6. CONCLUSÃO
Vários são os corolários que se tiram acerca da matéria ora arrazoada, pois com o advento da Lei Complementar n.º 116, de 31.07.03, nova feição se deu ao regime do imposto sobre serviços de qualquer natureza – ISSQN, notadamente quanto ao rol de serviços tributáveis pelo imposto inserido na competência tributária dos municípios.
Dentre os novos serviços, que por força da Lei Complementar estariam ao alcance do ISS mediante a edição das normas municipais competentes, encontram-se aqueles prestados pelos titulares dos serviços notariais e de registro, insertos na lei tributária sob a epígrafe "serviços de registros públicos, cartorários e notariais".
Sobretudo quanto aos referidos serviços, a Lei Complementar n.º 116/03 se nos afigura como sendo incompatível com a Constituição Federal, que reserva aos serviços presta dos por delegação do Poder Público, como é o caso dos serviços notariais e de registro, um regime tributário diverso daquele afeto aos impostos, qual seja a disciplina dos chamados tributos vinculados, as taxas.
A competência tributária é exercida mediante a instituição, por meio de lei, dos tributos que a Constituição Federal exaustivamente discriminou e atribuiu a cada ente da federação.
No exercício da prerrogativa de instituir e arrecadar tributos, portanto, os entes federados estão adstritos às disposições constitucionais que delimitam as respectivas competências tributárias.
O Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS ou ISSQN), individualmente, por força de disposição constitucional expressa, depende não apenas de normas municipais que disciplinem sua instituição, mas também de norma de caráter geral, que definam quais são os serviços tributáveis, emitida pela União mediante Lei Complementar.
Esse é a função exercida pela Lei Complementar n.º 116/03, cuja atribuição conferida pela Constituição Federal é a de arrolar os serviços que, passíveis de serem tributados pelo ISS, são exaustivamente, delineados por norma veiculada pela União Federal.
Apesar de exercer a função de discriminar os serviços tributáveis, não é rôle da Lei Complementar descrever serviços que não sejam passíveis de tributação pelo ISS. O que compete à Lei Complementar é, justamente, no universo de serviços existentes que podem ser tributados pelo ISS, definir quais serão onerados pelo tributo municipal nos termos das legislações locais.
Assim, ao incluir no catálogo de serviços tributáveis pelo ISS os serviços notariais e de registro, malsinada Lei Complementar n.º 116/03 atenta contra a Constituição Federal, pois pretende possibilitar a incidência de imposto sobre a prestação de serviços que só podem ser onerados por taxa.
Desse modo, nos termos do art. 236 da Constituição Federal, os serviços notariais e de registro são exercidos mediante delegação do Poder Público, como asseverado ao longo deste trabalho, o que lhes confere a qualidade de serviço público, apesar de não serem prestados por órgão do Estado.
A índole de tais serviços lhes transfere para um regime tributário específico, diverso daquele que orienta os impostos, à vista (i) da essencialidade que lhes é inerente e (ii) do fato de que cabe ao Estado disponibilizá-los, mesmo que sob a forma de delegação.
Portanto, as taxas são os tributos que podem onerar os serviços públicos em geral, nesse gênero incluídos os serviços notariais e de registro, nos termos do art. 145, II, da Constituição Federal.
Ora, tais serviços, dessa forma, estão excluídos da competência tributária municipal relativa ao ISS, haja vista que a cobrança de taxa, consoante a disciplina constitucional vigente, exclui a sujeição do fato tributário a um imposto, qualquer que seja.
A natureza pública dos serviços sub examine já foi certificada tanto pelo Superior Tribunal de Justiça quanto pelo Supremo Tribunal Federal, sendo certo que ambas as Cortes reconhecem o regime da taxa como sendo aplicável a estes.
Essa circunstância contribui para dirimir dúvidas quanto à natureza dos emolumentos cobrados em contraprestação dos serviços notariais e de registro. Estes são verdadeiras taxas, que remuneram serviços públicos específicos e divisíveis em benefício do contribuinte, destinatário dos serviços.
Depois de enfrentar a matéria, recentemente o Supremo Tribunal Federal, cujo Relator foi o eminente Min. Carlos Britto [02], julgando a ADI/3089 – ajuizada pela Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg), que pedia a declaração de inconstitucionalidade dos itens 21 e 21.1, da lista de serviços, anexa à Lei Complementar 116/2003, que sujeita os serviços de registros públicos, cartorários e notariais ao pagamento do Imposto Sobre Serviços de qualquer natureza (ISS), entendeu da seguinte maneira:
Decisão: Prosseguindo no julgamento, o Tribunal, por votação majoritária, julgou improcedente a ação direta, vencido o Senhor Ministro Carlos Britto (relator), que a julgava procedente. Votou a Presidente, Ministra Ellen Gracie. Redigirá o acórdão o Senhor Ministro Joaquim Barbosa, ora licenciado, mas com voto proferido em assentada anterior. Plenário, 13.02.2008.
Saliente-se, ainda, que as taxas são espécies tributárias destinadas, nomeadamente, a remunerar o serviço público que cabe ao Estado prestar. Daí serem classificadas como tributos vinculados, que dependem de uma contraprestação estatal, ainda que seja realizada mediante delegação, para que sejam exigidos. Bem distinto é o regime típico dos impostos, que têm por hipótese de incidência fatos que não guardam qualquer relação com a prestação de serviços públicos.
Advirta-se que a Lei Complementar n.º 116/03, nesse particular, ostenta inconstitucionalidade que conspurca sua perfeita aplicação e observância pelas legislações locais.
Alfim, mesmo com a decisão do Pretório Excelso, filio-me à corrente do ilustre Min. Relator, Carlos Britto, que entendia procedente a ADI 3089.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Código Tributário Nacional, 3. ed.,Saraiva, São Paulo: 2002.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, Brasília. DF: Senado, 2004.
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 14. ed., São Paulo: Malheiros, 2000.
CHIESA, Clélio. Industrialização sob Encomenda: Incidência de ISS, IPI, ICMS ou nenhum desses Impostos? Grandes Questões Atuais de Direito Tributário, Dialética, 9.º Vol. (Coord. Waldir de Oliveira Rocha), p.57-73.
HARADA, Kiyoshi. HARADA Kiyoshi. ISS: Aspectos Polêmicos da Lei Complementar n.º 116/03. http://jus.com.br/artigos/4958
Notas
01 Chiesa, op.cit., p. 60.
02 O relator da ADI, ministro Carlos Ayres Britto já havia proferido seu voto na sessão plenária de 20 de setembro de 2006, no sentido da procedência do pedido, ou seja, a inconstitucionalidade da cobrança do imposto. Na ocasião ele julgou este tipo de serviço como "atividade pública prestada em caráter privado".
Segundo Ayres Britto, o Supremo tem entendido que o serviço notarial e de registro é uma atividade estatal, porém, da modalidade serviço público, assim não se poderia pressupor que têm caráter tributário, como decorrentes do desempenho de atividade econômica. Para o ministro, isto significa excluir a incidência do ISS, uma vez que a natureza desse tributo só poderia ter como fato gerador, uma situação desvinculada de qualquer atividade estatal, voltada para o contribuinte, salvo se a própria Constituição admitisse, explicitamente, o contrário.
A ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha e os ministros Ricardo Lewandowski, Eros Grau, Cezar Peluso e Gilmar Mendes acompanharam a divergência aberta pelo ministro Sepúlveda Pertence, bem como o entendimento do ministro Joaquim Barbosa em seu voto-vista.