Função social da propriedade, invasões e ocupação

24/05/2024 às 09:15
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Em meio a tantos episódios de invasões, tem prevalecido uma narrativa que motiva estes movimentos, a premissa de que invasões são feitas – chamadas por eles de ocupações – em propriedades que não cumprem a função social. Afinal, o que é a função social da propriedade?


É um conceito subjetivo ou tem critérios objetivos? Os dois. Em seu conceito, a função social da propriedade é um princípio previsto na Constituição Federal de 1988, que vem de uma legislação ainda mais antiga, o Estatuto da Terra, de 1964, que determina que a propriedade deve cumprir uma função social, ou seja, não pode ser utilizada de forma que prejudique a coletividade ou a dignidade da pessoa humana.


Com isso, o proprietário não tem o direito de fazer o que quiser com sua propriedade, pois deve respeitar leis que garantem o cumprimento da função social e do bem-estar da sociedade. Em outras palavras, um conceito que engloba a utilização adequada da terra, a preservação do meio ambiente, o desenvolvimento econômico e social da região onde está localizada a propriedade, garantia do acesso à moradia e observância dos direitos trabalhistas.


Possui critérios, objetivos e competência exclusiva do Poder Público, que verifica o cumprimento da função social de cada propriedade por meio de vistoria e abertura de processos administrativos, como ocorre no INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.


O INCRA, por sua vez, utiliza diversos critérios para avaliar se um imóvel rural está cumprindo sua função social, solicitando documentos e informações do proprietário e dos trabalhadores, entre outras medidas, para que, depois de uma instrução processual, oferecida oportunidade de defesa e contraditório, se constatadas irregularidades, podem ser aplicadas sanções e medidas como a desapropriação para fins de reforma agrária. Os critérios serão explicados logo mais.


O principal documento de verificação da função social da propriedade é o Certificado de Cadastro de Imóvel Rural (CCIR), um documento emitido pelo INCRA, com informações sobre a área, a localização e a finalidade do imóvel rural, pressupondo regularidade e cumprimento de obrigações legais pelo proprietário.


Além do CCIR, outros documentos compõem o conjunto de provas para análise e definição sobre o cumprimento da “função social da propriedade”, como as licenças ambientais, comprovantes de pagamentos de impostos e taxas, relatórios de vistoria e laudos técnicos, dentre muitos outros.


E o principal, no CCIR, são medidos o grau de eficiência e de utilização do imóvel rural, indicadores que medem o desempenho de um imóvel rural em relação à sua capacidade produtiva e ao uso da área disponível. Se uma propriedade rural não está sendo utilizada de forma eficiente e produtiva, pode não estar cumprindo sua função social.


O grau de eficiência diz respeito à capacidade de produzir de forma produtiva e sustentável, enquanto o grau de utilização se relaciona com a quantidade de área utilizada para a produção. Ou seja, uma propriedade com baixo grau de eficiência e utilização não está gerando emprego, renda e contribuindo para o desenvolvimento da região onde está localizada.


Como são medidos o grau de eficiência e o grau de utilização?


1º. Produtividade: indicador que mede a quantidade de produto gerada por unidade de área, geralmente em quilos, litros ou toneladas por hectare.


2º. Rendimento: indicador que mede a quantidade de produto obtida em relação à quantidade de insumos utilizados na produção, geralmente expresso em percentual.


3º. Área aproveitada: área total da propriedade que está sendo utilizada para a produção, o que não significa que a propriedade está sendo utilizada de forma eficiente, podendo existir áreas improdutivas ou subutilizadas.


4º. Investimento em tecnologia: indicador importante que mede o quanto o proprietário está investindo em inovação e tecnologia para aumentar a produtividade e melhorar a qualidade da produção.


5º. Sustentabilidade: mede a capacidade de produzir de forma sustentável e preservar os recursos naturais, visto por práticas agrícolas sustentáveis, conservação do solo e energias renováveis.


Portanto, é importante reforçar, neste contexto, a presença de várias premissas constitucionais, ou seja, a legalidade (só somos obrigados a fazer ou não fazer algo em virtude de lei), o devido processo legal (só seremos privados de nossa liberdade ou nossos bens mediante um processo), o contraditório (direito de se defender) e ampla defesa (se defender por todos os meios cabíveis).


