Contraditório e Precedentes: uma análise da aplicação do instituto na tutela de evidência.

Exibindo página 1 de 2
14/05/2024 às 17:33
Leia nesta página:

Resumo: O presente trabalho busca observar, a partir de uma visão constitucionalmente adequada do processo, a relevância do contraditório substancial no sistema de precedentes e a problemática da aplicação deste instituto nos moldes adotados no Código de Processo Civil de 2015. A partir deste enfoque, analisar a intersecção entre o sistema de precedentes e a tutela de evidência especificamente no momento da sua concessão em caráter liminar, tal qual disposto no artigo 9º, parágrafo único, e inciso II e no artigo 311, parágrafo único do CPC e as implicações decorrentes da da ausência da percepção do contraditório em sua perspectiva substancial.

Palavras-chave: Contraditório substancial. Precedentes Judiciais. Tutela provisória. Tutela de evidência concedida em caráter liminar.

Abstract: The present study aims to observe, from a proper constitutional perspective of the procedure, the relevance of the substantial contradictory within the doctrine of precedent as well as this institute’s application issues along the lines of the Civil Procedure Code 2015 (BR). From this standpoint, it also intends to analyze the intersection between the precedent system and the use of the evidence preliminary injunction as prescribed by BR, CPC, art. 9, subparagraph, ind. II and BR, CPC, art. 311, subparagraph and the concerns of the non-existent perception of the contradictory in its substantial perspective.

Keywords: Substantial contradictory. Judicial Precedent. Provisional protection. Guardianship of evidence granted in preliminary order.

INTRODUÇÃO

O microssistema de precedentes adotado no Código de Processo Civil tem por objetivo resolver o problema das demandas repetitivas, além de buscar uma coerência decisória dentro do sistema jurídico brasileiro, para alcance da tão almejada segurança jurídica. A positivação do dever de coerência está presente no artigo 926 e 927 do CPC com a reafirmação da importância dos precedentes por todo o Código.

A inspiração para a positivação do instituto vem do common law diante de um movimento de aproximação desta família jurídica com o civil law. Entretanto, o ponto de interseção entre estes dois modelos jurídicos de tradições distintas pode – e de fato resultou – em dificuldades de compatibilização de técnicas de aplicação do direito1.

Ocorre que a importação do modelo lastreado em inspiração positivista, que se baseia na autoridade institucional dos julgadores para criação dos precedentes e que observa uma estrutura dividida entre a ratio decidendi e obiter dictum, que objetiva realizar uma interpretação restrita da jurisprudência,2culminou em uma aplicação dos precedentes como enunciado geral e abstrato desvinculado dos fatos de que lhes deram origem. O que resulta – em maior ou menor medida – em uma justificativa para o fechamento argumentativo da questão. Tal premissa é problemática na medida em que a apropriada aplicação dos precedentes deve se dar por comparação entre casos.

O Código de Processo Civil consagrou um modelo comparticipativo de processo no qual o contraditório substancial e o dever de diálogo entre as partes norteiam todo desenvolvimento do processo. Esta constitui uma perspectiva constitucionalmente adequada do contraditório que passa a ser compreendido como garantia de efetiva participação nas decisões prolatadas pelo órgão jurisdicional.

Visto desta forma, o contraditório efetivo instaura também um ônus para o juiz de fomento do debate prévio, ainda que de ofício, das questões fundamentais para o deslinde da controvérsia. Assim, o princípio culmina na vedação de decisões surpresa3.

Com objetivo precípuo de observar a repercussão destas questões, será realizada uma análise da hipótese de concessão da tutela de evidência, sem oitiva prévia da parte contrária – nos termos do parágrafo único do artigo 311 –, quando “as alegações de fato puderem ser comprovadas documentalmente e houver tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em súmula vinculante”, conforme inciso II, artigo 311, CPC/2015.

A partir de tais premissas o que se pretende demonstrar é a importância do contraditório para legitimidade e aplicação dos precedentes, além dos riscos de engessamento do direito diante da inadequada observância do dever de diálogo processual.

  1. A nova perspectiva do contraditório no Código de Processo Civil/2015 e suas dimensões.

A evolução no conceito do contraditório se alterou ao longo dos anos. Inicialmente, desde o direito comum, o princípio era entendido como um direito natural que carregava a finalidade de dirimir as desigualdades presentes no processo. Mais tarde, com a legislação prussiana de 1781, o conceito foi restringido assumindo a característica de bilateralidade na audiência: em outras palavras, como direito de dizer e contradizer.

Nova alteração ocorreu após a Ordenança Processual Civil austríaca de 1895, que tornou o papel do julgador mais ativo com a possibilidade de instrução oficiosa da lide para formação do seu convencimento, o que resultou em um papel autoritário. Somente com a posterior constitucionalização das garantias inerentes ao processo que novas perspectivas acerca do contraditório surgiram. 4

Neste novo cenário, os destinatários do provimento jurisdicional passam a participar ativamente para formação do convencimento judicial em simetria com a possibilidade de influência, o que resultou em uma concepção democrática do princípio. Desta forma explícita Aroldo Plínio:

A democracia chegou ao processo por meio do contraditório. O conceito do contraditório, que se limitava ao direito da parte de ser ouvida e ao direito de se defender, cresceu e aprofundou-se, nas últimas décadas do século XX. O princípio do contraditório erigiu-se como uma garantia fundamental, hoje acolhida no plano constitucional, dos destinatários da decisão de participar do processo, em simétrica igualdade, na etapa preparatória do ato imperativo do Estado – sentença –, para tentar influir em sua formação. (...) Contraditório é a oportunidade de participação paritária, é garantia de simétrica igualdade de participação dos destinatários do provimento na fase procedimental de sua preparação.5

Tal conceito permite uma postura de comparticipação entre os sujeitos processuais. Daí se consagra o princípio da cooperação como norma fundamental e fala-se em modelo cooperativo de processo. A definição surge como desdobramento do atual conceito de contraditório e da boa-fé objetiva. 6

Esta nova dimensão substancial do contraditório resulta em direito e deveres para os participantes do processo. Nesta toada, o juiz possui o dever de informação acerca de todos os atos processuais, questões de fato e de direito que são fundamentais para a resolução da lide, além do compromisso de levar em consideração todos os argumentos alegados pelas partes e fundamentar de forma adequada a sua decisão diante destes.

