1. Introdução
Com o fim da ditatura militar e o advento da Constituição Federal de 1988, passou a ser um dever do Estado o fornecimento de uma educação com qualidade, tal obrigação restou expressamente consagrada no artigo 206, inciso VII da nossa Constituição Cidadã.
Além do artigo 206, VII da Constituição, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.394 de 20 de dezembro de 1996) garantiu no seu artigo 4º, IX que a educação conte com padrões mínimos de qualidade de ensino, definidos como a variedade e quantidade mínimas, por aluno, de insumos indispensáveis ao desenvolvimento do processo de ensino e de aprendizagem.
Em 27 de fevereiro de 2019, o Deputado Federal José Ricardo (PT-AM), apresentou um projeto que limitava o número de alunos por sala, nas razões de Justificação do projeto o parlamentar destacou que "É notável também que os Estados que obtiveram melhores resultados no IDEB, foram os que apresentaram menores médias de alunos por turma" (RICARDO, 2019, p. 4)[1].
Em que pese os fundamentos acima, fato é que muitas escolas sofrem com a superlotação das salas de aula, cito os dados levantados pelo Sinpro-DF destacando que situações alarmantes em pleno 2024, que impactam diretamente alunos autistas, que necessitam de maior atenção por parte das escolas:
As queixas de escolas e professores(as) por superlotação de turmas se estende por todas as regionais de ensino. Mas há casos ainda mais graves, como São Sebastião, com uma população que cresceu muito e o Estado não se fez presente nesse crescimento.
“Praticamente todas as turmas estão extrapolando o máximo de alunos estabelecidos na estratégia de matrícula 2024”, conta a gestora do CEI 01 de São Sebastião, Cleyde Cunha Sousa, que completa: a composição das integrações inversas e classes especiais também estão atendendo estudantes além do previsto. E, mesmo assim, faltam vagas e salas para dar conta da demanda na região. “São Sebastião teve um aumento significativo no número de moradores sem a construção de novas escolas dentro da cidade. Diariamente, seja na escola presencialmente ou no meu WhatsApp, recebo pessoas da comunidade à procura de vagas e sem saber o que fazer por não conseguir em nenhuma escola de educação infantil”, conta Cleyde.
A gestora do CEI 01 aponta o descaso com alunos(as) especiais: “Mesmo com fundamentação pedagógica de uma equipe que conviveu ao longo do ano com o estudante (professor regente, Equipe de apoio, sala de recursos, coordenação pedagógica, equipe gestora) tivemos casos significativos indeferidos e as crianças sumariamente “jogadas” em classes de integração inversa com mais alunos do que o previsto e sem a quantidade adequada de profissionais para acompanhamento.
“Tenho colegas com três alunos especiais em sala. Tivemos turmas fechadas no ano passado, e hoje há turmas com 20 alunos pequenos, em alguns casos com 3 crianças com de Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) numa única turma”, conta Ana Paula Aguiar, professora da EC 01 do Lago Sul. (SALLORENZO, 2024).[2]
Portanto, considerando o fragmento acima apresentado e extraído do Sinpro-DF, em que pese existir normativas antigas resguardando o direito à educação com qualidade e com insumos adequados (Constituição de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996), fato é que em pleno 2024 não conseguimos resolver o problema da superlotação das salas de aula.
Outro dado que nos chama a atenção é que o Governo Federal, somente no primeiro trimestre de 2024 (1T24), tem destacado que “a arrecadação bateu outro recorde e teve alta real de 8,36%, alcançando R$ 657 bilhões.”, conforme informações extraídas do Sindireceita, que é uma entidade civil, mantida e organizada pelos Analistas Tributários da Receita Federal do Brasil, com fundação em abril de 1992.
Também deve ser levantado que o MEC (Ministério da Educação), somente nos dois primeiros meses de 2024, repassou 16,3 Bilhões às escolas por meio do FNDE, inclusive essa verba tem, dentre outras finalidades, o destino para construção de novos prédios e creches via PAR, cito:
Em dois meses, após o início deste ano, o Ministério da Educação (MEC) — por meio do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), autarquia vinculada ao MEC — já repassou R$ 16,3 bilhões em recursos para as redes educacionais no Brasil, incluindo pagamentos ao Programa Escola em Tempo Integral e ao Compromisso Nacional Criança Alfabetizada, que somam R$ 150 milhões de investimento. Foram transferidos, também, recursos para o pagamento de bolsas e auxílios, construção de creches, pré-escolas, escolas de ensino fundamental e construção de quadras e coberturas de quadras, via Plano de Ações Articuladas (PAR), além do pagamento da primeira parcela do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). (MEC, 2024)[3]
Igualmente não se ignora que, dentre os tributos existentes, o Salário-Educação é uma importante fonte de arrecadação extraída da folha de salário das empresas, tendo a sua previsão constitucional no § 5º do art. 212 da Constituição Federal de 1988, com a alíquota de 2,5% sobre a folha de pagamento.