A Lei Federal nº 8.629/1993, chamada de Lei da Reforma Agrária, no seu artigo 2º, fala que a propriedade rural que não cumprir a função social é passível de desapropriação, informação que só se completa com a leitura do parágrafo primeiro, que diz o seguinte: “Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social. [...]”.


Enfim, a função social é um conceito subjetivo e possui critérios objetivos, como também órgãos públicos competentes para verificação, motivo pelo qual nunca será verificada de maneira legítima por movimentos sociais que invadem propriedades sob esta falsa premissa.


Sobre as chamadas ocupações, segundo apoiadores do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-erra, divulgado em suas próprias mídias, “os sem-terra não invadem, ocupam terras sem função social”.

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Sendo assim, considerando tudo que foi explicado, as chamadas ocupações de movimentos sociais, para fazer cumprir função social da propriedade, são uma astuciosa e falsa narrativa que têm feito apologia à prática de crimes como o exercício arbitrário das próprias razões (artigo 345, Código Penal) e invasão de propriedade (artigos 150, 161, 202, Código Penal), servindo apenas para estimular a violência e promover desordem nas áreas rurais, prejudicando a vida de muitas famílias, uma suposta “luta” que não possui qualquer respaldo jurídico.


Também vale trazer aqui, um entendimento bem recente do tribunal de justiça de Rondônia, relatado pelo desembargador Rowilson Teixeira, julgado em 13 de abril de 2022, partindo do entendimento de que “a Reforma Agrária deve ser realizada com eficiência pelos órgãos governamentais executivos responsáveis pela distribuição das terras que não cumprem a função social, havendo um processo legal para tanto, a exigir o cumprimento das formas e dos requisitos previstos nas Leis e na Constituição da República (art. 5º, incisos XXII, XXIII, XXIV; art. 184, CR)”.


O desembargador relator também entende que os Movimentos Sociais que visam a Reforma Agrária têm o direito de manifestação contra a omissão do Poder Executivo, mas há meios e modos jurídicos para tanto, devendo-se respeitar os Poderes Constituídos, bem como os direitos de terceiros, sem convulsão social, uma vez que, conforme pacificado pela jurisprudência, a ocupação da propriedade privada ou pública é incompatível com a Constituição da República e com o Estado Democrático de Direito.


Portanto, existe na lei uma modalidade de “ocupação” com base em descumprimento de função social? Não. Ocupação é o ato criminoso de invadir e exercer justiça com as próprias mãos, devendo os envolvidos serem punidos.

Sobre o autor
Pedro Puttini Mendes

Advogado, Consultor Jurídico (OAB/MS 16.518, OAB/SC nº 57.644). Professor em Direito Agrário, Ambiental e Imobiliário. Sócio da P&M Advocacia Agrária, Ambiental e Imobiliária (OAB/MS nº 741). Comentarista de Direito Agrário para o Canal Rural. Colunista de direito aplicado ao agronegócio para a Scot Consultoria. Organizador e coautor de livros em direito agrário, ambiental e aplicado ao agronegócio. Membro fundador da União Brasileira da Advocacia Ambiental (UBAA), Membro Consultivo da Comissão de Direito Ambiental e da Comissão de Direito Agrário e do Agronegócio da OAB/SC. Foi Presidente da Comissão de Assuntos Agrários e Agronegócio da OAB/MS e membro da Comissão do Meio Ambiente da OAB/MS entre 2013/2015. Doutorando em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Socioambiental pela Universidade do Estado de Santa Catarina, Mestre em Desenvolvimento Local (2019) e Graduado em Direito (2008) pela Universidade Católica Dom Bosco. Pós-graduação em Direito Civil e Processo Civil pela Anhanguera (2011). Cursos de Extensão em Direito Agrário, Licenciamento Ambiental e Gestão Rural. PRODUÇÃO BIBLIOGRÁFICA: "Pantanal Sul-Mato-Grossense, legislação e desenvolvimento local" (Editora Dialética, 2021), "Agronegócio: direito e a interdisciplinaridade do setor" (Editora Thoth, 2019, 2ª ed / Editora Contemplar, 2018 1ª ed) e "O direito agrário nos 30 anos da Constituição de 1988" (Editora Thoth, 2018). Livros em coautoria: "Direito Ambiental e os 30 anos da Constituição de 1988" (editora Thoth, 2018); "Direito Aplicado ao Agronegócio: uma abordagem multidisciplinar" (Editora Thoth, 2018); "Constituição Estadual de Mato Grosso do Sul - explicada e comentada" (Editora do Senado, 2017).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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