Para as partes há o direito de manifestação de modo que nenhuma decisão será proferida sem que haja prévio debate.7 De forma pormenorizada, pode-se dizer:

Em relação às partes, o contraditório aglomera um feixe de direitos dele decorrentes, entre eles: (a) direito de uma cientificação regular durante todo o procedimento, ou seja, uma citação adequada do ato introdutório da demanda e a intimação de cada evento processual posterior que lhe permita o exercício efetivo da defesa no curso do procedimento; (b) o direito à prova, possibilitando-lhe sua obtenção toda vez que esta for relevante; (c) em decorrência do anterior, o direito de assistir pessoalmente a assunção da prova e de se contrapor às alegações de fato ou às atividade probatórias da parte contrária ou, mesmo, oficiosas do julgador; (d) o direito de ser ouvido e julgado por um juiz imune à ciência privada (private informazioni), que decida a causa unicamente com base em provas e elementos adquiridos no debate contraditório; (e) direito a uma decisão fundamentada, em que se aprecie e solucione racionalmente todas as questões e defesas adequada e tempestivamente propostas pelas partes (fundamentação racional das decisões).8

Pontua-se que a doutrina considera adequado o contraditório diferido em casos que, em razão de sua urgência, a abertura de prazo possa levar ao perecimento do direito com a consequente ineficácia do provimento jurisdicional, para além destes casos, quaisquer exceções ao contraditório prévio podem sofrer a sanção jurídica da nulidade. 9

Vale ressaltar que nesta concepção do contraditório o juiz não atua como contraditor, e sim como terceiro e autor do provimento jurisdicional. Por tais razões, deve participar diligentemente de modo a garantir a consagração prática do princípio e submetendo às partes o diálogo ainda que em matérias de conhecimento ex officio. 10

Com isso, tem-se outro desdobramento do princípio do contraditório que é a vedação de decisões surpresa. O magistrado não pode decidir com base em fundamento em que não se tenha oportunizado à parte a manifestação, ainda que se trate de matéria cognoscível de ofício. Isso porque quem suportará o ônus da decisão judicial não pode ser surpreendido por um provimento lastreado em razões que desconhece.

Neste sentido, qualquer argumento jurídico, legislação ou precedente judicial utilizado como fundamento para decisão deve ser objeto do contraditório. Por este ângulo temos:

A colocação de qualquer entendimento jurídico (v.g., aplicação de súmula da jurisprudência dominante dos Tribunais Superiores ou alegação de prescrição) como fundamento da sentença, mesmo que aplicada ex officio pelo juiz, sem anterior debate com as partes, poderá gerar o aludido fenômeno da surpresa. Desse modo, o contraditório constitui uma verdadeira garantia de não surpresa (...). 11

A submissão ao contraditório entre as partes também em matéria de conhecimento oficioso permite um novo olhar sobre as decisões judiciais. Estas não são mais resultado de uma decisão solipsista e autoritária, e sim resultado do debate entre as partes levando em consideração os aspectos pertinentes trazidos para construção da decisão final.

É importante destacar que a garantia da não surpresa é observada mesmo na tradição jurídica do common law e, conforme disserta Andrews, diante da responsabilidade de fundamentação adequada das decisões os Tribunais devem, de forma prévia, oportunizar o debate acerca da questão de fato ou de direito que não foram arguidas durante o processo.12

Neste sentido, se faz necessária uma análise acerca da aproximação das famílias jurídicas e da importação do sistema de precedentes para nossa legislação.

  1. Aproximações e diferenças entre as tradições jurídicas do common law e civil law.

Grosso modo, pode-se definir a separação entre as famílias jurídicas sob a alegação de que nos países de common law há uma valorização maior do direito jurisprudencial ou costumeiro e, nos países de civil law ocorre a predileção pelo direito codificado. Entretanto, há cada dia maior dificuldade em se manter essa divisão estanque. Isso porque, vê-se o que alguns doutrinadores denominam de convergência13 entre as tradições jurídicas.

Sabe-se que este não é o único aspecto que se considera ao fazer uma diferenciação profunda entre as duas famílias jurídicas, mas em termos de convergência é possível observar a valorização da codificação no common law e a maior valorização do direito jurisprudencial nos países de civil law, de modo que se torna difícil a percepção destes modelos em sua forma pura.14 Neste sentido preleciona Barbosa Moreira:

Seja como for, a grande divisão é mesmo a que habitualmente contrapõe civil law e common law. Semelhante divisão, vale ressaltar, não há de ser percebida em termos estáticos. Tem o sabor do óbvio o asserto de que os ordenamentos jurídicos se acham em constante evolução – nos dias que correm, provavelmente, com maior rapidez que noutros tempos.15

  1. Modelo do sistema de precedentes brasileiro

O Brasil, que possui por base a tradição jurídica de civil law, aumentou a valorização do direito jurisprudencial. A busca por uma coerência e uma padronização decisória levaram à importação do instituto dos precedentes. É importante ressaltar que apesar da previsão do instituto no Código de Processo Civil de 2015, já haviam figuras jurídicas que se assemelham em características como a súmula vinculante – positivada com a emenda constitucional nº 45 de 2006 – e o uso do direito jurisprudencial – aqui entendido como conjunto de decisões sobre o mesmo tema.

Apesar da existência anterior de institutos semelhantes, mas que conceitualmente são distintos, há uma grande dificuldade doutrinária de criação de uma teoria dos precedentes judiciais brasileira. A partir disso, é evidente os problemas de manejo dos precedentes na prática judicial.