Destaca-se que sobre o Salário-Educação, o Governo estimou uma receita líquida em 2023 de R$ 30.797.492.511,45 (Trinta bilhões, setecentos e noventa e sete milhões, quatrocentos e noventa e dois mil, quinhentos e onze reais e quarenta e cinco centavos), sendo repassados aos Estados e Municípios a cifra de R$ 18.478.495.512,59 (Dezoito bilhões, quatrocentos e setenta e oito milhões, quatrocentos e noventa e cinco mil, quinhentos e doze reais e cinquenta e nove centavos), somente do Salário-Educação. (FNDE, 2023)[4]
É pertinente mencionar os números acima, porque uma coisa é fato, o Salário-Educação é uma fonte de renda adicional para a educação, jamais a única, ou seja, os recursos superam os valores bilionários ditos anteriormente, cito:
Inclusive há uma contribuição social prevista dentro de um dos capítulos da Ordem Social, qual seja, a contribuição sobre o Salário-Educação. É o § 5º do art, 212 que assim dispõe: “a educação básica pública terá como fonte adicional de financiamento a contribuição social do salário-educação, recolhida pelas empresas na forma da lei.”. (DIAS JR., 2018 p. 81 - grifei)[5].
O Salário-Educação é uma contribuição social destinada ao financiamento de programas, projetos e ações voltados para a educação básica pública, conforme previsto no § 5º do art. 212 da Constituição Federal de 1988. (MEC, 2024 - Grifei)[6].
Além do Salário-Educação, que é uma fonte adicional de renda, os recursos da educação também possuem origens em outros tributos, vejamos, por exemplo, a composição do Fundeb, que segundo o Ministério da Educação engloba inúmeros tributos (ICMS, ITR, IPVA, ITCMD, etc):
Em cada estado, o Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) é composto por percentuais das seguintes receitas: Fundo de Participação dos Estados (FPE), Fundo de Participação dos Municípios (FPM), Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), Imposto sobre Produtos Industrializados, proporcional às exportações (IPIexp), Desoneração das Exportações (LC nº 87/96), Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doações (ITCMD), Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores (IPVA), cota parte de 50% do Imposto Territorial Rural (ITR) devida aos municípios. Também compõem o fundo as receitas da dívida ativa e de juros e multas incidentes sobre as fontes acima relacionadas. (MEC, 2024)[7].
Portanto, uma vastidão de recursos há, inclusive ingressando todos os meses nos cofres Federais, Estaduais e Municipais, no entanto, não podemos deixar crianças indefesas e professores amontoados em salas superlotadas, devemos resolver isso.
Evidentemente que o assunto merece maior atenção, portanto foi escolhido para ser objeto do presente artigo, visto que há um direito constitucional à educação com qualidade, o seu não atendimento de maneira satisfatória e plena em 2024 conforme o noticiado pelo Sindpro-DF, uma arrecadação fiscal recorde nos termos do Sindireceita para o 1T204, uma contribuição social adicional (salário-educação) e um repasse interessante nos dois primeiros meses para as escolas segundo informações do MEC.
2. O que é superlotação?
Considera-se sala superlotada aquela que não atende aos critérios mínimos de espaço em metros quadrados (m2) e de quantidade de alunos por sala especificados em Lei do Estadual (escolas estaduais) ou do Município (escolas municipais).
Caso o Estado e o Município não tenham regulamentado o assunto, devemos adotar os critérios apontados pela Doutora em Educação Olga Freitas, prevendo um “espaço mínimo de mobilidade e circulação de 1m a 1,5m para o estudante, e de 2m a 2,5m de área de circulação livre para o(a) professor(a)” (SINPRO-DF, 2024)[8].
Eventuais normas que elegem critérios inferiores a 1m2 para o estudante e 2m2 de área de circulação livre para os professores, no entender desse artigo, são inconstitucionais, por não serem razoáveis, proporcionais e tratar a garantia ora estudada de um direito indisponível e inegociável, não ficando refém de discricionariedades abusivas do gestor público.
