O DIFERIMENTO NO ÂMBITO DO ICMS – CONSIDERAÇÕES GERAIS E CONCEITUAIS QUANTO AO INSTITUTO1
THE DEFERRAL IN THE SCOPE OF ICMS - GENERAL AND CONCEPTUAL CONSIDERATIONS AS TO THE INSTITUTE
José Julberto Meira Junior 2
Resumo: O presente artigo faz uma análise objetiva do diferimento no contexto do ICMS, trazendo considerações de caráter conceitual e geral sobre o mesmo, bem como os seus desdobramentos no contexto do imposto. A análise parte do questionamento sobre o enquadramento do instituto como um incentivo ou benefício fiscal, que represente consequência no contexto da subvenção de investimentos a que alude o artigo 10 da Lei Complementar 160/2017 e o Convênio ICMS 190/2017, ou, por outro lado, mera técnica de postergação de pagamento de tributo.
Summary: This article makes an objective analysis of deferral in the context of ICMS, bringing conceptual and general considerations about it, as well as its consequences in the context of tax. The analysis starts from the question about the classification of the institute as an incentive or tax benefit, which represents a consequence in the context of the investment subsidy referred to in article 10 of Complementary Law 160/2017 and the ICMS Agreement 190/2017, or, on the other hand, hand, a mere technique for postponing tax payment.
Palavras-chave: Diferimento. Postergação. Substituição Tributária. Incentivo. Benefício Fiscal.
Key words: Deferral. Postponement. Tax Replacement. Incentive. Tax Benefit.
SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES INICIAIS ACERCA DA PROBLEMÁTICA
ASPECTOS CONCEITUAIS ÚTEIS
CONSIDERAÇÕES DOUTRINÁRIAS ACERCA DO DIFERIMENTO
POSIÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA SOBRE O DIFERIMENTO
CONSIDERAÇÕES FINAIS
CONSIDERAÇÕES INICIAIS ACERCA DA PROBLEMÁTICA
O tema diferimento sempre rendeu muita discussão no contexto tributário, e ganhou maior relevância, em decorrência da Lei Complementar 160/20173, que veio a estabelecer limitações sobre incentivos e benefícios fiscais ou financeiro-fiscais no âmbito do ICMS, que não tiveram sua origem no âmbito do CONFAZ, e, em total desacordo com o disposto na alínea “g” do inciso XII do § 2º do art. 155 da Constituição Federal4,5, e, via de consequência, da Lei Complementar 24/19756, permitindo, ao longo dos anos, o crescimento da conhecida “guerra fiscal”, como observado nas reflexões, nem sempre convergentes, de Paulo de Barros Carvalho e Ives Gandra da Silva Martins7, em que, cada um ao seu modo, apresentaram ricos fundamentos para sua origem e compararam inúmeros fatores a serem considerados para tal situação, como o caso de edição constante de normas isoladas por parte das UFs e a importância do papel dos Convênios ICMS.
A referida LC 160/2017, estabeleceu regramento e condições quanto aos atos concessivos anteriores, nos termos estabelecidos pelo Convênio ICMS 190/20178, fixando prazos9 quanto à publicação, registro e depósito10 dos mesmos junto ao CONFAZ11, com objetivo claro de impor limites a retro comentada guerra fiscal, uma vez que os benefícios e incentivos fiscais não prescindem de Convênios12.
Ressalte-se, ainda, que a LC 160/2017, antes de se adentrar ao tema proposto originalmente, trouxe consigo um ingrediente adicional, que ganhou muita relevância por conta da derrubada do veto13 do Congresso Nacional aos artigos 9º14 e 1015 da respectiva lei complementar que considerou os mesmos, subvenção para investimento, e, como tal, passíveis de redução do pagamento final do IRPJ e da Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido nos casos dos incentivos e aos benefícios fiscais ou financeiro-fiscais de ICMS, que foram, inclusive, elencados pelo § 4º da Cláusula primeira do Convênio ICMS 190/2017, que permitiu, à alguns, de forma apressada, a entender o diferimento como tal, como se qualquer dilação de prazo de pagamento do imposto, enfim, fosse considerado um benefício de forma generalizada, quando, na realidade, tal conclusão, sob nossa ótica, se adotada uma análise sistemática do referido dispositivo que assim dispõe:
CONVÊNIO ICMS 190/17, DE 15 DE DEZEMBRO DE 2017
...
Cláusula primeira Este convênio dispõe sobre a remissão dos créditos tributários, constituídos ou não, decorrentes das isenções, dos incentivos e dos benefícios fiscais ou financeiro-fiscais, relativos ao Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação - ICMS, instituídos, por legislação estadual ou distrital publicada até 8 de agosto de 2017, em desacordo com o disposto na alínea “g” do inciso XII do § 2º do art. 155 da Constituição Federal, bem como sobre a reinstituição dessas isenções, incentivos e benefícios fiscais ou financeiro-fiscais, observado o contido na Lei Complementar nº 160, de 7 de agosto de 2017, e neste convênio.
§ 1º Para os efeitos deste convênio, as referências a “benefícios fiscais” consideram-se relativas a “isenções, incentivos e benefícios fiscais ou financeiro-fiscais, relativos ao Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação - ICMS”.
...
§ 4º Para os fins do disposto neste convênio, os benefícios fiscais concedidos para fruição total ou parcial, compreendem as seguintes espécies:
I - isenção;
II - redução da base de cálculo;
III - manutenção de crédito;
IV - devolução do imposto;
V - crédito outorgado ou crédito presumido;
VI - dedução de imposto apurado;
VII - dispensa do pagamento;
VIII - dilação do prazo para pagamento do imposto, inclusive o devido por substituição tributária, em prazo superior ao estabelecido no Convênio ICM 38/88, de 11 de outubro de 1988, e em outros acordos celebrados no âmbito do CONFAZ;
IX - antecipação do prazo para apropriação do crédito do ICMS correspondente à entrada de mercadoria ou bem e ao uso de serviço previstos nos arts. 20 e 33 da Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996;
X - financiamento do imposto;
XI - crédito para investimento;
XII - remissão;
XIII - anistia;
XIV - moratória;
XV - transação;
XVI - parcelamento em prazo superior ao estabelecido no Convênio ICM 24/75, de 5 de novembro de 1975, e em outros acordos celebrados no âmbito do CONFAZ;
XVII - outro benefício ou incentivo, sob qualquer forma, condição ou denominação, do qual resulte, direta ou indiretamente, a exoneração, dispensa, redução, eliminação, total ou parcial, do ônus do imposto devido na respectiva operação ou prestação, mesmo que o cumprimento da obrigação vincule-se à realização de operação ou prestação posterior ou, ainda, a qualquer outro evento futuro.
