Proposta pelos deputados federais Lúcio Vale — PR/PA, Ronaldo Benedet — PMDB/SC, Ariosto Holanda — PDT/CE e outros em 2016, a Lei n.º 14.849/2024 altera a Lei n.º 10.257 de 10 de julho de 2001, conhecida como Estatuto da Cidade, a fim de obrigar a avaliação da mobilidade urbana nos Estudos de Impacto de Vizinhança. A mobilidade urbana, um conceito multifacetado, diz respeito à capacidade de se deslocar dentro das cidades e regiões urbanas, abrangendo o transporte de pessoas e cargas. A geração de tráfego em ambientes urbanos está ligada à utilização de tecnologias e táticas que visam melhorar a mobilidade urbana, melhorar a qualidade de vida e otimizar os sistemas de transporte. Por outro lado, a demanda por transporte público se refere à quantidade de pessoas interessadas e capazes de utilizar os serviços de transporte público.
Segundo a justificativa apresentada pelos autores naquele ano, o Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) deve ser exigido, nos termos de lei municipal, de determinados tipos de empreendimentos e atividades privadas ou públicas em área urbana. O EIV será, nesses casos específicos, condição para a obtenção de licenças ou autorizações de construção, ampliação ou funcionamento a cargo do poder público municipal.
Para Peres e Cassiano (2019), o objetivo do EIV é diagnosticar e prever os impactos de empreendimentos que serão implantados na cidade, além de indicar medidas de prevenção, correção e mitigação. Porém, para além de medidas puramente técnicas, ele pressupõe ser um instrumento de mediação de interesses e conflitos entre empreendedores, poder público e comunidades envolvidas. Sob esse mesmo olhar, Carvalho e Rodrigues (2023) afirmam que:
Partindo do princípio de que a cidade pertente a todos os seus habitantes, a primeira dimensão do direito à cidade se refere à possibilidade de permanência nos seus espaços, ou seja, a possibilidade de garantir para si uma "parcela de cidade" (p. 54).
Para Carvalho e Rodrigues (2023), a maioria da população urbana depende do transporte público para se locomover entre os diversos pontos da cidade, permitindo que todos possam ter acesso aos benefícios materiais e imateriais desenvolvidos por elas mesmas. Quando a qualidade do transporte se torna precária ou há uma limitação nos trajetos (especialmente nos fins de semana), uma boa parte da população não consegue acessar algumas regiões determinadas, havendo uma intensificação da segregação espacial (Carvalho; Rodrigues, 2023).
Nesse sentido, o Art. 37. do Estatuto da Cidade exige que o EIV contemple os efeitos positivos e negativos do respectivo empreendimento ou atividade, quanto à qualidade de vida da população residente na área e suas proximidades, listando questões essenciais que deverão ser objeto de análise, entre as quais a geração de tráfego e a demanda por transporte público.
Art. 37. O EIV será executado de forma a contemplar os efeitos positivos e negativos do empreendimento ou atividade quanto à qualidade de vida da população residente na área e suas proximidades, incluindo a análise, no mínimo, das seguintes questões:
I – adensamento populacional;
II – equipamentos urbanos e comunitários;
III – uso e ocupação do solo;
IV – valorização imobiliária;
V - mobilidade urbana, geração de tráfego e demanda por transporte público; (Redação dada pela Lei nº 14.849, de 2024)
VI – ventilação e iluminação;
VII – paisagem urbana e patrimônio natural e cultural.
Parágrafo único. Dar-se-á publicidade aos documentos integrantes do EIV, que ficarão disponíveis para consulta, no órgão competente do Poder Público municipal, por qualquer interessado.
A Lei nº 12.587, de 3 de janeiro de 2012, que institui as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana, além de obrigar os municípios com mais de 20 mil habitantes a elaborar um plano, esclarece que:
Art. 1ºA Política Nacional de Mobilidade Urbana é instrumento da política de desenvolvimento urbano de que tratam o inciso XX do art. 21. e o art. 182. da Constituição Federal, objetivando a integração entre os diferentes modos de transporte e a melhoria da acessibilidade e mobilidade das pessoas e cargas no território do Município.
[...]
Art. 2º A Política Nacional de Mobilidade Urbana tem por objetivo contribuir para o acesso universal à cidade, o fomento e a concretização das condições que contribuam para a efetivação dos princípios, objetivos e diretrizes da política de desenvolvimento urbano, por meio do planejamento e da gestão democrática do Sistema Nacional de Mobilidade Urbana.
Art. 3º O Sistema Nacional de Mobilidade Urbana é o conjunto organizado e coordenado dos modos de transporte, de serviços e de infraestruturas que garantam os deslocamentos de pessoas e cargas no território do Município.