3. A superlotação das salas de aula é uma afronta à Constituição Federal.
Como corretamente estabelece a Constituição Federal de 1988, a educação é um direito universal, ou seja, de todos, sendo um dever do Estado (art. 205), além do mais, a mesma Carta Magna nos explica que o ensino será ofertado com igualdade de condições para o acesso e permanência na escola (art. 206, I).
Antes de adentrarmos na qualidade do ensino, cumpre esclarecer que o Inciso I do art. 206 da Constituição não é atendido quando temos algumas salas superlotadas. Tal conclusão é bastante simples, o aluno vítima de superlotação não consegue receber uma abordagem específica e mais individualizada que os demais receberão por estarem em salas com condições normais.
Logo, se uma turma sofre de superlotação e outra não, essas crianças já não possuem igualdade de acesso à educação e tampouco de permanência, restando violado o inciso I do artigo 206 da Constituição, pois o aluno vítima de superlotação encontra dificuldades e desincentivos inegáveis, não lhe sendo estimulada adequadamente a aprendizagem e dando margens para aversões ao ambiente escolar, vejamos a doutrina específica:
As crianças saem do conforto dos seus lares, do aconchego do colo de suas mães, tendo que criar forçadamente sua independência, longe de seus familiares, ficando grande parte da sua vida na escola e de repente se deparam com prédios arquitetônicos das escolas que são bem semelhantes às de uma prisão e se não bastasse, as salas de aula são pequenas, sem espaço para diversão, eles têm pouco tempo ao ar livre, criando com isso crianças desoladas. Fazendo da escola, um ambiente entediante e desagradável, desta forma, ocasionando grandes problemas de indisciplina (SILVA, 2020, p. 1.668)[9].
E que não se argumente que a conclusão acima é generalista, pelo contrário, estudos acadêmicos recentes e a Justificação do Projeto de Lei n.º 1.188, de 27 de fevereiro de 2019 foram claros em apontar o metro quadrado como fator de excelência, qualidade e atendimento específico às necessidades individuais da criança, cito:
Como fica o respeito da escola pela especificidade que a criança pequena requer para desenvolver? A resposta está clara: no metro quadrado da sala de aula. (SILVA, 2020, p. 1.669)[10].
Na maioria das escolas brasileiras a sala de aula é apenas um depósito de pessoas. É preciso respeitar o limite máximo de estudantes por turma em cada fase da educação básica, para que se possa dar devida atenção às muitas e cada vez mais crescentes necessidades discentes, sob devida orientação pedagógica e psicológica adequada constantemente em cada escola. (ARAÚJO; QUEIIROZ, 2023, p. 99)[11].
É notável também que os Estados que obtiveram melhores resultados no IDEB, foram os que apresentaram menores médias de alunos por turma (RICARDO, 2019, p. 4).[12]
Portanto a afronta ao artigo 206, inciso I da Carta Magna é concreta, não podemos negar que há uma real desigualdade entre os alunos que estão em salas superlotadas e os que não estão nelas, inegável, pois, a falta igualdade de acesso e permanência nas escolas.
No quesito qualidade da educação, assegurado tanto no artigo 206, VII da Constituição e quanto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (artigo 4º, IX), temos que esse não é atendido.
Desde os primórdios da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, se falava em ter uma proporcionalidade no número de alunos com o de educadores, demonstrando uma real preocupação em não se criar salas superlotadas, ainda que a LDB tenha sido genérica, mas fato é que se preocupou com esse problema e a orientação é evitar, vejamos:
A LDB chama a atenção para a necessidade de se alcançar relação adequada entre o número de alunos e o professor, acenando para uma redução do número de alunos em cada sala de aula, porém sem especificar (art. 25). (RAMAL, 1997, p. 4)[13]
Alguns Estados editaram normativas especificando limites, ações judiciais foram propostas pelo Ministério Público frente aos inúmeros descumprimentos das normativas estaduais, o Judiciário tem sido coerente em associar a superlotação como uma verdadeira afronta à qualidade de ensino, deferindo os pedidos formulados pelo parquet para limitar o número de alunos nas salas superlotadas, vejamos casos reais:
(...) 1. Assim como a saúde e a segurança pública (arts. 196 e 144, da CF), a educação é direito de todos e dever do Estado (art. 205 da CF), devendo, pela essencialidade do seu objeto, ser prestada, acima de tudo, de forma eficiente, não podendo o Poder Público se eximir desta obrigação sob o pretexto de indisponibilidade orçamentária. 2. Se o Estado, seguidamente, vem inobservando o limite máximo de alunos em sala de aula, está em falta com seu dever constitucional já que a superlotação, à toda evidência, compromete a qualidade das atividades docentes e discentes. 3. Não há falar em afronta ao postulado da separação dos Poderes quando o Judiciário limita-se a determinar ao Estado o cumprimento de mandamento constitucional, impregnado de autônoma força normativa. (TJSC, Apelação Cível n. 2009.024320-5, j. 26-07-2011 - grifei)[14].