...” (Grifos nossos)
Observe-se no caso acima que, como regra, benefícios fiscais, isenções, incentivos ou financeiro-fiscais, relativos ao ICMS, comportam, em algum momento, dispensa efetiva do pagamento do tributo ou de parte dele, sendo que os casos dos incisos VIII e XVI, especificamente estabelecidos por Convênios, o que, de imediato, não é o caso do diferimento, como regra.
Neste sentido, observe-se que o Convênio ICM 24/7516, apesar de prever parcelamento, estabeleceu “condições gerais para concessão de moratória, parcelamento, ampliação de prazo de pagamento, remissão, anistia e transação” do imposto estadual, e, que, ao prever “remissão, anistia e transição” em alguns casos, recairia na regra estabelecida no inciso XVII17 do mesmo parágrafo. Da mesma forma o caso do inciso VIII, que apenas estabeleceu limites de prazo para parcelamentos e determinou a necessidade de autorização do CONFAZ neste sentido.
Ou seja, os únicos instantes em que se trata de algo parecido com o diferimento no referido Convênio ICMS 190/2017 (que trata, à luz da LC 160/2017), assemelhando-se com incentivos ou benefícios fiscais, envolvem, em algum momento, necessariamente, a dispensa total ou parcial do ICMS, o que equivale a dizer que, há situações, excepcionais, em que o diferimento poderá, circunstancialmente, confundir-se com aqueles, mas apenas quando, e, se, representarem dispensa total ou parcial do imposto.18
Não bastasse essa percepção que necessita de maior aprofundamento pelos exegetas, alguns casos recentes, envolvendo o diferimento vem gerando discussão quanto ao fato de se enquadrarem no contexto dos incentivos e benefícios fiscais, como se vê, no âmbito do STJ, no caso do RESP nº 1.222.547/RS, em que tal pretensão não encontrou respaldo, apesar da nítida confusão que se faz com o contexto de benefício ou incentivo do instrumento ora em análise como se vê abaixo19:
RECURSO ESPECIAL Nº 1.222.547 - RS (2010/0213489-0)
RELATORA: MINISTRA REGINA HELENA COSTA
...
EMENTA: PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 1973. APLICABILIDADE. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC/1973. NÃO OCORRÊNCIA. IRPJ. CSLL. BASE DE CÁLCULO. INCENTIVO FISCAL. REGIME ESPECIAL DE PAGAMENTO DO ICMS. PRODEC. PRETENSÃO DE CARACTERIZAÇÃO COMO RENDA OU LUCRO. PACTO FEDERATIVO. IMPOSSIBILIDADE.
...
III - Configura ilegalidade exigir, das empresas submetidas ao regime especial de pagamento do Programa de Desenvolvimento da Empresa Catarinense - PRODEC20, a integração, à base de cálculo do IRPJ e da CSLL, do montante obtido com o incentivo fiscal outorgado pelo Estado de Santa Catarina, qual seja, o "[...] pagamento diferido do ICMS, relativo a 60% sobre o incremento resultante pelo estabelecimento da empresa naquele Estado-membro, e que será adimplido no 36° mês, sem correção monetária, sendo devidos apenas juros simples anuais de 4% (quatro por cento) [...]
...
IX - A concessão de incentivo por ente federado, observados os requisitos legais, configura instrumento legítimo de política fiscal para materialização da autonomia consagrada pelo modelo federativo. Embora represente renúncia a parcela da arrecadação, pretende-se, dessa forma, facilitar o atendimento a um plexo de interesses estratégicos para a unidade federativa, associados às prioridades e às necessidades locais coletivas. (Grifos nossos)
Como se pode observar a expressão “incentivo fiscal” tem sido usada de forma generalizada tanto pelas normas, quanto pelos julgadores, o que justificou os naturais embargos de divergência, no mesmo STJ (ERESP nº 1.222.54721), sob relatoria do Ministro Francisco Falcão, que assim ponderou, ipsis litteris:
A embargante alega que a Primeira Turma, ao decidir que o benefício fiscal decorrente do pagamento diferido do ICMS, concedido a empresas que aderiram ao Programa de Desenvolvimento da Empresa Catarinense - PRODEC, não se incorpora ao patrimônio do contribuinte e, por isso, não constitui base imponível do IRPJ ou da CSLL, divergiu do entendimento da Segunda Turma segundo o qual, à exceção do crédito presumido do ICMS, aos demais casos de benefícios fiscais relativos a esse tributo se aplica o disposto no art. 10, da LC nº 160/2017 e no art. 30, da Lei nº 12.973/2014. (Grifos nossos)
Em que pese os argumentos do embargante e o precedente usado para justificar o recurso, tratar da figura de “crédito presumido” (outra situação tributária), o pedido foi acolhido, aguardando as contrarrazões e o julgamento efetivo, que, segundo nossa ótica, não deverão mudar o resultado final apontado pela Ministra Regina Helena Costa.
Nosso raciocínio, como se verá adiante, parte de outras premissas, inclusive jurisprudenciais e doutrinárias, para justificar que o diferimento, enfim, como regra, não se confunde com incentivo ou benefício fiscal como anteriormente apresentado, sendo o objetivo do presente estudo desmitificar essa conceituação “por mero arrastamento”.
Todavia, em homenagem à pesquisa científica, que nos impõe o necessário respeito aos fatos históricos, nunca é demais lembrar que, à despeito de nosso entendimento preambular quanto à natureza jurídica do diferimento como uma “técnica de postergação do pagamento do tributo”, há dissonância na doutrina pátria quanto a isso, inclusive, como nos lembram Gustavo da Silva Ferreira e Marley Lima de Oliveira22, ao tratarem do diferimento na legislação sul-mato-grossense23 e sua natureza jurídica, há, pelo menos, um precedente histórico (do que se conhece até o instante) a ser considerado a partir do Convênio ICM 01/7524, que traz em sua ementa25 como ideia central do mesmo, a convalidação de benefícios fiscais “na forma do § 2º do art. 12 da Lei Complementar nº 24, de 07/01/75”, que textualmente assim dispõe:
Art. 12 - São mantidos os benefícios fiscais decorrentes de convênios regionais e nacionais vigentes à data desta Lei, até que revogados ou alterados por outro.
...