A dificuldade ocorre em razão do raciocínio jurídico típico dos países que carregam a tradição de civil law ser direcionado à especificidade dos enunciados legislativos com objetivo de restringir a hipótese de aplicação. Para além disto, a ideia é dirimir os “equívocos interpretativos”16 e centrar a interpretação do julgador dentro dos limites permitidos pela lei. Entretanto, não é este o pensamento que norteia a razão jurídica do common law, e aplicação de raciocínio diverso no instituto dos precedentes que é fruto de uma importação que pode trazer distorções.

Neste sentido se destaca:

No Direito brasileiro, por sua vez, é possível perceber uma colossal escassez técnico-teórica no manuseio dos precedentes, talvez em virtude da herança histórica que ainda situa o Brasil, de modo estanque, entre os países da tradição de civil law, acreditando-se, portanto, no protagonismo do legislador. As técnicas de aplicação de precedentes foram historicamente deixadas de lado.17

As normas jurídicas no civil law, normalmente, se aplicam por subsunção, ou seja, o caso concreto se enquadra na hipótese legal in abstracto. Ocorre a adequação da conduta na norma prescrita em lei. Nos países de common law o raciocínio jurídico ocorre de forma diversa. Em face da valorização do direito jurisprudencial, a interpretação dos precedentes se dá por comparação entre casos.

3.1 Definição do conceito de precedente

O que se entende por precedente é a decisão judicial que possui aptidão para servir como base jurídica para um caso futuro. Didier ao definir o conceito:

Em sentido lato, o precedente é a decisão judicial tomada à luz de um caso concreto, cujo elemento normativo pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos.18

Desta definição é possível extrair a necessidade de observância dos fatos materiais que deram origem à decisão modelo. Para Nunes e Horta,19 os fatos materiais são essencialmente relevantes, pois são estes que atribuem “força normativa” ao sistema baseado no Direito Jurisprudencial.

Na prática isso significa que a postura do julgador diante do caso concreto é buscar os fatos materiais essenciais e suficientes do caso sub judice, além das balizas orientadoras que nortearam o deslinde da controvérsia, e a partir disto, promover a comparação entre estes e o caso definido como precedente, sempre observando o princípio da igualdade substancial. 20

A diferença entre as duas famílias jurídicas neste aspecto está em que o raciocínio jurídico dos ordenamentos jurídicos de tradição apegado à técnica legislativa realizam a operação interpretativa observando o enunciado geral e abstrato – lei – e sua adequação ao caso concreto, enquanto na tradição filiada à valorização do direito jurisprudencial ocorre a comparação entre os elementos concretos que deram origem a decisão apta a se tornar vinculante – precedente – e os do caso presente. Portanto, além da observância da norma de caráter geral – denominada por MacCormick como universalizável21 – é imperiosa a realização da comparação entre os fatos dos dois casos.

3.2 Ratio decidendi e obiter dictum: consequência da separação estanque.

Esta norma de caráter geral é denominada ratio decidendi e pode ser definida como os elementos determinantes de uma decisão judicial. Grosso modo, são as razões de decidir que, tendo em vista o caso concreto, foram fundamentais para o resultado do julgamento, esta portanto, seria a parte vinculante da decisão jurídica.

A teoria inglesa dos precedentes judiciais, de matriz fortemente positivista, elaborou uma distinção22 entre ratio decidendi e o que denominaram obiter dictum. Este é a parte da decisão que não é dotada de eficácia vinculante e pode ser compreendida como a parte secundária da motivação judicial, servindo apenas como base jurídica para as razões fundamentais. O objetivo desta divisão é a limitação do poder de criação dos juízes, o que leva a uma interpretação restritiva da decisão, e a vinculação da decisão vem da autoridade da corte que a proferiu. Cumpre ressaltar que mesmo nesta teoria, há possibilidade de revogação dos precedentes que não são mais "racionalmente justificáveis”23.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Bustamante24 considera que essa divisão estanque não se sustenta na medida em que o fundamento para utilização dos precedentes não se trata apenas de razões institucionais, e sim de razões da própria racionalidade do Direito. Desta forma coloca:

As pressuposições de que há sempre uma ratio decidendi e de que esta inevitavelmente tem uma autoridade absoluta são ficções que, apesar de ainda serem relativamente frequentes no discurso de certos teóricos positivistas, não encontram nem confirmação na prática jurídica – seja do direito inglês ou das cortes de civil law –, nem fundamento filosófico – na medida em que se passa a exigir do Direito não apenas a característica da vigência fática, mas também da aceitabilidade racional.25

Além disso, afirma que uma decisão pode se tornar vinculante em toda sua fundamentação, sendo possível a extração de mais de uma razão de decidir em uma mesma decisão judicial. Assim preleciona:

Se definirmos a ratio decidendi como uma norma universalizável que pode ser extraída de um precedente judicial, percebemos que na maioria dos casos se pode encontrar não apenas uma, mas diferentes rationes decidendi, que podem ter graus diferentes de vinculatividade em casos futuros. Ao invés de tentar encontrar uma única ratio decidendi em cada caso, devemos admitir que há sempre um grau de indeterminação no Direito Jurisprudencial (case law) e que nós podemos extrair diferentes rationes decidendi de um mesmo caso. Esse é o ponto de partida para uma teoria dos precedentes dotada de maior fecundidade.26

A partir desta premissa, Bustamante considera que a determinação da força normativa de cada uma das rationes decidendi são resultado de um processo hermenêutico que leva em consideração fatores “institucionais e extrainstitucionais”27. A extração da ratio decidendi neste contexto vai além da busca por uma norma jurídica “é também um processo de “recontextualização” dessa norma dentro de um novo contexto fático, jurídico e argumentativo”28.