Mantendo a análise no tocante às decisões judiciais, não podemos deixar de assinalar que a alegação de carência orçamentária não deve prevalecer, pois a educação é um direito de todos e um dever do Estado. Na prática temos alguns processos analisados pelo Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina nos quais se concluiu o seguinte:
AÇÃO CIVIL PÚBLICA. INSTITUIÇÕES DE ENSINO ESTADUAIS. EXCESSO DE ALUNOS EM SALA DE AULA. LEI COMPLEMENTAR ESTADUAL N. 170/1998. NECESSIDADE DE RESPEITO À ÁREA MÍNIMA POR ALUNO E PROFESSOR. DEFERIMENTO DA LIMINAR. PROCESSO EXTINTO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO ANTE O CARÁTER SATISFATIVO DA MEDIDA. PERDA SUPERVENIENTE DE INTERESSE PROCESSUAL NÃO CONFIGURADA. SENTENÇA CASSADA. JULGAMENTO COM BASE NO ART. 515, § 3º, DO CPC. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. INOCORRÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. AUSÊNCIA DE PREVISÃO ORÇAMENTÁRIA. ALEGAÇÃO QUE NÃO PODE SE SOBREPOR AO DIREITO À EDUCAÇÃO. APELO CONHECIDO E PROVIDO. "O fato de a ré ter cumprido a decisão liminar ou antecipatória de tutela, [...], não significa, dada a provisoriedade da medida, carência da ação por perda superveniente do objeto ou do interesse processual" (AC n. 2014.060703-4, de Joinville, rel. Des. João Henrique Blasi, j. 28-4-2015). "Afastado o fundamento que ensejou a extinção do processo sem resolução de mérito - na hipótese, perda superveniente do interesse processual - pode o Tribunal, com amparo no art. 515, § 3º, do CPC, julgar desde logo a lide, se a causa versar questão exclusivamente de direito e estiver em condições de imediato julgamento" (AC n. 2009.067983-3, de Curitibanos, relª. Desª. Sônia Maria Schmitz, j. 13-12-2013). "1. Assim como a saúde e a segurança pública (arts. 196 e 144, da CF), a educação é direito de todos e dever do Estado (art. 205 da CF), devendo, pela essencialidade do seu objeto, ser prestada, acima de tudo, de forma eficiente, não podendo o Poder Público se eximir desta obrigação sob o pretexto de indisponibilidade orçamentária (TJSC, Apelação Cível n. 2013.021636-6, j. 13-10-2015 - grifei)[15].
AÇÃO CIVIL PÚBLICA. INSTITUIÇÕES DE ENSINO ESTADUAL. EXCESSO DE ALUNOS EM SALAS DE AULA. LEI COMPLEMENTAR ESTADUAL N. 170/1998. NECESSIDADE DE RESPEITO À ÁREA MÍNIMA POR ALUNO E PROFESSOR. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. INOCORRÊNCIA. AUSÊNCIA DE PREVISÃO ORÇAMENTÁRIA. ALEGAÇÃO QUE NÃO PODE SE SOBREPOR AO DIREITO À EDUCAÇÃO. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO E REMESSA CONHECIDOS E DESPROVIDOS (TJ-SC, Apelação Cível n. 2014.094041-5, de Guaramirim, rel. Des. Subst. Júlio César Knoll, j. 4-8-2015 - grifei)[16].
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. EDUCAÇÃO. LIMITE DE ALUNOS POR SALA DE AULA. EXEGESE DO ART. 82 DA LC 170/98. NORMA DE EFICÁCIA IMEDIATA. INOBSERVÂNCIA. DEVER DO ESTADO DE PRESTAR EDUCAÇÃO DE QUALIDADE. AUSÊNCIA DE PREVISÃO ORÇAMENTÁRIA. IRRELEVÂNCIA. INOCORRÊNCIA DE MALFERIMENTO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES.