§ 2º - Quaisquer outros benefícios fiscais concedidos pela legislação estadual considerar-se-ão revogados se não forem convalidados pelo primeiro convênio que se realizar na forma desta Lei, ressalvados os concedidos por prazo certo ou em função de determinadas condições que já tenham sido incorporadas ao patrimônio jurídico de contribuinte. O prazo para a celebração deste convênio será de 90 (noventa) dias a contar da data da publicação desta Lei.
...
Quanto ao Convênio ICM 01/75 (que inaugurou oficialmente as ações do colegiado26 formado pelos Secretários de Fazenda, Finanças ou Tributação dos Estados e do Distrito Federal, a partir do Convênio ICM 08/7527 conhecido como CONFAZ28, possuindo funções29 regimentais30), é possível detectar-se no seu revogado inciso III, “a” da sua cláusula primeira31 ter havido a convalidação do diferimento e da suspensão por não configurarem débito do imposto, mas em dispositivo distinto do que tratava dos benefícios fiscais e das exonerações, o que não permite, s.m.j., trata-lo no sentido estrito, como um benefício ou incentivo fiscal, pois atende interesses mútuos do Fisco e do contribuinte de forma a, por força da repercussão tributária (modalidade repasse), retirar o encargo tributário em etapa intermediária e favorecer maior agregação de valor sem ônus tributário, barateando o processo e gerando maior riqueza em etapa vindoura, conhecida como encerramento da fase de diferimento. Isto varia em cada UF, pois há também casos até mesmo de diferimento parcial como vivenciado no Paraná, que visa equalizar a carga interna do mercado atacadista com operações interestaduais, favorecendo fornecedores internos e permitindo que o ICMS seja arrecadado no Estado.
Assim, tratar-se o diferimento como instrumento que privilegie apenas o contribuinte, é desconhecer os efeitos positivos que isso implica no contexto futuro da arrecadação da UF, sendo um instrumento extremante útil de política fiscal que será, a nosso ver, no máximo, considerado um benefício no sentido lato senso, e momentâneo (frise-se), que atende tanto ao contribuinte como ao órgão tributante, representando mera dilação de pagamento do imposto.
Considerá-lo como um artifício que favoreça ao contribuinte apenas, é desconhecer a extrafiscalidade, que mesmo os tributos essencialmente de natureza arrecadatória (Fiscal por assim dizer), como o ICMS possuem, ficando evidente que diferir não é uma benesse, mas ação interventiva estatal na atividade econômica a fim de incentivar comportamento agregador de preço e valor aos produtos e serviços como observava Eduardo Domingos Botallo32, no IPI (que possui algumas semelhanças nítidas com o ICMS por se revestirem, ambos, em impostos de consumo) segundo o qual, “quando adequadamente utilizado, o tributo, deixando de cumprir funções apenas financeiras, mostra-se plenamente capaz de estimular a consecução das metas para as quais se volta a “ordem econômica” nos termos do art. 170 da Constituição.”
Nesta mesma conjuntura, aos que possam questionar o aspecto extrafiscal dada ao ICMS, para entender o diferimento como algo diferente de um incentivo fiscal ou benefício fiscal (no sentido estrito), Modesto Carvalhosa33 observa de forma sagaz que:
Os tributos, em regra geral, são utilizados como instrumentos de arrecadação. Dentro do sistema de economia de mercado, eles são, na verdade, os mais importantes meios de que as pessoas políticas dispõem para obter recursos de que necessitam. Esta função arrecadatória é a que se convenciona denominar fiscalidade. Plano paralelo ao fiscalidade é o da extrafiscalidade que consiste no “emprego dos instrumentos tributários com objetivos não fiscais, mas econômicos, ou seja, para finalidades não financeiras, mas regulatórias dos comportamentos sociais em matéria econômica, social e política
Tratar o diferimento como incentivo em sentido estrito, a pretexto da sua inclusão no citado Convênio ICM 01/75, sem uma análise mais cuidadosa da visão macro do tributo, de sua aplicação pontual (visão micro), de sua percepção histórica (já que os institutos foram se consolidando com o passar dos anos) e de uma percepção sistemática que conecta as três primeiras, é abrir mão da visão perceptiva que o todo proporciona.
Nestas circunstâncias, para se entender a influência do Direito Econômico no Direito Tributário em tais movimentos, é sempre importante entender que o diferimento reserva uma contrapartida em momento posterior (que seria o pagamento do tributo em algum instante), fazendo-se jus à frase atribuída ao economista monetarista Milton Friedman (que a utilizou em um dos seus livros) de que “não existe almoço grátis”34, não significando, como regra, haver dispensa definitiva do tributo (evidentemente que se isso acontecer, por outras conjunturas legais estaríamos falando em benefício ou incentivo), mas um mero momento em que o mesmo não será exigido, permitindo-se agregação ao valor do produto (que é uma das características do ICMS), para maior arrecadação futura.
2. ASPECTOS CONCEITUAIS UTEIS
Na esteira dos aspectos que introduziram o tema, e no contexto da celeuma ora trazida, observamos haver, no Congresso Nacional, um projeto de lei complementar (PLP 282/202035) estabelecendo normas para concessão de incentivos fiscais e fiscal-financeiros e de benefícios fiscais no âmbito da União, dos Estados e do Distrito Federal, para aplicação nos Programas de Desenvolvimento Regional, buscando conceituar tais figuras e estabelecer parâmetros36 conceituais (legais) mais precisos.
Ressalte-se que, no contexto proposto, temos que o diferimento envolve uma ação de diferir, adiar, protelar ou até mesmo, segundo o dicionário Michaelis37, envolve uma demora, que, no cenário considerado, diz respeito ao recolhimento do imposto (ICMS), não se confundindo, como veremos mais adiante, na postergação do fato gerador como insistem alguns autores, mas do pagamento do tributo propriamente dito.
De outra forma, diferir, do latim vulgar, “differere” pode significar “mudar para outra data, adiar, procrastinar ou prorrogar”, como também significa “aumentar a duração, demorar, prolongar, protelar”, ou ainda, como veremos adiante, postergar (in casu, o pagamento do ICMS), estando-se muito longe, como regra geral, de significar a dispensa definitiva do recolhimento da obrigação tributária. Nesta mesma linha, Maria Lúcia Levy Malta Santana38 entendeu que diferir significa adiar (transferir para outro dia), demorar (fazer parar, fazer esperar). 39
Ressalte-se que, se tal dispensa definitiva ocorrer - e isso pode eventualmente acontecer, o que diferencia as situações preambulares apresentadas – estaremos, excepcionalmente, dentro de uma situação de incentivo ou benefício fiscal, o que não tem o condão de generalizar o diferimento no contexto de puro favorecimento do contribuinte, pois há interesses também do Estado, que, ao evitar a incidência momentânea, em vista da repercussão tributária, barateia o custo de agregação de valor e obtém, em momento que definir, maior arrecadação em caso de produto de maior valor.
