INTRODUÇÃO
A sigla "RAP" significa "Rhythm And Poetry" (Ritmo e Poesia), refletindo a natureza do gênero musical que combina batidas rítmicas com letras poéticas e muitas vezes contundentes. Essa expressão musical surgiu como uma forma de arte que combina elementos sonoros e líricos para transmitir mensagens, contar histórias e expressar emoções. O rap não apenas se concentra no ritmo e na musicalidade, mas também na habilidade de transmitir mensagens poderosas através das letras, que frequentemente abordam questões sociais, políticas e pessoais.
O rap, nascido nas comunidades afro-americanas de Nova York na década de 1970, não é apenas um gênero musical, mas também uma manifestação cultural profundamente enraizada no movimento negro. Emergindo em meio a condições socioeconômicas precárias e uma sensação de marginalização, o rap tornou-se uma poderosa ferramenta de expressão para as vozes da comunidade negra.
Desde as festas de "block party" no Bronx até os palcos globais, o rap sempre esteve ligado à experiência negra nos Estados Unidos. Suas letras contundentes abordam questões como racismo, brutalidade policial, desigualdade socioeconômica e identidade cultural. Artistas como Public Enemy, NWA e Tupac Shakur se tornaram porta-vozes das lutas e experiências vividas pelas comunidades negras, usando o rap como uma forma de protesto e conscientização – ainda que, por vezes, expressando-se de forma polêmica.
Além de ser um veículo para a expressão política e social, o rap também desempenha um papel crucial na preservação da cultura negra. Suas batidas pulsantes e letras perspicazes celebram a herança africana, destacam a resiliência da comunidade negra e desafiam os estereótipos prejudiciais.
Ao longo das décadas, o rap transcendeu fronteiras e se tornou uma voz global para a resistência e a mudança. Em comunidades ao redor do mundo, o rap continua a ser uma forma de empoderamento, permitindo que indivíduos expressem suas experiências e lutem por justiça e igualdade.
A história do rap está intrinsecamente ligada ao movimento negro, servindo como uma ferramenta poderosa para amplificar as vozes e as lutas das comunidades afrodescendentes, ao mesmo tempo em que celebra sua cultura e herança.
-
DESENVOLVIMENTO
2.1 DIREITO A CULTURA E A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL
A cultura tem uma relação multifacetada com o direito, abrangendo respaldo na Constituição Federal que garante a promoção de manifestações culturais populares. A garantia de exercício aos direitos culturais ganha capítulo próprio constitucional (Capítulo III, Seção II, da Cultura). Vejamos e interpretemos alguns artigos que convém à análise nesse sentido.
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
§1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.
O artigo em questão estabelece o compromisso do Estado em garantir o pleno exercício dos direitos culturais e o acesso às fontes da cultura nacional para todos os cidadãos. Significa que o Estado deve promover e proteger a diversidade cultural do país, bem como garantir que todos tenham a oportunidade de participar e desfrutar das diferentes expressões culturais presentes na sociedade brasileira.
O parágrafo 1º especifica que o Estado deve proteger as manifestações das culturas populares, indígenas, afro-brasileiras e de outros grupos que contribuem para o processo civilizatório nacional. Logo, reconhece – ou deveria reconhecer – a importância de preservar e promover a rica diversidade cultural do Brasil, que inclui as tradições, línguas, rituais, músicas, danças, arte e outras expressões culturais de diferentes grupos étnicos e comunidades.
Essa proteção e promoção das manifestações culturais populares, indígenas e afro-brasileiras são fundamentais para combater a discriminação, preservar a identidade cultural e promover a inclusão social. Além disso, ajuda a fortalecer o sentimento de pertencimento e a valorizar a diversidade como um dos pilares da identidade nacional brasileira.
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
O artigo supracitado define o patrimônio cultural brasileiro e estabelece os diferentes tipos de bens que fazem parte desse patrimônio. O patrimônio cultural não se limita apenas a bens materiais, como objetos e edificações, mas também inclui aspectos imateriais que são fundamentais para a identidade e memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.
Refere-se a todas as manifestações culturais que envolvem a expressão humana, como música, dança, teatro, literatura, pintura, escultura, artesanato, entre outras. Isso engloba os conhecimentos, técnicas e práticas culturais que são transmitidos de geração em geração, incluindo métodos de produção agrícola, artesanato tradicional, culinária regional, medicina popular, entre outros aspectos da vida cotidiana.
Abrange as contribuições das diferentes áreas do conhecimento humano, incluindo descobertas científicas, obras de arte, invenções tecnológicas e outras produções intelectuais que enriquecem a cultura e o patrimônio brasileiro. Destina-se a bens materiais que são considerados patrimônio cultural, como obras de arte, objetos históricos, documentos, construções arquitetônicas, museus, teatros, bibliotecas, entre outros espaços dedicados à cultura.
O RAP É UM PATRIMÔNIO CULTURAL DO BRASIL?