1. Assim como a saúde e a segurança pública (arts. 196 e 144, da CF), a educação é direito de todos e dever do Estado (art. 205 da CF), devendo, pela essencialidade do seu objeto, ser prestada, acima de tudo, de forma eficiente, não podendo o Poder Público se eximir desta obrigação sob o pretexto de indisponibilidade orçamentária. (TJSC, Ap. Cív. n. 2007.036323-3) (TJSC, Apelação Cível n. 2009.024320-5, j. 26-07-2011 - grifei)[17].
Avançando um pouco mais, em um outro caso prático, percebemos que não pode o Poder Público alegar a discricionaridade do ato administrativo a fim de superlotar salas, não prevalecendo tal argumento, pois os direitos fundamentais dos alunos prevalecem, vejamos:
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. APELAÇÃO CÍVEL E REEXAME NECESSÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DEMANDA AJUIZADA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA COMPELIR O MUNICÍPIO DE SÃO MIGUEL DO OESTE A RESPEITAR A METRAGEM QUADRADA MÍNIMA POR ALUNO EM SALA DE AULA NOS TERMOS DO ART. 67, INCISO VI, DA LEI COMPLEMENTAR ESTADUAL N. 170/98 E O NÚMERO DE CRIANÇAS POR PROFESSOR E AUXILIARES PREVISTO NA RESOLUÇÃO N. 91/99 DO CONSELHO ESTADUAL DE EDUCAÇÃO DE SANTA CATARINA. DESCUMPRIMENTO DA LEGISLAÇÃO PELO ENTE MUNICIPAL APONTADO POR MEIO DE LAUDO PERICIAL. AUSÊNCIA DE COISA JULGADA. INOCORRÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. EXCEPCIONALIDADE DA MEDIDA QUE AUTORIZA A INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO. DIREITOS FUNDAMENTAIS QUE NÃO SE SUBMETEM À DISCRICIONARIEDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. DIREITO À EDUCAÇÃO QUE DEVE SER ASSEGURADO PELO ESTADO COM ABSOLUTA PRIORIDADE. INTELIGÊNCIA DO ART. 208, IV, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DESTA CORTE DE JUSTIÇA. OBRIGAÇÃO DO MUNICÍPIO DE PROPORCIONAR AO ENSINO INFANTIL ESPAÇOS QUE RESPEITEM OS PARÂMETROS DE 1,3M2 POR ALUNO E 2,5M2 POR PROFESSOR, EXCLUÍDAS AS ÁREAS DE CIRCULAÇÃO INTERNA E AS OCUPADAS POR EQUIPAMENTOS DIDÁTICOS BEM COMO REFORMULAR A DISTRIBUIÇÃO DE ALUNOS NAS SALAS DE AULA DA EDUCAÇÃO INFANTIL, OBSERVANDO OS CRITÉRIOS LEGAIS E OBEDECENDO AOS LIMITES DE NÚMERO DE ALUNOS POR SALA DE AULA E À PROPORÇÃO ALUNOS/PROFESSORES E AUXILIARES. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA MANTIDA. RECURSO E REEXAME NECESSÁRIO CONHECIDOS E DESPROVIDOS. (TJSC, Apelação / Remessa Necessária n. 0900186-21.2018.8.24.0067, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Jaime Ramos, Terceira Câmara de Direito Público, j. 28-09-2021 - grifei)[18].
Portanto não há dúvidas que a educação de qualidade ressaltada na Constituição depende da não lotação das salas de aulas, não havendo desculpas inerentes à carência orçamentária, falta de previsão do gasto ou discricionariedade do gestor público.
Avançando o tema, mais precisamente em alguns artigos acadêmicos recentes, notamos uma preocupação em inserir na educação os conceitos e promoções dos direitos humanos, do direito à igualdade, do respeito e do direito à liberdade, vejamos:
Tal realidade implica, dentre outras constatações, que deverá ocorrer no contexto escolar a educação para a igualdade e liberdade com respeito aos direitos humanos para todos, inclusive para os grupos e indivíduos vulneráveis porque tendentes ao maior risco de discriminação, exclusão e sofrimento econômico, cultural e social. (MAXIMINO LELLIS, 2023, p. 121)[19].