Trata-se, a toda evidência, de recurso de pura discricionariedade, que permite ao Estado, escolher, pelas diversas razões possíveis, o momento ideal de recolhimento do tributo, desde que respeitados os pressupostos de legalidade e constitucionalidade, em linha com a impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, que, considerando a realidade cotidiana, encontram suporte na praticabilidade a que alude Roberto Wagner Lima Nogueira40, que em situação que envolvia o regime do Simples Nacional, já observava que “o direito não pode ignorar a realidade sobre a qual se aplica”.
Ao seu tempo Alfredo Augusto Becker, mostrando ponto de vista diverso, para chegar à mesma conclusão, sustentava que “a regra jurídica somente existe (com natureza jurídica) na medida de sua praticabilidade”41, observando, ainda, que “o direito positivo não é uma realidade metafísica existindo em si e por si; a regra jurídica não é um fim em si mesma, mas um instrumento de convivência social”42.
Em outras palavras, o uso do diferimento representa evidente utilização do princípio da praticabilidade ou praticidade tributária em vista da melhor arrecadação e da criação de mecanismos que favoreçam a mesma, como se refere Tiago Carneiro da Silva43, para quem, tratando de substituição tributária, o mesmo “decorre de uma constatação lógica acerca da necessidade de que o sistema tributário seja funcional, que suas normas sejam efetivamente aplicáveis...”.
Como dito em outra oportunidade44, admitir a praticabilidade tributária como recurso de efetividade para o bem da administração fazendária é de extrema relevância, desde que as regras constitucionais sejam respeitadas, o que é o caso expresso do diferimento no ICMS, possuidor de regras variáveis conforme a UF, mas constituindo-se em instrumento de mera postergação do tributo:
Em outras palavras o sistema tributário brasileiro, em seu contorno amplo e em sua multifacetada complexidade não pode prescindir dessa solução, pois se assim não for, como assevera o autor, “as leis tributárias e a própria Constituição seriam letra morta, sem qualquer finalidade”, sendo que o Direito é construído para habitar a realidade social e não um mundo ideal.
Observando haver espaço legal e constitucional para o manuseio do momento mais adequado à arrecadação do tributo, pode-se falar que diferimento no âmbito do ICMS, que possui várias características peculiares, e que, no dizer de Alcides Jorge Costa, é usado “no sentido impróprio”45, observando-se a partir do pensamento de Jorge Sylvio Marquezi Junior46 ser possível se encontrar “várias naturezas jurídicas dentro de uma mesma expressão”, “dependendo do suporte físico analisado, ou mais simplesmente dos dispositivos do ordenamento jurídico aferidos”.
Neste contexto, portanto, caso, em algum instante, tal adiamento represente dispensa definitiva do imposto anteriormente postergado, estaremos, por exceção textual à regra, diante de um benefício de fato, não porque o diferimento o seja em regra, mas porque a norma, em outro instante, e por outras situações legais, resolveu exonerar o pagamento do mesmo. Um exemplo clássico disso seria atentar-se para o fato de que inexistem muitas situações de diferimento em operação interestadual, limitando-se ao território interno das UFs47.
CONSIDERAÇÕES DOUTRINÁRIAS ACERCA DO DIFERIMENTO
Dando continuidade à discussão conceitual acerca do diferimento, que insistimos não poder ser confundida com incentivo ou benefício fiscal, encontramos uma gama variada de entendimentos na conjuntura doutrinária pátria e que merecem consideração em vista das divergências que a temática apresenta também neste contexto do pensamento investigativo.
Neste diapasão, tendo por respaldo Renato Lopes Becho48, o mesmo conclui que “por diferimento temos a situação, prevista em lei, de postergação da incidência da norma tributária, que deixa de incidir em uma dada operação, para surtir seus efeitos em outra”, o que evidencia nossa sustentação anterior de que não pode ser confundido com dispensa de pagamento de tributo, mas de mudança de momento de arrecadação, ressalvando-se situações em que tal exigência, seja, em algum momento dispensada, por outro dispositivo legal que lhe dê suporte. Acerca do diferimento, ainda, Becho complementa dizendo: 49
“[...] é, pois, o oposto da substituição tributária “para frente”. Se nesta a incidência é “antecipada” pelo artifício legislativo, fazendo com que certas incidências tributárias que talvez venham a acontecer sejam consideradas como ocorridas muito antes de sua possibilidade fática, naquele temos uma incidência que é “postergada”, adiada, deixada para momento mais oportuno (na visão pré-jurídica do legislador).
O diferimento só pode ocorrer nos chamados “impostos plurifásicos”. Nestes, há uma sucessão de fatos imponíveis, sendo possível considerar-se a ocorrência de uma série de incidências. O ICMS é o principal exemplo. Como incide sobre operações de circulação de mercadorias” (...), que podem ocorrer várias vezes sobre uma mesma mercadoria, é possível o legislador, sabendo que outras incidências ocorrerão, “postergar” ou “abandonar” uma incidência.
Mostrando a diversidade conceitual acerca do tema, outros autores, com respaldo em Salvatore La Rosa50, entendem o diferimento (assim como a suspensão51 que também posterga o pagamento do tributo) como sendo uma forma de expressão do critério temporal, conforme sustenta Aurélio Pitanga Seixas Filho52, em discordância ao posicionamento de Paulo de Barros Carvalho, segundo o qual, “o momento da ocorrência fica deslocado no tempo, ou seja, difere-se ou suspende-se o pagamento”, e não a materialização da incidência, o que são, naturalmente, conceitos distintos a serem considerados. Para Pitanga, aliás, tal posicionamento é equivocado, pois “... o diferimento ou suspensão do pagamento pode ser a conseqüência jurídica de uma norma concedendo moratória após a ocorrência do fato gerador, fenômeno distinto do produzido por uma norma isencional que impede a ocorrência do fato gerador...”.