  1. Importância do contraditório para aplicação dos precedentes

Ao considerar a importante recolocação da ratio decidendi em seu contexto de aplicação por meio de um processo de comparação, é fundamental perceber que há uma abertura interpretativa do precedente. Esta percepção se torna evidente quando se percebe que a analogia entre os dois casos ocorre no momento da aplicação do precedente e não de forma presumida anteriormente. Ao versar sobre o tema Taruffo coloca:

O precedente fornece uma regra (universalizável, como já mencionado), que pode ser aplicada como critério de decisão para o próximo caso concreto em função da identidade ou – como ocorre normalmente – da analogia entre os fatos do primeiro caso e os fatos do segundo caso. Naturalmente, a analogia dos dois casos concretos não é dada in re ipsa e será afirmada ou refutada pelo juiz do caso posterior, dependendo se ele considerar prevalecentes os elementos de identidade ou elementos de diferença entre os dois casos. É, portanto, o juiz do caso posterior que determina se há ou não o precedente e, então, – por assim dizer – “cria” o precedente.29

Ainda sobre o tema, Viana e Nunes30 consideram que há um paradoxo no sistema de precedentes obrigatórios. Isso porque a ratio decidendi estaria em constante abertura interpretativa para os juízes das cortes inferiores diante do argumento que o juiz do caso posterior gera o precedente. Argumentam ainda que a longa duração dos precedentes nos países de common law está associada à não extração a priori da ratio decidendi, o que determina que os julgadores assumam um comportamento argumentativo diante do caso paradigma.

Pode-se dizer que os precedentes não trazem uma norma geral acompanhada de um fechamento interpretativo da controvérsia, e sim, pontos de partida interpretativos que ficam no horizonte de sentido do julgador ao analisar o caso sub judice31. Desta forma, o texto da decisão judicial precisa ser interpretado – de modo a extrair a ratio decidendi – e a partir de então se inicia a etapa de comparação entre os casos.

Conforme se vê no sistema jurídico do common law, os juízes proferem uma decisão com a finalidade de resolver a controvérsia jurídica colocada em análise, pois esta é a função jurisdicional atribuída. Os precedentes só ganham este status no momento da sua aplicação, e por esta razão a interpretação jurídica é tão relevante. Sobre o tema:

Aliás, no common law casos não são julgados para formar precedentes. Casos são julgados para que se resolva o litígio e, no futuro, as “razões de decidir” ali expendidas podem servir para casos futuros.32

O que se pode depreender é que o magistrado se encontra diante de um caso concreto e para fornecer uma solução jurídica que observe o princípio da igualdade substancial e o dever de integridade e coerência decisória, deve levar em consideração os casos já decididos que guardam similaridade fática e jurídica e este processo se realiza por meio da comparação, com “uma demonstração discursiva da identidade dos casos”33.

Neste momento processual de comparação, é importante que os litigantes tenham a possibilidade de argumentação aumentada com objetivo de refinar a aplicação do precedente, fomentando uma aplicação dinâmica, com a possibilidade de influência na decisão do magistrado sobre o uso do precedente ou seu afastamento por distinção entre questões de fato e de direito.

Esse modelo de aplicação, associado com as técnicas que trazem dinâmica ao sistema de precedentes, são essenciais para permitir a oxigenação das decisões judiciais e impede o esgotamento interpretativo da questão.

A partir da consagração do modelo comparticipativo do processo, desponta o dever das partes dialogarem sobre a aplicabilidade do precedente, do mesmo modo que a postura do magistrado deve observar os aspectos relevantes e suficientes da questão para solucionar o litígio.34

Ao versar sobre os precedentes, o artigo 926 do CPC consagra o dever de coerência e integridade. A coerência pode ser compreendida aqui como a adequação das circunstâncias fáticas à hipótese normativa, de forma a permitir a aplicação dos mesmos padrões para os casos idênticos. Já a integridade é definida como o dever do magistrado de construir sua decisão levando em conta o passado jurisprudencial construído sobre o tema. O trabalho interpretativo neste caso ocorre “de forma integrada ao conjunto do Direito”35.

É necessário ponderar que neste artigo, que considera a edição de súmulas, que revelem o caráter da jurisprudência dominante, é possível perceber a importância que o CPC dá aos fatos que nortearam a orientação jurídica. A relevância dos fatos, como anteriormente mencionado, tem ligação direta com a própria força normativa do sistema jurídico e, para além disso, fornece uma individualização da norma extraída do precedente judicial de modo a não permitir que a sua aplicação se estenda a casos que possuam uma base fática diversa.

O objetivo precípuo do sistema de precedentes instaurado é buscar uma coerência decisória, bem como fornecer um aporte para o modelo cooperativo de processo que, em conjunto com a integridade e coerência objetivam concretizar o princípio da segurança jurídica. Isso porque a exigência de realização deste princípio necessita de um sistema jurídico que seja capaz de fornecer o mínimo de previsibilidade decisória para que os litigantes não sejam surpreendidos com decisões fruto de um convencimento solipsista do julgador.

Ainda nestes termos, esses deveres – integridade e coerência – são potencializados pela garantia da não surpresa, pois ao garantir que o julgador não decida com base em fundamento que não se tenha oportunizado o diálogo processual36, conforme dicção do artigo 10 do CPC, ampliam o diálogo processual acerca dos fundamentos da decisão. Streck37 enuncia que mesmo nas decisões que versam sobre tutela antecipada e cautelar deve-se observar o dever de coerência e integridade.

A partir da perspectiva constitucional e da doutrina mais adequada que coloca o processo como procedimento realizado com contraditório – aqui entendido na concepção substancial que considera os deveres e direitos dos participantes – é possível perceber que o sistema de precedentes requer uma importante dimensão discursiva38. Tal questão é tão elementar que atinge a própria legitimidade e autoridade vinculante do precedente.