No entanto, ao se promover a superlotação, evidentemente que o aluno, principalmente os extremamente vulneráveis, assistem a um descaso diário dos seus direitos mínimos, logo, pergunta-se: como esse cidadão que diariamente vê os seus direitos básicos rasgados pelo Estado pode desenvolver um pensamento crítico, inclusivo e harmônico com os ideais acima listados? Evidentemente que tal tarefa é árdua e quase impossível, ora já se cria uma noção prática de desigualdade e descaso nessa criança.
Outro ponto que se traz à baila é que, ao se literalmente empurrar os alunos e educadores às salas lotadas, não estamos respeitando a integridade física e moral dessas pessoas. Evidentemente que os alunos merecem respeito porque são crianças e estão em fase de desenvolvimento. Já os professores igualmente devem ser respeitados porque são profissionais da educação e que somente desejam exercer o digníssimo ofício do magistério com condições minimamente dignas (art. 1º, III da Constituição).
Não faz sentido negar o respeito à dignidade dos alunos e dos professores, pelo contrário, a solução para essa celeuma é urgente, visto que “Não é demais ressaltar que todos os seres humanos merecem ser tratados com dignidade e respeito” (PINHO, 2000, p. 74)[20] ainda mais os nossos jovens e professores.
E que não venha o gestor público alegar consentimento dessas pessoas à situação na qual foram literalmente jogadas, ou eventual renúncia às melhores condições, visto que “o art. 11 do Código Civil brasileiro reconhece aos direitos da personalidade, em regra, os caracteres de irrenunciabilidade e intransmissibilidade” (ZOGHBI, 2021, p. 75)[21].
Igualmente não se ignora que é direito do aluno PCD o “atendimento educacional especializado” (LÉPORE et al, 2023, p. 337)[22], ao se submeter um PCD à superlotação, além das violações aqui apontadas, ferido está o artigo 208, III da Constituição.
Diante do exposto, conclui-se que a superlotação cria inúmeras violações constitucionais, seja na qualidade do ensino, no acesso/permanência à escola, fere os direitos personalíssimos dos alunos, não atende à promoção da dignidade humana (art. 1º, III da Constituição) e promove discriminação, sendo um verdadeiro estado de coisas inconstitucionais, tendo o Ministério Público legitimidade para requerer o fim desses abusos e eventual indenização aos menores, por ser direito inegociável.
4. A negativa de novas matrículas não é uma solução.
Alguns podem até pensar que a negativa de matrícula diante da ausência do espaço físico é a saída mais coerente e adequada, no entanto, em que pese tal pensamento, equivoca-se quem assim conclui.
Primeiramente temos que o Supremo Tribunal Federal já decidiu em Repercussão Geral (Tema 548) que é dever do Estado garantir vaga aos estudantes em creches, pré-escolas, ensino fundamental e médio, vejamos:
1. A educação básica em todas as suas fases - educação infantil, ensino fundamental e ensino médio - constitui direito fundamental de todas as crianças e jovens, assegurado por normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade direta e imediata.
2. A educação infantil compreende creche (de zero a 3 anos) e a pré-escola (de 4 a 5 anos). Sua oferta pelo Poder Público pode ser exigida individualmente, como no caso examinado neste processo.
3. O Poder Público tem o dever jurídico de dar efetividade integral às normas constitucionais sobre acesso à educação básica. (STF, Tema 548, Leading Case: RE 1008166, Relator: Luiz Fux - grifei)[23].
Portanto, considerando a aplicação direta e imediata das normas constitucionais que regem o acesso à educação, não pode o Poder Público negar uma matrícula a um jovem ou a uma criança.
Como se não bastasse a Suprema Corte, deve ser citado um artigo da Promotora de Justiça Hirmínia Dorigan de Matos Diniz, que é cristalina em reconhecer a responsabilidade civil do Estado diante da negativa de vaga, inclusive destacando o direito à indenização por danos morais, indenização essa que concordamos:
Do que precede, define-se pelo reconhecimento da responsabilidade civil do Estado, inclusive por danos morais, individuais e coletivos, decorrente da insuficiência da oferta da educação obrigatória, consubstanciada na negativa de acesso ao sistema público de ensino, o que poderá ser tutelado, no campo das tutelas difusas, pelos legitimados para a ação civil pública, dentre os quais se destaca o Ministério Público; como também no plano individual, diretamente pelo interessado. (DINIZ, 2017, p. 5)[24].