Entende-se que os artigos 215 e 216 da Constituição Federal do Brasil têm uma relação significativa com o rap, especialmente no contexto da valorização e preservação da cultura afro-brasileira e das manifestações culturais populares, contudo, ainda não é considerado como um patrimônio cultural nacional.
Na minha visão, o rap é uma forma de expressão cultural, inclusive, profundamente enraizada nas comunidades afro-brasileiras e em outras comunidades marginalizadas. O artigo 215 reconhece o direito de todos os cidadãos brasileiros ao pleno exercício dos direitos culturais e ao acesso às fontes da cultura nacional. O Estado deve garantir o apoio, incentivo e difusão das manifestações culturais, incluindo o rap, que fazem parte da identidade e memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.
O rap também está relacionado ao artigo 216, que define o patrimônio cultural brasileiro e reconhece os bens de natureza material e imaterial que fazem parte desse patrimônio. O rap é considerado uma forma de expressão (inciso I), um modo de criar, fazer e viver (inciso II) e uma criação artística (inciso III) que contribui para a identidade e memória dos grupos afro-brasileiros e populares. Além disso, o rap está presente em obras, objetos, documentos e espaços destinados às manifestações artístico-culturais (inciso IV).
Ainda que não haja um reconhecimento completo entre os Estados da Federação, alguns (poucos) Estados e o Distrito Federal já disciplinaram à respeito da matéria. São Paulo, Rio de Janeiro, Paraíba, a Batalha da Escadaria no Estado de Pernambuco.
Ano passado a Construção Nacional do Hip-Hop entregou ao Iphan um dossiê que pede o registro do Hip-Hop como patrimônio cultural imaterial do Brasil. Denominado de Inventário Participativo, o documento ouviu cerca de 700 integrantes da cultura espalhados pelos 26 estados da federação e Distrito Federal.
Se o pedido de registro do hip-hop como patrimônio cultural confirmado pelo Iphan e receber o reconhecimento oficial, será um marco significativo na história cultural do Brasil e do hip-hop globalmente. Este reconhecimento destaca o papel importante que o hip-hop desempenha na expressão artística, na identidade cultural e na mobilização social, especialmente nas comunidades urbanas e periféricas.
O Brasil sendo o primeiro país a considerar formalmente o hip-hop como patrimônio imaterial é um testemunho do impacto profundo que esse movimento teve na sociedade brasileira, não apenas como uma forma de arte, mas também como um veículo para a mudança social e a expressão da identidade das comunidades marginalizadas. Isso colocaria o país na vanguarda do reconhecimento e valorização do hip-hop como uma expressão cultural legítima e importante.
Buscar o reconhecimento do hip-hop brasileiro como patrimônio mundial da humanidade pela Unesco demonstra um compromisso em elevar o perfil e a importância do hip-hop além das fronteiras nacionais, destacando sua relevância global e seu potencial para unir comunidades e promover a diversidade cultural. Isso certamente abriria portas para mais investimentos, apoio e celebração da cultura hip-hop e das comunidades que a sustentam.
A (AUSÊNCIA DE) ATUAÇÃO DO ESTADO PELO MOVIMENTO DE RUA
A falta de incentivo do Estado resulta na escassez de recursos financeiros, infraestrutura e oportunidades para artistas de rap. A omissão estatal dificulta a produção, gravação, promoção e distribuição de música rap, bem como a organização de eventos culturais e educacionais relacionados ao gênero.
Os movimentos de rua, especificamente falando das batalhas de rimas, são fundadas e mantidas pelos próprios mc’s, inclusive as viagens de um Estado para o outro, rimando de vagão em vagão na esperança de conseguir o valor da passagem. A parcela massiva são jovens negros, pobres e periféricos – mais recentemente, observando a inclusão da comunidade LGBTQIA+ em edições especiais –. Dos eventos às grandes e pequenas batalhas fora do eixo, o desejo é o mesmo: mudar de vida através da arte.
Diz-se o artigo 216-A do mesmo texto legal:
Art. 216-A. O Sistema Nacional de Cultura, organizado em regime de colaboração, de forma descentralizada e participativa, institui um processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da Federação e a sociedade, tendo por objetivo promover o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos culturais. (grifo nosso)
Embora expresse notória boa vontade do legislador em apoiar o exercício dos diretos culturais e, como explicado em tópico anterior, o movimento de rua enquadra-se neste âmbito mesmo sem o devido reconhecimento, nota-se que a ausência de apoio oficial é real e contribui para a desvalorização do rap como uma forma legítima de expressão cultural – ainda que tenha repercussão midiática. A prova disso é à marginalização e estigmatização dos artistas de rua, bem como à falta de reconhecimento de suas contribuições para a cultura e a identidade nacional.
A realidade é que o movimento de rua além de estimular a cultura nacional, é capaz de retirar os jovens da miséria, da criminalidade local e instigar uma perspectiva de vida e de mudança social. Entretanto, o maior apoio às batalhas, aos organizadores e aos participantes vêm através de patrocínio de empresas, dos retornos das redes sociais e dos mc's de batalha que conseguiram ascender na carreira musical, mas, não do Estado como deveria acontecer.