Quando um órgão julgador decide sem considerar o “estado da arte” das decisões judiciais sobre o tema no common law, considera-se que proferiu uma decisão por falta de cuidado – per incuriam – e por isso carente de eficácia vinculante39. Ao versar sobre o tema, Nunes e Lacerda consideram que a decisão surpresa, do mesmo modo, atinge a força do precedente:

A autoridade do precedente também pode ser restringida caso o juiz inove em sua decisão trazendo argumentos que não foram defendidos pelas partes, não submetidos, portanto, ao contraditório. Esse traço revela uma ativa participação das partes inclusive na produção do precedente, sendo que a efetiva discussão das teses jurídicas é elemento determinante para revestir o julgado de autoridade vinculante.40

Sendo assim, a dimensão discursiva do contraditório está presente em todo sistema de precedentes, condicionando sua formação e aplicação dentro de uma concepção constitucional e democrática do processo.

  1. Problemas de aplicação: o paradigma da subsunção e o risco de hiperintegração do Direito.

Em que pesem todos os argumentos trazidos à baila acerca da melhor leitura da teoria dos precedentes judiciais, o que se percebe é que muitas vezes a prática de aplicação dos precedentes judiciais caminha em sentido diverso. É comum a utilização de decisões dos Tribunais Superiores como “ponto de chegada” interpretativo, o que culmina em uma postura que pode gerar o engessamento do direito. Sobre o tema:

Fenômeno cada vez mais corrente é o uso de ementas e enunciados de súmula completamente dissociados do caso concreto que lhes deu fundamento, como se fossem normas gerais e abstratas que se desligariam, como a lei, de seus fundamentos originais (quando, ao contrário, os julgados precisam ser aplicados em consonância com os limites argumentativos do caso analisado).41

Conforme salientado, na diferenciação das famílias jurídicas, isso ocorre em razão do modo de raciocínio jurídico típico dos países de civil law. Acredita-se no paradigma da subsunção, no qual há o simples enquadramento de uma hipótese fática a uma norma geral e abstrata, que nessa tradição se traduz pela lei.

Há autores que já discorrem sobre a impossibilidade da lei prever todas as situações de sua aplicação42, assim consideram que não se deve achar que o precedente possui um fechamento interpretativo da questão colocada sob julgamento.

Conforme preleciona Taruffo43, há uma grande diferença entre jurisprudência e precedentes, que é tanto quantitativa – pois os precedentes são fruto de uma decisão individual enquanto a jurisprudência de um conjunto de decisões sobre o mesmo tema – quanto qualitativa – diante da ausência de consideração dos fatos que deram origem à decisão na jurisprudência. E apesar de tratar do processo civil italiano, é possível fazer um paralelo diante da presença da mesma tradição jurídica. O autor consigna que:

(...) visualiza-se uma primeira diferença muito relevante: em regra, os textos que constituem a nossa jurisprudência não incluem os fatos que foram objeto da decisão, de modo que a aplicação da regra formulada em uma decisão anterior não é baseada na analogia dos fatos, mas na subsunção da fattispecie sucessiva em uma regra geral. Este modus operandi encontra-se tão profundamente enraizado em nossos hábitos que não se dá atenção aos fatos nem mesmo quando o inteiro texto da sentença se encontra disponível e não só a ementa.44

O raciocínio dos precedentes não pode vir dissociado das suas técnicas de superação e distinção que conferem dinâmica ao sistema e impedem a formulação de decisões injustas. O magistrado diante do caso, após a realização da comparação, pode seguir o precedente e aplicar o resultado jurídico da decisão modelo – precedente – ou manejar as técnicas denominadas overruling ou distinguish. O primeiro – overruling – consiste na superação do entendimento anteriormente firmado em decisão precedente em razão da mudança nas condições sociais da atualidade, enquanto o segundo – distinguish – significa a realização de uma distinção entre o caso em análise e o precedente levando a sua não aplicação.

Os juristas do civil law ainda não possuem a proficiência para manejo destas técnicas que são essenciais para o sistema de precedentes. O precedente não anuncia um fechamento interpretativo da controvérsia. Sua aplicação deve ocorrer de forma discursiva e com o manejo das “distinções, ampliações e reduções”45 para que o seu refinamento ocorra de forma adequada.

Para se conferir dinâmica e integridade ao sistema jurídico é necessário que as decisões proferidas observem o histórico decisório resultante de questões que versem sobre o mesmo tema. Dworkin compara esse trabalho dos juristas a um “romance em cadeia” no qual cada autor realiza sua contribuição e permite uma abertura para o próximo capítulo46 com a possibilidade de rupturas e distinções de acordo com a necessidade do caso concreto.

Na prática o que se percebe é o que Bahia e Nunes47 denominam “marco zero” interpretativo, no qual cada julgador decide sem observar o passado decisório da questão o que culmina em um desrespeito ao ideal de integridade que se busca. Consignam ainda que a referência às teses dos julgamentos anteriores, sem uma postura interpretativa, não é suficiente para garantir a integridade.

Ocorre que os juristas na tradição de civil law, especificamente no caso brasileiro, procedem à aplicação dos precedentes como teses jurídicas dotadas de um conteúdo abstrato que se desprendem dos fatos que deram origem à decisão. Esta situação ocorre especialmente no caso dos enunciados de súmulas e julgamentos repetitivos que são colocados como se fossem lei com a diferença de estarem carregados de um “esgotamento interpretativo”48.

Desta postura é possível perceber o risco de hiperintegração do direito. Este fenômeno ocorre quando se concede tratamento igual para casos que são essencialmente diferentes, seja em seu núcleo fundamental ou fatos materiais que lhes deram origem, são equiparados. Quando se aumenta o grau de abstração da norma extraída do precedente judicial – ratio decidendi – ocorre a aplicação da mesma consequência jurídica para casos diferentes49.

O resultado disto é uma simplificação do Direito que resulta em uma aplicação automática dos precedentes50 observando apenas ementas e enunciados de súmulas vinculantes prolatadas pelo tribunal.

