mínima é apenas 5 anos mais baixa do que a idade para a aposentadoria programada (antiga aposentadoria por idade) que se atinge aos 65 anos (DA SILVA, 2020, p. 51).
Ademais, a saúde atuarial da Previdência poderia ter sido melhorada com a implementação de métodos mais eficazes de fiscalização, voltados para os grandes devedores do sistema previdenciário. Contudo, o legislador optou por suprimir direitos dos segurados e dificultar o acesso aos benefícios, sendo a aposentadoria especial o mais prejudicado pela Emenda Constitucional nº 103/2019 (CUNHA, 2021, p. 57).
Wagner Balera ressalta que após 51 anos sem o requisito de idade mínima para a aposentadoria especial, a EC 103/2019 passa novamente a o exigir sem que houvesse a comprovação da alteração do risco social:
Ocorre que não foi comprovada a alteração do risco social capaz de justificar a nova regra. Para tanto, mister seria a comprovação de que a capacidade do organismo humano de suportar a agressão proveniente do ambiente laboral tivesse sido alterada de modo que ele conseguisse ficar exposto aos mesmos elementos nocivos por mais tempo, até conseguir atingir a idade mínima respectiva. Será que esses trabalhadores não acabarão se aposentando por invalidez, retirando todo o caráter preventivo da aposentadoria especial? (BALERA, 2020, p. 744-745).
Marcelo Gonçalves da Silva, aponta para uma mascarada supressão do benefício de aposentadoria especial. Pois, manter o segurado até os 60 (sessenta) anos de idade laborando em ambiente nocivo, anula o objetivo existencial do benefício, que consiste justamente na retirada antecipada do segurado de uma condição prejudicial à sua integridade física e psíquica, de forma a prevenir o comprometimento da saúde do trabalhador (DA SILVA, 2020, p. 50).
Serafin, Reupke e Jacobsen ao se debruçarem sobre a possibilidade de se desconstituir o direito à aposentadoria especial, apontam que:
A aposentadoria especial, como antes afirmado, ao traçar o limitador de tempo de exposição a agentes nocivos, não o faz livremente, mas levando em conta as condições epidemiológicas de exposição aos agentes agressivos à saúde, buscando a garantia da saúde e da vida do trabalhador – caráter eminentemente protetivo, como bem afirmou o STF na análise do Tema 709: afastamento da atividade nociva antes de seu adoecimento.
Certo é que a ciência, observada a evolução, poderá, a qualquer momento, verificar a possibilidade de maior tempo de exposição a determinado agente (aumento de tempo à aposentação) ou, até, excluir determinado agente nocivo (verificação de que não mais o é), o que justifica a modificação de análise da atividade especial.
Contudo, sem justificação científica e simplesmente baseada em análises econômicas, financeiras ou demográficas, a manutenção do trabalhador em atividade nociva à sua saúde, até o cômputo de idade em tempo superior ao exigido para a aposentação, é violação à proteção de sua saúde e de sua vida.
Em outras palavras, trata-se de desconstituição inconstitucional de um direito (SERAFIN; REUPKE; JACOBSEN, 2021, p. 744, grifo nosso).
A maioria da doutrina especializada aponta no sentido da incompatibilidade das novas regras da aposentadoria especial introduzidas pela Emenda Constitucional nº 103/2019.
5. Conclusão
A aposentadoria especial tem como razão da sua existência a proteção do trabalhador por meio da limitação do período que este pode laborar exposto a situações adversas sem comprometer sua integridade física.
O lapso temporal, definido em lei, necessário para que o segurado possa usufruir do benefício e, consequentemente, afastar-se da atividade danosa à saúde, seja este de quinze, vinte ou vinte e cinco anos, é atribuído com base em critérios técnico-científicos.
O parâmetro deve levar em consideração quanto tempo o organismo humano suporta a exposição a determinado agente nocivo sem comprometer sua integridade, contudo, o Congresso Nacional aprovou as novas regras utilizando justificativas econômicas para tanto.
Com as alterações trazidas pela EC 103/2019, sob o pretexto de corrigir déficit atuarial da Previdência Social, a aposentadoria especial passa a existir apenas sob seu aspecto formal, uma vez que, a imposição de idade mínima, faz com que o trabalhador permaneça na atividade nociva à sua saúde praticamente pelo mesmo tempo que o segurado que atua em atividades que não representam perigo para sua integridade física.
A proteção ao meio ambiente equilibrado, à saúde e os mandamentos constitucionais de proteção ao trabalho são direitos fundamentais e, portanto, estão cobertos pela cláusula de vedação ao retrocesso.
Importante apontar que houve o ajuizamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade em face das alterações promovidas na aposentadoria especial (ADI 6309), contudo até a data de conclusão do presente estudo o Supremo Tribunal Federal ainda não a havia julgado.
Entendemos que dificultar o acesso a aposentadoria especial, ao ponto de praticamente extirpar o benefício do ordenamento pátrio por motivos econômicos, afronta direitos fundamentais e, portanto, a norma padece do vício de inconstitucionalidade.
Referências
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BALERA, Wagner et al. APOSENTADORIA ESPECIAL E A REFORMA DA PREVIDÊNCIA. Revista Jurídica, v. 2, n. 59, p. 725-760, 2020.
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