Em razão do exposto não há dúvidas de que a negativa de matrícula mais gerará um novo problema do que uma solução, concordamos amplamente com a conclusão da Promotora e do STF, a criança tem o direito à matrícula, a sua negativa gera o dever de indenizar, tendo os pais ou o Ministério Público a legitimidade para representar o menor e requerer os danos extrapatrimoniais presumidos em função da negativa de matrícula.
5. A solução é a ampliação das salas ou a construção de novas unidades.
Considerando que o Supremo corretamente entende que não é possível negar vagas aos menores nas escolas, sendo um direito constitucional dos alunos e das suas mães a regular matrícula, não restam dúvidas que a negativa de matrícula é a criação de um novo problema, não uma solução.
O correto é a construção de novas unidades, ou, se possível, a ampliação, desde que respeitados os limites mínimos de espaço em metros quadros e alunos por sala.
Felizmente, como visto nos parágrafos acima, não prosperam os argumentos de ausência de previsão orçamentária, devendo o direito à educação digna e com qualidade prevalecer (TJ-SC, Apelação Cível n. 2014.094041-5).
A previsão orçamentária também não pode sobrepor à dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III da Constituição), portanto, não prevalece tal negativa.
6. Da legitimidade do Ministério Público para promover a medida judicial a fim de cessar a superlotação em estabelecimentos escolares.
Como é cediço, compete ao Ilustríssimo Ministério Público a proteção dos interesses individuais indisponíveis, difusos e coletivos, tal conclusão encontra-se calcada na alínea “c”, do inciso VII, do artigo 6º da Lei Complementar nº 75/1993.
A mesma Lei Complementar, no seu artigo 6º, inciso VII, alínea “a” igualmente consagra ao Ministério Pública a nobre missão de proteção dos direitos constitucionais.
Como amplamente foi dito nesse artigo, a superlotação de salas viola fortemente a garantia de igualdade de acesso e permanência no ambiente escolar, também rasga a Carta Maior no tocante ao ensino público com qualidade.
Vamos além, o Ministério Público não só pode exigir que cesse o estado de superlotação, como igualmente pode requerer indenizações por danos morais coletivos e individuais para os alunos afetados, liquidando um valor certo a ser condenado o Poder Público responsável, que responde nos termos art. 37, §6º, da Constituição Federal pelas consequências da superlotação inconstitucional não cessada por ele.
Além do mais, urge esclarecer que a educação é um direito constitucional e humano, que impacta crianças e adolescentes (menores), que devem contar com o apoio e proteção do Ministério Público, vejamos:
a Educação é um Direito Humano reconhecido pelo artigo 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10/12/1948, pelo artigo 1º, inciso III, da Carta Maior, e pelo Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, sendo também um direito fundamental assegurado à criança e ao adolescente, com prioridade absoluta, conforme dispõem a Constituição Federal e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96), incumbindo ao Estado assegurar à criança e ao adolescente o acesso ao ensino de qualidade e zelar junto aos pais pela frequência à escola.
(...)
(...) cuidando-se de tema ligado à educação, amparada constitucionalmente como dever do Estado e obrigação de todos (CF, art. 205), está o Ministério Público investido da capacidade postulatória patente a legitimidade 'ad causam', quando o bem que se busca resguardar se insere na órbita dos interesses coletivos, em segmento de extrema delicadeza e de conteúdo social tal que, acima de tudo, recomenda-se o abrigo estatal (RE 163.231, Plenário, Rel. Maurício Corrêa, DJ 29.06.01). (MP/MA, 2014)[25].
Diante do exposto, não há dúvidas, o Ministério Público tem a legitimidade para requerer o que for de direito para os menores e também fazer cumprir a Constituição, solicitando reparações morais coletivas e individuais.
7. Conclusão.
Diante do exposto não temos dúvidas de que a superlotação das salas de aula, ou seja, o não cumprimento dos limites existentes na legislação é um ato inconstitucional e que afeta diretamente a qualidade do ensino, violando a literalidade do artigo 206, VII da Constituição e o artigo 4º, IX a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.394 de 20 de dezembro de 1996).
Caso não haja lei específica no Estado e no Município delimitando um espaço mínimo, defende o presente escrito que os critérios apontados pela Doutora em Educação Olga Freitas prevalecem, ou seja, “deve prever o espaço mínimo de mobilidade e circulação de 1m a 1,5m para o estudante, e de 2m a 2,5m de área de circulação livre para o(a) professor(a)”(SINPRO-DF, 2024)[26].