A mesma Lei nº 12.587/2012 traz os princípios, as diretrizes e os objetivos da Política Nacional de Mobilidade Urbana. O artigo 5º trata dos princípios:
Art. 5º A Política Nacional de Mobilidade Urbana está fundamentada nos seguintes princípios:
I - acessibilidade universal;
II - desenvolvimento sustentável das cidades, nas dimensões socioeconômicas e ambientais;
III - equidade no acesso dos cidadãos ao transporte público coletivo;
IV - eficiência, eficácia e efetividade na prestação dos serviços de transporte urbano;
V - gestão democrática e controle social do planejamento e avaliação da Política Nacional de Mobilidade Urbana;
VI - segurança nos deslocamentos das pessoas;
VII - justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do uso dos diferentes modos e serviços;
VIII - equidade no uso do espaço público de circulação, vias e logradouros; e
IX - eficiência, eficácia e efetividade na circulação urbana.
O Art. 6º trata das diretrizes:
Art. 6º A Política Nacional de Mobilidade Urbana é orientada pelas seguintes diretrizes:
I - integração com a política de desenvolvimento urbano e respectivas políticas setoriais de habitação, saneamento básico, planejamento e gestão do uso do solo no âmbito dos entes federativos;
II - prioridade dos modos de transportes não motorizados sobre os motorizados e dos serviços de transporte público coletivo sobre o transporte individual motorizado;
III - integração entre os modos e serviços de transporte urbano;
IV - mitigação dos custos ambientais, sociais e econômicos dos deslocamentos de pessoas e cargas na cidade;
V - incentivo ao desenvolvimento científico-tecnológico e ao uso de energias renováveis e menos poluentes;
VI - priorização de projetos de transporte público coletivo estruturadores do território e indutores do desenvolvimento urbano integrado; e
VII - integração entre as cidades gêmeas localizadas na faixa de fronteira com outros países sobre a linha divisória internacional.
VIII - garantia de sustentabilidade econômica das redes de transporte público coletivo de passageiros, de modo a preservar a continuidade, a universalidade e a modicidade tarifária do serviço. (Incluído pela Lei nº 13.683, de 2018)
E o artigo 7º trata dos objetivos:
Art. 7º A Política Nacional de Mobilidade Urbana possui os seguintes objetivos:
I - reduzir as desigualdades e promover a inclusão social;
II - promover o acesso aos serviços básicos e equipamentos sociais;
III - proporcionar melhoria nas condições urbanas da população no que se refere à acessibilidade e à mobilidade;
IV - promover o desenvolvimento sustentável com a mitigação dos custos ambientais e socioeconômicos dos deslocamentos de pessoas e cargas nas cidades; e
V - consolidar a gestão democrática como instrumento e garantia da construção contínua do aprimoramento da mobilidade urbana.
Ora, se quando da elaboração e aprovação do Estatuto, as questões relacionadas aos deslocamentos de pessoas e cargas em áreas urbanas eram definidas em termos de geração de tráfego e demanda por transporte público, hoje não mais. O moderno conceito de mobilidade urbana vai muito além da geração de tráfego e demanda por transporte público, abarcando todo um conjunto organizado e coordenado dos modos de transporte (incluindo os não motorizados), de serviços e de infraestruturas (incluindo vias, calçadas, ciclovias e demais logradouros públicos).
Nesse sentido, a nova lei exige que, para a elaboração do Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV), é necessário observar uma análise mais detalhada, incluindo a mobilidade urbana, geração de tráfego e demanda por transporte público, nos locais onde serão construídos empreendimentos e atividades privadas ou públicas nas áreas urbanas dos municípios.
Referências
BRASIL. Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182. e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm. Acesso em: 18 mai. 2024.
BRASIL. Lei nº 12.587, de 3 de janeiro de 2012. Institui as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana; revoga dispositivos dos Decretos-Leis nºs 3.326, de 3 de junho de 1941, e 5.405, de 13 de abril de 1943, da Consolidação das Leis do Trabalho ( CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e das Leis nºs 5.917, de 10 de setembro de 1973, e 6.261, de 14 de novembro de 1975; e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12587.htm. Acesso em: 18 mai. 2024.
BRASIL. Lei nº 14.849, de 2 de maio de 2024. Altera a Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001 ( Estatuto da Cidade), para exigir análise de mobilidade urbana nos estudos prévios de impacto de vizinhança. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2024/Lei/L14849.htm. Acesso em: 18 mai. 2024.
CARVALHO, Cláudio; RODRIGUES, Raoni. Fundamentos do Direito à Cidade. 1a ed. João Pessoa, PB : Editora Porta, 2023.
PERES, Renata Bovo.; CASSIANO, Andréia Márcia. O Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) nas regiões Sul e Sudeste do Brasil: avanços e desafios à gestão ambiental urbana. urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana, v. 11, p. e-20180128, 2019.