As razões por trás desta postura dos julgadores – para além daquelas já explicitadas – é a busca por eficiência quantitativa nas quais os números de decisões proferidas são sinônimo de qualidade. Ao versar sobre a questão da litigiosidade repetitiva Nunes e Lacerda apontam:

Pode-se notar a intenção de estender o âmbito de aplicabilidade das decisões judicias, fazendo com que o Judiciário no menor número de vezes possível tenha que se aprofundar na análise de questões similares, tornando-se mais eficiente quantitativamente através do estabelecimento de padrões a serem seguidos nos casos idênticos subsequentes, sob o argumento de preservação da isonomia, da celeridade, da estabilidade e da previsibilidade do sistema. 51

Taruffo52 ainda considera que o grande número de decisões proferidas pelas cortes superiores geram um desvirtuamento do sistema que muitas vezes culmina em um conjunto de decisões judiciais incoerentes e divergentes. Menciona que essas distorções raramente ocorrem no common law principalmente ao se verificar que as cortes superiores da Inglaterra e Estados Unidos não proferem mais de 200 decisões por ano. Ao fazer um paralelo com o Brasil, é possível verificar que o Supremo Tribunal Federal no ano de 2020 prolatou 99.55653 decisões – entre monocráticas e colegiadas.

Com um número tão elevado de decisões judiciais se depreende que há uma dificuldade de verificação das decisões relevantes proferidas sobre o tema, e ainda da consideração adequada e suficiente dos fatos materiais relevantes entre os casos em análise.

Há na doutrina posicionamentos que criticam duramente a postura dos julgadores no manejo do direito jurisprudencial. Veja-se:

Ao contrário do que se passa no common law, a utilização, no Brasil, dos precedentes e, em maior medida, do direito jurisprudencial na aplicação do direito é fruto de um discurso de matiz neoliberal, que privilegiava a sumarização da cognição, a padronização decisória superficial e uma justiça de números (eficiência tão somente quantitativa), configurando um quadro de aplicação equivocada (fora do paradigma constitucional) desse mesmo direito jurisprudencial que dá origem ao que se pode chamar de hiperintegração do direito.54

Todas as posturas acima apontadas poderiam ser dirimidas caso se levasse a sério o paradigma constitucionalmente adequado do processo, no qual os sujeitos processuais cooperam para uma decisão acertada para o litígio. Esta cooperação não pode vir desacompanhada da dimensão substancial do contraditório que fomenta a participação e construção dialógica das decisões.

Tanto a problemática da subsunção quanto da hiperintegração do Direito são fomentadas pelo grau de abstração que se confere à norma extraída do precedente, e a solução para dirimir essas práticas problemáticas perpassa a individualização da norma a partir dos fatos materiais tanto da decisão paradigma quanto do caso sub judice. A precisão dos fatos do caso a ser decidido depende da participação das partes cumprindo seu direito de manifestação proveniente do contraditório. Do mesmo modo que o magistrado deve observar o seu dever de consulta preventiva às partes sobre todos os fundamentos da decisão futura, cumprindo o mandamento, também extraído do contraditório, de vedação de decisões surpresa.

Ao assumir esta postura cooperativa lastreada no contraditório substancial, é possível a percepção de um policentrismo processual55 que consiste no desempenho racional das funções desenvolvidas pelos participantes do processo.

É importante ressaltar que esses problemas de aplicação também são provenientes de um modo de raciocínio jurídico, entretanto isso não deve servir como obstáculo para que uma postura constitucionalmente adequada se realize dentro do processo.

  1. Interconexão entre os precedentes e o contraditório na tutela de evidência concedida em caráter liminar

Com intuito de delimitar melhor o tema, a discussão que aqui se propõe é a análise da hipótese de concessão da tutela de evidência, sem oitiva prévia da parte contrária – nos termos do parágrafo único do artigo 311 –, quando “as alegações de fato puderem ser comprovadas documentalmente e houver tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em súmula vinculante”, conforme inciso II do artigo 311, CPC.

O gênero tutela provisória, consagrado no Livro V do Código de Processo Civil, possui o claro objetivo de estruturar o processo de modo tecnicamente capaz de realizar as formas de tutela pretendidas pelo direito material, consubstanciando assim, aos princípios constitucionais de acesso à justiça e efetividade da tutela jurisdicional. As características fundamentais que compõem este gênero são: a cognição sumária, compreendida como técnica cognitiva limitada – a partir da perspectiva horizontal – pelo número de questões processuais analisadas no exame perfunctório, e, a partir deste exame é possível a verificação da probabilidade do direito sobre a questão controversa, e por fim, a provisoriedade do ato decisório, posto que comporta uma alteração do juízo de probabilidade em virtude de novos elementos trazidos à análise.

Nos moldes do artigo 294/CPC, a tutela provisória se divide em urgência e evidência. A tutela de urgência, é justificada pela situação excepcional de risco que pode acarretar danos ao resultado útil do processo. Esta espécie comporta ainda duas subdivisões: tutela de urgência cautelar, que objetiva conservar o status quo para assegurar o provimento definitivo; a tutela de urgência antecipada que visa à satisfação do direito, por meio da antecipação dos efeitos da tutela definitiva.

A tutela de evidência tem por objetivo assegurar ao detentor do direito provável a proteção contra os danos marginais do processo, através de uma redistribuição do ônus temporal. Tal finalidade só é alcançável quando reunidos os requisitos da probabilidade do direito do autor e a fragilidade da defesa do réu56, posto que não se mostra necessária a antecipação de um provimento jurisdicional, baseado em cognição sumária, quando ausente a injusta espera para realização do direito em litígio.

Não se trata de instituto novo, posto que sua previsão já existia no CPC/1973 nos casos de abuso do direito de defesa do autor. Na disciplina do Código de Processo Civil, o instituto ganha novos contornos ao instituir um rol de hipóteses de concessão. Sem adentrar na discussão existente na doutrina sobre a taxatividade do disposto no artigo 311, do CPC, é importante definir o escopo de atuação do instituto.

Nesta modalidade de tutela, ocorre a antecipação dos efeitos do direito material em análise com a finalidade de redistribuir o ônus temporal do processo. Marinoni define como pressuposto da tutela de evidência a defesa infundada “ou a probabilidade de que não será acolhida ao final do processo”57. Afirma ainda que é necessário que a demanda necessite de dilação probatória, de modo que a tutela se funda na readequação do tempo diante da necessidade de realização de instrução da causa pelo réu.