Ressalte-se que, tanto na suspensão quanto no diferimento, temos em comum a postergação efetiva do recolhimento do ICMS, o que, sustentamos, não se confunde com incentivo ou benefício porque em momento oportuno (posterior), o imposto resultante do valor agregado, será recolhido, diferenciando-se, como regra, e, em situações distintas, pelo fato de, no diferimento poder ocorrer a troca de responsável pelo recolhimento, o que, dificilmente ocorrerá com a suspensão. Neste caso, como regra, geral, o próprio contribuinte privilegiado pelo não pagamento momentâneo, arcará com o seu ônus, em momento posterior, na forma e condições legalmente estabelecidas.
A despeito da posição contrária de Betina Gruppenmacher53, para quem os institutos não se confundem, ao se tratar de diferimento, entendemos ser possível, em determinadas situações, se transitar pelo contexto da modalidade antecedente da substituição tributária a que alude o artigo 6º, § 1º da LC 87/9654, uma vez que, ao postergar o tributo, não raras vezes, o diferimento55 determina que o pagamento do ICMS seja feita por outro contribuinte que não o original, privilegiado pela postergação do mesmo (na dita fase de encerramento), o que o torna diferente da suspensão, pois neste caso, quase sempre, o contribuinte privilegiado pela postergação momentânea do tributo é quem recolhe o tributo postergado, salvo casos de agregação de valor em operações interestaduais.
Em outra oportunidade56, considerando esta condição de troca de responsável pelo recolhimento do tributo, observamos tal possibilidade:
No âmbito da legislação estadual, o diferimento representa, como visto, a transferência de sujeição passiva (leia-se responsabilidade tributária) para um contribuinte que participe de uma das subsequentes etapas de circulação da mercadoria, aplicando-se, como regra, em operações internas com produtos de origem vegetal, mineral ou animal, o que, em conclusão primeva, já nos permite entendê-lo como sendo uma das modalidades (espécies) de substituição tributária como se poderá observar no próximo tópico57.
Nesta mesma linha de raciocínio, Walter Gaspar58, observa que a substituição e o diferimento são institutos análogos, diferenciando pelo fato de que o diferimento ou suspensão, refere-se a operações anteriores (também ditas para “para trás” ou antecedentes), enquanto a substituição tradicional, dita subsequente, ocorre “para a frente”, ou de outra forma, diz respeito a operações que, se presume, ainda irão se realizar. Gaspar, na sequência de sua exposição, justifica, ainda, que:
Na substituição, o legislador determina que se antecipe uma incidência, tomando-se por ocorrido o que iria ocorrer, isto é, cobrando-se o ICMS antes da eclosão do fato gerador. No diferimento ou suspensão, o fato gerador ocorre, mas o ICMS não é cobrado, deixando que se acumule o valor a ser cobrado até o momento que o legislador entende ser mais conveniente.
Isto posto, num admissível universo de substituição tributária (antecedente para o diferimento), o responsável (ou substituto) seria um contribuinte de uma etapa posterior, ao passo que na substituição tributária subsequente (substituição clássica ou tradicional) o responsável ou substituto (ou ainda sujeito passivo indireto) estaria no início da cadeia econômica, restando ainda, à luz dos conceitos oriundos da LC 87/96, a substituição tributária concomitante (onde podemos situar o ISS, o IRPF, Previdência Social, etc).
Roque Antonio Carrazza é outro doutrinador que adota esta classificação, chegando a ser categórico ao observar que a substituição tributária se subdivide em substituição tributária “para frente” e substituição tributária “para trás”, muito embora não se convença da constitucionalidade da primeira59.
Sustenta, ainda, que o sentido do termo “diferimento”, na legislação do ICMS, é o do adiamento. Observa ainda que, na prática, em vista das dificuldades de fiscalização, notadamente dos pequenos produtores (onde mais se concentra esta forma jurídica), o diferimento permite que o pagamento do imposto devido sobre tais operações (acrescentamos ainda os serviços) seja postergado e recolhido por outrem60.
Por sua vez, José Eduardo Soares de Melo61 observou quanto ao diferimento que este “Constitui uma técnica impositiva de deslocamento da exigência do tributo para momento posterior à ocorrência do originário fato gerador, com a imputação da responsabilidade de seu recolhimento a terceiro”, o que não nos parece, necessariamente, ser uma afirmação que sustente uma eventual postergação de ocorrência de fato gerador, mas de simetria do recolhimento com outro momento de materialização.
Com entendimento diverso, ao tempo do ICM (substituído pelo ICMS), Sacha Calmon62 se posicionou observando que “na linguagem do legislador, ocorre diferimento quando o lançamento e o pagamento do imposto incidente sobre a saída de determinada mercadoria – estamos falando de ICM – é transferido para etapa ou etapas posteriores de sua comercialização, ficando o recolhimento do tributo a cargo do contribuinte destinatário, que pode ser o mesmo ou um terceiro.” Em outro instante63, como esforço comparativo, e em redação mais atual, o autor observa que o diferimento do ICMS ocorre quando “o lançamento e o pagamento do imposto incidente sobre a saída de determinada mercadoria são transferidos para etapa ou etapas posteriores de sua comercialização, ficando o recolhimento do tributo a cargo do contribuinte destinatário, que pode ser o mesmo ou um terceiro.”
Kiyoshi Harada64, por sua vez, observa que o diferimento, no Direito Tributário, significa adiar65, dilatar, procrastinar ou delongar o tributo. Acrescenta ainda que o mesmo tem sua origem no Ato Complementar 31/196666, tendo sido promulgado com base em legislação excepcional, em vista da alteração do sistema de cobrança do anterior ICM, pertencente aos municípios conforme projeto da Constituição Federal e sua transição para a Constituição de 1967, e que assim dispunha em seu artigo 4º:
Art. 4º No caso de diferimento ou antecipação de incidência do impôsto que importe no seu recolhimento em Município diferente daquele em que ocorreu o fato gerador, a legislação estadual estabelecerá as normas necessárias ao resguardo dos créditos correspondentes aos Municípios de origem ou destino, conforme o caso.
Para Harada, no que convergimos por inteiro, o diferimento não pode ser entendido como transferência do momento da ocorrência do fato gerador do tributo para etapa ou etapas posteriores, mas simples etapa de transferência de recolhimento do mesmo, observando, ainda, que o mesmo se distingue da moratória, exatamente, porque “... há adiamento do prazo de pagamento do imposto sem alteração do sujeito passivo natural”. Para o autor, ainda, a lei estabelece, no caso do diferimento, “a exclusão de responsabilidade do contribuinte pelo pagamento do crédito tributário, atribuindo-a a terceiro, denominado responsável, nos termos do art. 121, II, c.c. o art. 128 do CTN”67, complementando conceituando o diferimento, o que nos parece, s.m.j., assemelhar-se ao conceito de sujeição passiva indireta em outro instante aqui comentado:
[...] podemos conceituar o diferimento do ICM, hoje, ICMS, como transferência da obrigação de pagar o imposto devido em determinada operação de saída da mercadoria, para o momento da ocorrência do fato gerador na posterior operação de saída, cujo contribuinte fica também com a obrigação de pagar o imposto devido na operação de saída, cujo contribuinte fica também com a obrigação de pagar o imposto devido na etapa anterior, por expressa determinação legal.