É válido ressaltar que as batalhas de rua viraram forma de sustento para os que participam. A Batalha da Aldeia (BDA), por exemplo, uma das mais famosas do Brasil, localizada em Barueri-SP, devido a sua visibilidade e patrocínio recebido, consegue pagar cachês, oferecer prêmios e dinheiro para o(s) vencedor(es) da edição. E mais: trazer uma extrema visibilidade para os mc’s, revelando talentos e dando oportunidade aos que não conseguem repercutir em outros Estados pela ausência de apoio.
Vinicius ZN (PE) e Vitu (PE) são grandes exemplos desse contexto. Pernambucanos, rimando em vagões e nos transportes coletivos, conquistaram o Brasil e colocaram Pernambuco no mapa. Viajando por múltiplos Estados, inclusive pela Batalha da Aldeia, chegaram a maior competição do país: O Nacional – em quase 10 anos acompanhando a cena do rap, arrisco dizer que é um dos maiores sonhos de quase todos (senão todos) os mc’s de batalha.
REPRESSÃO POLICIAL
Infelizmente, o que não faltam são relatos sobre policiais – não generalizando, mas destinando àqueles que fazem jus à crítica – que abordam (no sentido mais vexatório e humilhante possível) os mc’s e os ouvintes, atrapalhando e/ou acabando com as edições das batalhas.
Dentre casos de repercussão, em agosto do ano passado, por exemplo, a Batalha da Leste, localizada em Londrina, onde o evento reunia mais de 500 jovens, entre participantes e plateia, sofreram empurrões, ameaças e ofensas pela Polícia Civil e a Rotam. A justificativa dos policiais à organização da batalha foi sob argumento de que a abordarem fazia parte de uma operação motivada por denúncias de tráfico de drogas. Nenhuma droga foi encontrada no local. PASMEM!
Outro exemplo cabível foi a agressão numa batalha do RJ. A 1ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva do Núcleo Cabo Frio, na Região dos Lagos do Rio de Janeiro, iniciou uma investigação para apurar os eventos ocorridos durante uma batalha de rimas no bairro Manoel Corrêa no início de abril de 2022, onde policiais militares supostamente dispararam tiros contra jovens participantes do evento.
Segundo relatos dos organizadores da batalha, os policiais teriam justificado sua intervenção com declarações depreciativas, afirmando que "cultura é só na escola", "rap é coisa de vagabundo" e que "lugar de criança é em casa e não na praça fazendo rap". O promotor de Justiça Vinícius Lameira, responsável pela 1ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva do Núcleo Cabo Frio, expressou sua preocupação com o incidente e ressaltou o compromisso de defender a liberdade de expressão cultural dos jovens.
Fato que a perseguição policial resulta em censura e repressão das vozes dissidentes encontradas no rap. Letras que abordam questões sociais, políticas e raciais de forma franca e direta muitas vezes são consideradas problemáticas pelas autoridades, levando à intimidação de comunidades ligadas ao rap. O medo de retaliação, censura ou prisão leva à autocensura e à restrição da criatividade artística, limitando assim a capacidade do rap de abordar questões sociais e políticas de forma aberta e honesta.
O rap retrata a realidade das comunidades urbanas e aborda questões como brutalidade policial, encarceramento em massa e injustiça racial. É a manifestação musical, poética e lírica que sangra os ouvidos dos que ignoram enxergar realidade social.
CONCLUSÃO
Diante do que foi abordado sobre o rap, direito, cultura, preconceito e afins, não restam dúvidas que o rap transcende os limites da música e se torna um veículo poderoso para expressar as lutas, as aspirações e as identidades das comunidades marginalizadas. É mais do que um gênero musical; é uma forma de resistência, um espaço de empoderamento e uma ferramenta de conscientização social.
A interseção entre o rap e o direito destaca questões importantes relacionadas à liberdade de expressão, à proteção da diversidade cultural e à luta contra o preconceito e a discriminação. O reconhecimento do rap como patrimônio cultural, como está sendo buscado em alguns lugares, é um passo crucial para valorizar e preservar essa forma de arte e para garantir que as vozes das comunidades urbanas e periféricas sejam ouvidas e respeitadas.
No entanto, o rap também enfrenta desafios, como a falta de incentivos estatais, a perseguição policial e a marginalização, que destacam a necessidade contínua de defender os direitos humanos, a justiça social e a igualdade de oportunidades para todos. É essencial trabalhar em prol de uma sociedade mais inclusiva, onde a diversidade cultural seja celebrada e todas as formas de expressões artísticas sejam protegidas e valorizadas.
Em última análise, o rap não é apenas uma música, mas uma voz que ecoa os desafios e as esperanças de comunidades inteiras. É uma lembrança poderosa de que a cultura é um direito fundamental e que a arte tem o poder de transformar, inspirar e unir.