Por se tratar de um tipo de tutela processual baseada na cognição sumária, o magistrado procederá à análise com base nos elementos presentes no processo. A cognição para formação do convencimento judicial será baseada na probabilidade do direito ainda que ausente o contraditório pleno. Esta probabilidade não recai diretamente sobre o direito do autor, e sim com os fatos que dependem da instrução pelo réu.

Neste sentido, "a convicção judicial acerca da defesa indireta decorre unicamente da postura do réu.58 (grifos no original). Assim sendo, surge o dever do réu de se manifestar acerca dos fatos narrados na petição inicial de modo a esclarecer ou contestar os fatos apresentados. Neste sentido Marinoni ainda afirma:

Assim, à semelhança do que ocorre no sistema alemão, no direito brasileiro estão presentes o dever de veracidade e o dever de o réu se manifestar sobre os fatos narrados na petição inicial. Isto é muito importante, já que valoriza ao máximo a busca da verdade material e reduz a massa de fatos controversos (...). 59

Entretanto, no caso do pedido em caráter liminar realizado na petição inicial, o que se tem são os fatos alegados pelo autor – na hipótese do artigo 311, inciso II – em conjunto com a dilação probatória documental e a decisão paradigma usada como precedente para aplicação da mesma consequência jurídica. O artigo 9º, parágrafo único, inciso II e o artigo 311, parágrafo único permitem a concessão da tutela de evidência inaudita altera pars, ou seja, sem oitiva da parte contrária.

A previsão resulta em uma contradição lógica com a razão de ser do instituto que objetiva a redistribuição do tempo no processo levando em consideração a fragilidade da defesa do réu. É como se houvesse uma presunção prévia de veracidade das alegações do autor diante das provas documentais e do precedente. Marinoni neste sentido afirma que “é absolutamente impossível aferir os pressupostos da tutela de evidência liminarmente”60.

Norato ao versar sobre o contraditório na tutela de evidência afirma que a postergação do contraditório neste instituto pode resultar em uma redistribuição inadequada no ônus temporal no processo que é exatamente o contrário do que se almeja com a razão de ser do instituto. Veja-se:

Aceitar a prolação de provimento inaudita altera parte, a destacar em concessão de tutela fundada em cognição sumária, quando o caso concreto não reclama exceção ao contraditório prévio configura, no mínimo, desnecessária priorização da celeridade em prejuízo da segurança jurídica, o que não implica efetividade da prestação jurisdicional, ao contrário, a dissocia do direito material que visa amparar. Isso porque, sob o pretexto de tutelar o direito do autor, requerente da tutela de direito provável, a inobservância do contraditório prévio lesiona, vezes até de modo irreparável, a esfera jurídica do réu, transferindo-lhe in totum o risco da demora do processo, risco este que, em verdade, deve ser adequadamente ponderado e distribuído entre as partes, não imputado gravemente a uma delas, sem observância das garantias constitucionais do processo.61

O artigo, assim, resulta em uma aplicação problemática dos dois institutos apresentados que leva alguns autores inclusive a defenderem a inconstitucionalidade da disposição. Marinoni argui a inconstitucionalidade em face da violação do contraditório bem como do direito de defesa conferido ao réu.62 Neste sentido consigna:

O art. 5º, LV, da Constituição Federal, ao dizer que aos litigantes são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, obviamente não impede o emprego da técnica processual indispensável à redistribuição do ônus do tempo do processo entre as partes. A tutela de evidência – não obstante o inconstitucional parágrafo único do artigo 311 – não pode ser prestada inaudita altera parte. O réu sempre tem a oportunidade de contestar os fatos constitutivos e apresentar fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor, requerendo, se a defesa não depender de instrução, o imediato julgamento do mérito.63

Streck consigna que a dilação probatória lastreada em prova documental pode facilmente ser contestada por contraprova apresentada pelo réu, de forma a mitigar força probante dos documentos colacionados. Afirma ainda que a previsão considera um fechamento argumentativo da controvérsia como se os precedentes carregassem a capacidade de restringir a interpretação jurídica. Consigna ainda que as previsões “encerram proteção deficiente da garantia do contraditório e não se mostram necessários à proteção de qualquer outro direito ou garantia fundamental, razão por que são eivados de inconstitucionalidade material”64.

Já se alertou sobre os riscos de hiperintegração do direito diante dos casos em que se privilegia a cognição sumária em detrimento da averiguação correta dos fatos materiais do caso controvertido – observando uma correta aplicação do sistema de precedentes que ora se propôs. Portanto, o que se vê é uma violação do contraditório que constitui elemento essencial de aplicação dos dois institutos.

É válido pontuar que a aplicação do sistema de precedentes no instituto da improcedência liminar do pedido também resulta em um pesado ônus argumentativo65 para o autor que deve apresentar a distinção entre o caso paradigma e o litígio apresentado. Entretanto, neste caso não se verifica prejuízo ao contraditório diante da não apresentação de defesa do réu, pois o resultado do provimento o favorece nesta condição66.

CONCLUSÃO

O modelo comparticipativo de processo que preza pela participação das partes e pela cooperação dos atores processuais para o provimento final, favorece a concepção do contraditório substancial e todos os direitos e deveres resultantes deste. Esta perspectiva perpassa a aplicação de todos os institutos processuais de modo a garantir uma aplicação constitucionalmente adequada e lastreada no policentrismo processual.

A partir desta premissa se percebe a importância do contraditório para o sistema de precedentes obrigatórios previsto no Código de Processo Civil. Esta relevância perpassa a formação do caso paradigma e a aplicação no caso sub judice para resolução da controvérsia processual, posto que os fatos materiais são essenciais para comparação entre os casos e só podem aparecer no processo a partir do diálogo entre os sujeitos. Do mesmo modo que para própria aplicação do precedente as partes devem ser consultadas de modo que, ainda que se trate de matéria de conhecimento oficioso do juiz, o contraditório seja respeitado enquanto consubstanciação do princípio da não surpresa.