No âmbito da legislação estadual, o diferimento representa, como visto, quando o contribuinte recolhedor não é o mesmo originalmente previsto, transferência de sujeição passiva (leia-se responsabilidade tributária) para um contribuinte que participe de uma das futuras etapas de circulação da mercadoria, aplicando-se, como regra, em operações internas, o que, em conclusão primeva, nos permite entendê-lo como sendo uma das modalidades de substituição tributária dita antecedente68 nestas (e só nestas) circunstâncias, nos aproximando, um pouco, da posição de Betina Gruppenmacher, anteriormente mencionada.
Quanto ao diferimento, ainda, parece-nos que o aspecto nodal que o diferencia do conflito existente entre os autores entre ser ou não uma forma de substituição tributária da modalidade antecedente está atrelado ao fato de haver uma troca de responsável pelo tributo e não apenas pela mera postergação, permitindo-nos entender que, a substituição tributária se perfaz com a mudança (troca) do responsável original pelo recolhimento do tributo.
Tal afirmação se justifica, v.g., porque há situações, como as remessas para industrialização de produtos primários (de origem vegetal, mineral ou animal), em operações internas, que, quase sempre, estabelecem o retorno também com o diferimento (quando não se usa a suspensão), vindo a se encerrar o mesmo apenas em etapas posteriores69, com o mesmo contribuinte privilegiado pela demora no recolhimento do imposto.
Melhor dizendo, o que se busca afirmar é que nem sempre o diferimento será uma modalidade de substituição tributária pelo simples fato de retardar o pagamento do tributo, mas porque, esta situação, necessariamente, por força da lei, será transferida a terceiros; da mesma forma, salvo situações excepcionais, o instituto não pode ser considerado, de forma generalizada, como um incentivo ou benefício fiscal.
No entanto, para se ter noção da complexidade do tema, alguns autores, como Zelmo Denari70, entendem que o diferimento é, na realidade a substituição regressiva.
A pretexto do diferimento como forma de substituição tributária (para trás), Misabel Derzi71 observa, que, na prática, ele é um fenômeno mais complexo, e que, guarda uma similaridade à isenção (que também entende distinta deste instituto). Para ela, no diferimento, em rigor, não ocorre a isenção, “mas dispensa os contribuintes das etapas diferidas do dever de recolher o imposto, não surgindo para eles débito ou crédito do tributo”.
Quanto ao contexto doutrinário, reforçando tal posição, buscamos na Consulta 002/0872, de Santa Catarina, entendimento contundente, e que, dada a necessidade de ratificação dos fatos, e da qualidade dos doutrinadores citados em seu contexto (nec plus ultra73), nos impõe o dever científico de exposição de excertos do referido posicionamento:
Consulta nº 002/08
EMENTA: ICMS. O INSTITUTO TRIBUTÁRIO DO DIFERIMENTO, ORIGINALMENTE, NÃO É BENEFÍCIO FISCAL, MAS SIM TÉCNICA FISCAL APLICADA NO INTERESSE DA ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA. O DIFERIMENTO PREVISTO NO RICMS/SC, ANEXO 3, ART. 4º, I, É EXTENSIVO A TODAS AS OPERAÇÕES INTERNAS REALIZADAS ENTRE PRODUTORES RURAIS, NÃO DESTINADAS AO CONSUMO FINAL. DOE de 11.04.08
...
Inicialmente, deve-se registrar que, segundo a melhor doutrina, o diferimento, em sua concepção original, não é benefício fiscal, mas sim técnica de arrecadação tributária. Citam-se, a seguir, algumas posições doutrinárias.
"O diferimento é a técnica de tributação estribada no feitio polifásico do ICMS. Não se confunde com nenhum tipo de Benefício fiscal. (COELHO, Sacha Calmon Navarro, Curso de Direito Tributário Brasileiro. 3ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 598.)
"Diferimento é a designação de um complexo de normas que fixa um dado regime tributário. (...) é instituto que se refere à obrigação tributária." (ATALIBA, Geraldo e GIARDINO, Cléber. ICM – Linhas Mestras Constitucionais – O Diferimento. In Revista de Direito Tributário – 23-24, p. 119.)
"O diferimento é o não recolhimento do ICMS em determinada operação ficando adiado para etapa posterior. Por esta técnica, o pagamento do imposto incidente sobre a saída de determinada mercadoria (no caso do ICMS) é transferido para as etapas posteriores de sua circulação." (BASTOS, Celso Ribeiro. Lei Complementar – Teoria e Comentários. 2ª ed. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999.)
"Diferimento não é benefício fiscal; não retira as operações do campo da incidência do imposto; apenas transfere para etapa futura da circulação o momento do lançamento tributário." (Consultoria Tributária – SP.)
A palavra diferimento deriva do verbo diferir, que segundo o vernáculo, significa adiar, retardar. É nesta acepção que a palavra é utilizada na linguagem técnico-tributária para designar o instituto tributário da substituição tributária para trás ou regressiva.
Esse instituto por sua vez, segundo Eduardo Sabbag, é a postergação (adiamento) do recolhimento do tributo para momento posterior à ocorrência do fato gerador. Assim, adia-se o pagamento do ICMS por mera conveniência da administração tributária, uma vez que o contribuinte substituído não dispõe de aparato fiscal ou contábil para efetuá-lo, razão pela qual o ônus tributário recai sobre o substituto legal tributário. (in Elementos do Direito Tributário. 8ª Ed. São Paulo: Premier - Máxima. 2006. Pág. 182).
Sobre este embasamento teórico e sob a luz de uma interpretação teleológica, infere-se que o diferimento concedido aos produtores rurais não se trata de benefício fiscal, mas sim de técnica fiscal de arrecadação.
Ora, cediço a deficiência técnico-contábil dos produtores rurais para administrar o ICMS, mormente frente à não-cumulatividade que matiza este imposto, daí por que, a administração tributária, transferir o encargo tributário relativo ao ICMS incidente sobre as operações internas com produtos primários para o primeiro contribuinte não produtor que intervier na cadeia de comercialização ou industrialização.
Tem-se, portanto, que qualquer produto primário, mesmo que tenha sido objeto de diversas etapas circulatórias realizadas entre produtores rurais dentro do estado, poderá ter diferido o ICMS devido até a sua saída do estado, bem como, até a saída destinada a consumidor final, ou a entrada em estabelecimento comercial ou industrial estabelecido neste estado, pois quando este promover nova saída submeterá o produto ou seus derivados à tributação.
Assim, havendo novo diferimento, após uma entrada também diferida, a responsabilidade do contribuinte pelo imposto incidente na operação que realiza, juntamente com o relativo à operação anterior, de que tenha decorrido a entrada da mercadoria em seu estabelecimento, transfere-se ao destinatário próxima operação tributada, nos termos do art. 1º do Anexo 3 do RICMS/01 ...
...
Aliás, é esse o entendimento desta Comissão, conforme se apura no precedente exarado da Consulta nº 46/0374, cuja ementa está assim emoldurada, in verbis:
EMENTA: ICMS. DIFERIMENTO. LEITE “IN NATURA”. TRATAMENTO APLICÁVEL INCLUSIVE À NOVA SAÍDA, NÃO DESTINADA A CONSUMIDOR FINAL, PROMOVIDA PELO DESTINATÁRIO DE OPERAÇÃO CUJO IMPOSTO FORA TAMBÉM DIFERIDO.
...
COPAT na sessão do 28 de fevereiro de 2008.
Neste sentido, ainda, a Consulta COPAT 21/2010, da Secretaria de Fazenda de Santa Catarina75, segundo a qual o diferimento não se confunde com a isenção e tampouco se refere a um incentivo fiscal assentando que “Na linguagem do legislador, ocorre diferimento do imposto quando o lançamento e o pagamento do imposto incidente sobre a saída de determinada mercadoria – estamos falando de ICMS – é transferido para etapa ou etapas posteriores de sua comercialização, ficando o recolhimento do tributo a cargo do contribuinte destinatário, que pode ser o mesmo ou um terceiro.” 76
Estado de São Paulo77, de forma contundente, entendeu que o “Diferimento não é benefício fiscal; não retira as operações do campo de incidência do imposto apenas transfere para etapa futura da circulação, o momento do lançamento tributário”.
Como regra, de tudo o que se viu, o diferimento não é considerado um benefício, considerando-se, todavia, a exceção do Mato Grosso que o trata assim nos artigos. 573 a 58678 e no Anexo VII79 do seu regulamento, tratando como benefício, mediante opção, com expressa vedação de crédito, o que nos parece o verdadeiro motivo para tal posição, uma vez que não se confunde com isenção ou não-incidência, e, não há, à luz do art. 155, § 2º, II da CF/88 razão para vedar o aproveitamento do crédito das etapas anteriores.
Na linha defendida quanto a possibilidade de creditamento do ICMS pelas aquisições, em vista da saída com diferimento constituir-se em mera postergação de pagamento do tributo, Hugo Funaro80 pontua da seguinte forma:
De outro lado registre-se que o contribuinte que promove a saída da mercadoria ao amparo do diferimento possui direito ao aproveitamento dos créditos de ICMS relativos a operações anteriores, pois trata-se de saída tributada, embora o pagamento fique postergado para a etapa seguinte de circulação da mercadoria, devendo ser realizado pelo substituto tributário.
POSIÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA SOBRE O DIFERIMENTO
Em vista das posições anteriores, seja para tratar o diferimento eventualmente como substituição tributária ou excluí-lo do contexto dos benefícios fiscais juntamos alguns posicionamentos jurisprudenciais que dão o tamanho do problema acima trazido.
Sobre considerar-se o diferimento como forma de substituição tributária juntamos algumas situações extraídas do Tribunal de Justiça de São Paulo e posicionamento contrário do STJ, que mostram haver dissonância clara de entendimentos entre as partes que tratam, aleatoriamente o diferimento como substituição tributária:
TJ-SP - Apelação APL 00038130220128260168 SP 0003813-02.2012.8.26.0168 (TJ-SP)81
Jurisprudência. Data de publicação: 20/10/2016
Ementa: Saída da mercadoria de estabelecimento situado no Estado do Rio Grande do Sul, o que implica, a disciplinar a relação jurídico-tributária, em incidência da legislação gaúcha. ICMS.
Hipótese de substituição tributária por diferimento. Produtores rurais que incorreram em equivoco ao realizar o pagamento do tributo. Responsabilidade da empresa adquirente, destinatária do produto. Notas fiscais de saída que não indicam o número da respectiva guia de recolhimento do ICMS. Ausência de prova no sentido de que os demonstrativos de pagamento se referem ao fato gerador descrito na exordial. Prova do fato constitutivo do direito – ônus do autor, nos termos do artigo 373, I, do NCPC, do qual não se desincumbira. Sentença preservada. Recurso improvido.
Encontrado em: 27ª Câmara de Direito Privado 20/10/2016 - 20/10/2016 Apelação APL 00038130220128260168 SP 0003813-02.2012.8.26.0168 (TJ-SP) Tercio Pires
...
TJ-SP - Inteiro Teor. Agravo de Instrumento: AI 20732241520158260000 SP 2073224-15.2015.8.26.000082
Jurisprudência. Data de publicação: 14/05/2015
Decisão: porque o prosseguimento da demanda executiva consistirá em responsabilizar a agravante por obrigação tributária...Alega que o Estado adotou o regime de substituição tributária por diferimento do imposto, consoante disposição do regulamento do ICMS ...
...
TJ-SP - Inteiro Teor. Apelação: APL 38130220128260168 SP 0003813-02.2012.8.26.016883
Jurisprudência. Data de publicação: 20/10/2016
Decisão: Hipótese de substituição tributária por diferimento. por produtor, e quando resultantes de compra e venda, nas promovidas pelos demais contribuintes, o diferimento...A moldura trata do instituto da substituição tributária, na modalidade diferimento, na qual a responsabilidade pelo pagamento do tributo devido pelo remetente é atribuída a um terceiro, adquirente da mercadoria, que não praticou o fato.
Divergindo dos posicionamentos anteriores, não significando a posição dominante do Tribunal (o STJ), em Embargos de Divergência (ERESP 1.119.205/MG), em decisão monocrática do Min. Benedito Gonçalves, entendeu-se que: 84
O diferimento é um benefício fiscal que implica na desoneração de alguns participantes de uma cadeia produtiva em face de considerações de política fiscal e na postergação do pagamento de imposto que, ao invés de incidir nas diversas etapas da cadeia produtiva concentrará sua incidência ao final, em pessoas dotadas de maior controle contábil e que geralmente centralizam a cadeia produtiva (produtor rural -> pequenas empresas rurais -> indústria).
Em que pese o julgado acima avaliar o diferimento como incentivo, ressalve-se que o julgamento em questão se refere a situação de descumprimento das exigências legais e, portanto, digno de se entender que houve encerramento do diferimento, tendo tido outro entendimento quando do julgamento final, quando do julgamento dos embargos de divergência85, ficando patente o seguinte entendimento que confirma nosso posicionamento de que o mesmo, como regra geral, não se confunde com incentivo:
3. O diferimento tributário não constituiu um benefício fiscal, até porque não há dispensa do pagamento do tributo (como ocorre com a isenção ou com a não incidência), mas técnica de arrecadação que visa otimizar tarefas típicas do fisco, de fiscalizar e arrecadar tributos. Logo, por representar conveniência para o Estado, cabe a ele, exclusivamente, a fiscalização dessas operações. E nem poderia ser diferente, pois ao vendedor, que, via de regra, nessa modalidade de tributação, é pequeno produtor rural (de milho, na espécie), a lei não confere poderes para fiscalizar as atividades da empresa que adquire os seus produtos.” (Grifo nosso)
Diferimento, portanto, não é benefício fiscal, não retira as operações do campo de incidência do imposto, apenas transfere a incidência efetiva do ICMS para etapa futura (na mesma linha descrita por Harada86), também descrita na norma, conforme a melhor conveniência da administração fazendária. Uma operação ou uma prestação diferida, portanto, significa que o imposto incidente será exigido futuramente, até mesmo por outro contribuinte, a quem será atribuída a responsabilidade pelo seu recolhimento.
Ressalte-se ainda que, como consequência natural desta distinção, na isenção tradicional há a dispensa do recolhimento, enquanto que no diferimento há, em vista do que já se disse anteriormente, um deslocamento do momento do recolhimento, numa situação tributária que tem a ver com a própria característica do ICMS, que, na sua essência, é plurifásico87 e regido pelo princípio constitucional da não cumulatividade (art. 155, § 2º, I).
Tal diferença de institutos nos permite compreender pela manutenção de créditos de operações anteriores ao diferimento, eis que, em dado momento (dito como fase de encerramento) ocorrerá a incidência do ICMS.
Para convalidar tal entendimento, o STF, ao examinar caso de ICMS incidente na aquisição de álcool anidro feita pelas usinas sob o regime do diferimento, reconheceu, por unanimidade, a existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada (não cumulatividade), nos seguintes termos:
Recurso extraordinário com agravo. Tributário. Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS. Aquisição de mercadoria com diferimento. Direito a creditamento do tributo. Vedação. Hipótese de substituição tributária para trás. Alegada violação ao princípio da não cumulatividade. ADI 4.171. Repercussão geral reconhecida (RE 781926 RG/GO, Rel. Min. Luiz Fux, j. em 21.11.2013, DJe 044, de 06.03.2014). 88
Das referidas decisões acostadas, dentre outras, na iminência de qualquer dúvida, reproduzimos uma lista contundente de julgados que entendem que o diferimento não pode ser encarado como benefício fiscal, mas, antes, visto como técnica de postergação de recolhimento de tributo, não havendo inclusive prejuízo quanto ao crédito das etapas anteriores: ADI 2056/MS;89ADI 3676/SP;90 ADI 3702/ES;91 RE 325623 AgR/MT;92 RE 102354/SC;93 RE 112098/SP;94 Rp 1237-9/BA;95 RE 91848-5/SP;96 e, RE 102354-6/SC.97
A propósito da não cumulatividade, sob a ótica do diferimento, Ives Gandra98 também entende pela análise que o mesmo “deve ser examinado a partir da última operação”:
O princípio da não-cumulatividade para os dois tributos a que se aplica, visa, portanto e exclusivamente, à tributação final do produto (industrial ou em circulação) entregue ao consumo derradeiro, nos termos que a lei complementar determina, evitando seja, pelo acúmulo da carga tributária incidente nas operações anteriores, suspenda a alíquota real que recai sobre a última base de cálculo, a partir de uma alíquota nominal.
Em linha com tais entendimentos, o setor consultivo do Estado do Paraná, ao tratar do tema crédito em operações com diferimento, reconheceu o direito à sua manutenção nas Consultas 131/1990, 53/1991, 83/1992 (que inclusive o diferencia da isenção e da imunidade), 234/1992 e 59/1998 (posterior ao advento da Lei Kandir), dentre outras99.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em grau de considerações finais deste estudo, entendemos que o diferimento, portanto, não é benefício fiscal, não retira as operações do campo de incidência do imposto, apenas transfere a incidência efetiva do ICMS para etapa futura (leia-se o recolhimento).
O diferimento é, regra geral, técnica de postergação de pagamento de tributo, o que aliás, foi reconhecido pelo STF nas ADIs 3676/SP e 3702/ES, bem como nos demais julgados apresentados no item anterior, o que é reconhecido pela doutrina majoritária tributária vigente, podendo até ser considerado modalidade de substituição tributária antecedente em alguns casos.100 Dos julgados aliás, é possível retirar-se a convicção de que não se confunde a hipótese de diferimento do lançamento tributário com a de concessão de incentivos ou benefícios fiscais de ICMS, podendo, inclusive, ser estabelecido sem a prévia celebração de convênio, uma vez que, se limita a operações e prestações internas.
Parece-nos plausível admitir-se que o diferimento101 será forma de substituição (da modalidade antecedente) quando, e, efetivamente, se houver a troca de responsável original pelo recolhimento do ICMS, de forma que o encerramento do diferimento se dê sobre terceiro que não seja o contribuinte original.
Sob nossa ótica, portanto, em grau de conclusão do presente estudo, entendemos que o diferimento não se confunde com um benefício fiscal ou incentivo fiscal no sentido estrito, o que não lhe impõe as regras definidas na LC 24/1975, e que, por óbvio, não segue, precipuamente, aos ditames estabelecidos no art. 155, § 2º, XII, “g” da CF/1988, o que acaba por via de consequência, e salvo regra em contrário, a moldar o instituto, prioritariamente, às operações e prestações internas102, adstritas aos interesses fazendários internos de oportunidade e conveniência da arrecadação estatal.