Contudo, ainda que exista lei estadual ou municipal que não atenda aos critérios mínimos acima explicados pela Doutora Olga Freitas, essa lei, considerando a não discricionariedade invocada na Apelação/Remessa Necessária n. 0900186-21.2018.8.24.0067 do TJ-SC, torna-se inconstitucional, pois o direito fundamental aqui estudado não pode sofrer limitações dessa natureza.
Temos também uma clara afronta ao artigo 206, I, visto que não os alunos atingidos pela superlotação jamais possuem a igualdade de acesso à educação e permanência, pois conforme destacou Renata Marques de Almeida Silva, o respeito da escola pelas caraterísticas específicas dos alunos está no metro quadrado (m2).
No mais, como destacou a Sindireceita, somente no primeiro trimestre de 2024, “a arrecadação bateu outro recorde e teve alta real de 8,36%, alcançando R$ 657 bilhões.”, sendo certo que o MEC, conforme publicação própria, repassou 16,3 bilhões para as escolas, o que coloca em dúvidas a não existência de fundos, devendo o problema ser resolvido, pois a Constituição é de 1988, a LDB é de 1996 e a superlotação é atual.
O presente trabalho não ignora que alguns Municípios de fato são deficitários, porém isso é mais uma questão política, os alunos não devem ficar reféns de políticos fracos e que não conseguem angariar fundos, visto que no ordenamento jurídico pátrio indiscutivelmente percebemos que a educação recebe recursos dos impostos comuns (ICMS, IPVA, ITR, etc) e também de contribuições específicas, como é o caso do Salário-Educação, esse último é uma renda adicional nos termos do § 5º do artigo 212 e da doutrina de Antônio Augusto Dias Júnior e representou um repasse em 2023 aos Estados e Municípios de R$ 18.478.495.512,59 (Dezoito bilhões, quatrocentos e setenta e oito milhões, quatrocentos e noventa e cinco mil, quinhentos e doze reais e cinquenta e nove centavos) conforme reportou o FNDE.
Em que pese a farta arrecadação tributária acima dita e comprovada, por mais que um ou outro Município alegue ser deficitário, fato é que não prospera o argumento de falta de receita, concluímos assim com fulcro na Apelação Cível n. 2013.021636-6 do TJ-SC, uma vez que a educação é um dever do Estado (art. 205 da Constituição), não podendo existir o não cumprimento do direito à educação com qualidade com base na ausência de previsão orçamentária.
Também defendemos que o Ministério Público tem competência e legitimidade para fiscalizar e exigir o fim da superlotação, sabemos que os professores e diretores muitas vezes até firmam requerimentos para uma solução, mas não obtém respostas, contudo, nada impede que o Ministério Público busque a solução do problema e a responsabilização do gestor omisso frente aos inúmeros pedidos e relatórios entregues pelos professores e diretores.
Conclui o presente escrito que o Município ou Estado que tratam a sala de aula como “um depósito de pessoas.” (ARAÚJO; QUEIIROZ, 2023, p. 99), fere os direitos personalíssimos dos alunos à dignidade humana, integridade física e psicológica, tais afrontas levam à obrigação de indenizar pelos danos extrapatrimoniais, tendo os responsáveis ou o Ministério Público a legitimidade para requerer a indenização aos menores. Quanto aos alunos portadores de necessidades especiais, esses últimos, o dano moral é presumido.
Igualmente violados estão os direitos à integridade física e psicológica dos professores, que poderão sim reclamar junto aos sindicatos e na seara trabalhista, pedindo a reparação psicológica, moral e material advindas diretamente da superlotação, que, no nosso entender, viola os direitos personalíssimo do profissional, podendo realmente leva-lo ao esgotamento e ao desenvolvimento de patologias severas, devendo ser indenizado.
Ressalta o presente escrito que negar novas matrículas está longe de ser uma solução, o Supremo Tribunal Federal já garantiu aos menores e às mães o direito à matrícula nas escolas, creches e pré-escolas, sendo um dever do Estado a educação (art. 205, da Constituição).
Logo o Poder Público deve iniciar os trabalhos de ampliação e/ou construção de novas salas e/ou escolas, ainda que não previstos no orçamento, como bem destacado na Apelação Cível n. 2013.021636-6 do TJ-SC, pois o direito à educação é inegociável e urgente, as crianças e os professores não podem pagar esse preço perverso e desumano.