Ainda sob esta ótica, os problemas de aplicação dos precedentes – abstração da norma pela subsunção e hiperintegração – podem ser dirimidos diante de uma postura processual que respeite as garantias fundamentais do processo. As questões relativas ao fechamento interpretativo que ocorre na prática só podem ser resolvidas quando o raciocínio jurídico dos precedentes observar esse dever de ampliação do diálogo processual como pressuposto da melhor teoria de aplicação dos precedentes judiciais.

No que tange a repercussão prática do sistema de precedentes no instituto da tutela de evidência concedida em caráter liminar, o que se percebe é o desvirtuamento da aplicação dos institutos diante da importância elementar do contraditório tanto para se averiguar a inconsistência da defesa do réu, na tutela de evidência, quanto para correta aplicação dos precedentes e do alcance da sua finalidade de garantia de integridade e coerência dentro do direito jurisprudencial pátrio.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BUSTAMANTE, Thomas da Rosa. Teoria do Precedente Judicial: A justificação e aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012.

DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela. ed. 10. Salvador: Jus Podivm, 2015. v. 2.

Estatísticas do STF. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=estatistica&pagina=decisoesgeral>. Acesso em: Março/2021.

GONÇALVES, Aroldo Plínio. O contraditório no processo. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. vol. 61, set. 2012.

GONÇALVES, Aroldo Plínio. Nulidades no Processo. ed. 2. Belo Horizonte: Del Rey, 2014.

GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e Teoria do Processo. 2. Belo Horizonte: Del Rey, 2012.

MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela de urgência e tutela da evidência: soluções processuais diante do tempo da justiça. 2ª ed. revista. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018.

NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Tendência de padronização decisória no PLS nº 166/2010: O Brasil entre o civil law e common law e os problemas na utilização do “marco zero interpretativo”. in BARROS, Flaviane Magalhães. MORAIS, José Luiz Bolzan de. Reforma do Processo Civil: perspectivas constitucionais. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2010.

NUNES, Dierle. HORTA, André Frederico. A doutrina do precedente judicial - fatos operativos, argumentos de princípio e novo Código de Processo Civil. In: Instituto Brasileiro de Direito Processual. SCARPINELLA BUENO, Cassio. (Org.). PRODIREITO: Direito Processual Civil: Programa de Atualização em Direito: Ciclo 1. Porto Alegre: Artmed Panamericana, 2015.

NUNES, Dierle. Processualismo constitucional democrático e o dimensionamento da litigiosidade repetitiva: a litigância de interesse público e as tendências “não compreendidas” de padronização decisória. Revista de Processo, v. 199, p. 38, set. 2011.

NUNES, Dierle. LACERDA, Rafaela. Contraditório e precedentes: primeiras linhas. In: ARRUDA ALVIM WAMBIER, Teresa (orgs.). Direito jurisprudencial. São Paulo: ed. RT. 2012.

NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco. Precedentes no CPC-2015: por uma compreensão constitucionalmente adequada do seu uso no Brasil. Revista no Ministério Público do Rio de Janeiro. nº 57. Jul/set. 2015. p. 17-52. Disponível em <https://www.researchgate.net/profile/Alexandre-Gustavo-Melo-Franco-De-Moraes-Bahia/publication/303400857_Precedentes_no_CPC-2015_por_uma_compreensao_constitucionalmente_adequada_do_seu_uso_no_Brasil/links/5740948b08ae9ace8415f6db/Precedentes-no-CPC-2015-por-uma-compreensao-constitucionalmente-adequada-do-seu-uso-no-Brasil.pdf>. Acesso em: Janeiro 2021.

REZENDE, Ester Camila Gomes Norato. Fortalecimento da tutela do direito provável: Atipicidade e generalização da tutela em combate ao dano marginal no direito brasileiro. Repositório Institucional Universidade Federal de Minas Gerais. Disponível em: <https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/BUOS-ASNJAK/1/tese_ester_norato_rev_final.pdf>. Acesso em: Agosto de 2019.

ROMÃO, Pablo Freire; PINTO, Eduardo Regis Girão de Castro. Contraditório, cooperação e precedente: a ampliação do diálogo processual sob a ótica do Novo Código de Processo Civil. Revista Eletrônica de Direito Processual REDP. vol. 15. Jan. 2015. p. 403. Disponível em <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/redp/article/view/16882/12527> . Acesso em: Novembro de 2020.

STRECK, Lênio Luiz.; DELFINO, Lúcio; SOUSA, Diego Crevelin de. Tutela provisória e contraditório: uma evidente inconstitucionalidade. Revista do Consultor Jurídico. 15 de maio de 2017. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/17-mai-15/tutela-provisória-contraditório-evidente-inconstitucionalidade>. Acesso em: Outubro de 2020.

TARUFO, Michele. Precedente e jurisprudência. Trad. Chiata de Teffé. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 3, n. 2, jul. dez./2014. Disponível em <http://civilistica.com/precedente-e-jurispurdencia/> . Data de acesso: jul. 2020.

STRECK, Lenio Luiz. Art. 926. In: _______; NUNES, Dierle; CUNHA Leonardo (orgs). Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2016.

THEODORO JR., Humberto. Curso de Direito Processual Civil. vol I. ed. 58, rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p 81.

THEODORO JR., Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flávio Quinad. Novo CPC: Fundamentos e sistematização. 3. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2016.

THEODORO JR., Humberto, NUNES, Dierle. Uma dimensão que urge reconhecer ao contraditório no Direito brasileiro: sua aplicação como garantia de influência, de não surpresa e de aproveitamento da atividade processual. Revista de Processo. vol. 168, Fev. 2009. p. 107-141.

VIANA, Aurélio. NUNES, Dierle. Precedentes: A mutação no ônus argumentativo. Rio de Janeiro: Forense. 2018.

Sobre a autora
Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos