4 – A natureza jurídica das decisões dos Tribunais de Contas Brasileiros
As competências dos Tribunais de Contas Brasileiros estão assinaladas ao longo dos artigos 71 a 74, da Carta Magna. Consoante enuncia o caput do seu artigo 71, eles auxiliam o Poder Legislativo no exercício do controle externo. Verifica-se que a Constituição divide a prática do Controle Externo com duas instituições: o Poder Legislativo e as Cortes de Contas. O controle em questão é realizado por um órgão de natureza política, que é o Congresso Nacional (ou as Assembléias Legislativas, nos Estados, e as Câmaras Municipais, nos Municípios), de onde decorre seu inegável teor político. Contudo, ele é amenizado pela participação dos Tribunais de Contas, que são órgãos eminentemente técnicos, o que denota que o controle externo há de ser primordialmente de natureza técnica. [23]
Quanto às suas funções, apenas a título de informação, Maria Sylvia Zanella de Pietro classifica-as em funções de fiscalização financeira, de consulta, de informação, de julgamento, sancionatórias, corretivas e de ouvidor. [24] À classificação da doutrinadora, Valdecir Fernandes Pascoal acrescenta a função de representação e a infraconstitucional. [25]
A função de julgamento, cerne do presente trabalho, está prevista no inciso II, do artigo 71, da Constituição Brasileira. Trata-se de competência própria das Cortes de Contas, passível tão-somente de controle judicial, não cabendo qualquer reapreciação por parte do Legislativo [26], conforme será demonstrado adiante. Nessa função, inclui-se a competência para julgar as contas do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos próprios Tribunais de Contas.
O julgamento em questão, que Valdecir Fernandes Pascoal classifica como um julgamento administrativo, de um modo geral, é realizado a posteriori. Sobre os limites do julgamento, Odete Medauar entende que não se pode cogitar de apreciação do mérito das contas, isto é, de sua conveniência e oportunidade. Tal avaliação seria privativa da autoridade detentora do poder legal de decidir a respeito da aplicação dos recursos públicos. Quanto à verificação da ocorrência de fatos justificadores ou de sua autêntica conformação, insere-se, segundo a citada doutrinadora, no âmbito da legalidade. [27]
Tendo em vista que no texto constitucional figura a expressão "julgamento das contas" e não "apreciação das contas", vários autores e integrantes de órgãos de contas conferem a característica de "jurisdicional" a essa atribuição.
4.2 Divergência doutrinária acerca da natureza dos julgamentos
O debate doutrinário acerca da natureza jurídica das decisões dos Tribunais de Contas Brasileiros é bastante antigo. A discussão gira em torno do caráter jurisdicional ou não do julgamento das contas dos administradores ou responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos. O que se verifica é que uma parte minoritária da doutrina defende a força judicante das deliberações das Cortes de Contas que julgam tais contas.
A principal causa do desacordo entre os doutrinadores decorre do emprego, tanto pelas Constituições anteriores como pela vigente, no que concerne às Cortes de Contas, de vocábulos como tribunal, julgar e jurisdição. Tal fato já foi, e continua sendo, objeto de significativa discussão entre os juristas.
O termo Tribunal é empregado na própria denominação do órgão de controle. A expressão julgar, por sua vez, surge no inciso II, do artigo 71, da Constituição Federal, que dispõe sobre as suas atribuições e traz a seguinte previsão:
Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:
I -Omissis;
II - julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público; (grifos ausentes no original)
Já o termo jurisdição é empregado no artigo 73, do mesmo diploma legal, in verbis:
Art. 73. O Tribunal de Contas da União, integrado por nove Ministros, tem sede no Distrito Federal, quadro próprio de pessoal e jurisdição em todo o território nacional, exercendo, no que couber, as atribuições previstas no art. 96. (grifos ausentes no original)
Dentro desse contexto, vários autores já se pronunciaram a respeito da natureza desses Tribunais e, por conseqüência, de seus atos. Há duas correntes doutrinárias principais [28] : uma que defende o exercício da função jurisdicional pelos Tribunais de Contas, com relação à atribuição prevista no inciso II, do artigo 71, da Constituição Federal, e outra que afirma serem administrativas todas as suas atribuições. Dentro dessa segunda corrente, há dois enfoques distintos, que serão expostos oportunamente.
4.2.1 Tese do exercício da função jurisdicional pelos Tribunais de Contas
O principal argumento aduzido por tal corrente doutrinária é o de que a própria Constituição, ao estabelecer o termo técnico "julgar", conferiu parcela jurisdicional aos Tribunais de Contas.
Sobre o disposto no inciso XXXV, do artigo 5º, da Carta Magna, que estatui que "a lei não excluirá da apreciação do Judiciário lesão ou ameaça de direito", essa corrente alega que a lei, em sentido estrito, é que não pode promover tal exclusão. A Constituição Federal podia, tanto que o fez quando conferiu às Cortes de Contas competência para julgar as contas dos administradores públicos. É o que defendem Victor Nunes Leal [29] e Seabra Fagundes. Embora esse último também reconheça que os aludidos órgãos não integram o Poder Judiciário, entende que foram parcialmente investidos de função judicante, quando julgam as contas dos responsáveis por dinheiros e outros bens públicos. [30] Afirma, ainda, que a função judicante não decorre do "emprego da palavra julgamento, mas sim pelo sentido definitivo da manifestação da Corte, pois se a irregularidade das contas pudesse dar lugar a nova apreciação (pelo Judiciário), o seu pronunciamento resultaria em mero e inútil formalismo". [31]
4.2.2 Tese da natureza administrativa das decisões das Cortes de Contas
Apesar de a tese do exercício da função jurisdicional pelos Tribunais de Contas ser defendida por doutrinadores renomados, o fato é que a maior parte da doutrina e a jurisprudência dos Tribunais Superiores conferem natureza administrativa às suas decisões, com base na regra disposta no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Brasileira. O mencionado dispositivo constitucional revela a adoção, pelo ordenamento jurídico brasileiro, do sistema da jurisdição una, também conhecido por monopólio da tutela jurisdicional, de onde decorre que as decisões administrativas das Cortes de Contas, por se tratar de atos administrativos, estão sujeitas ao controle jurisdicional.
Essa corrente doutrinária encontra em José Cretella Júnior um de seus maiores defensores. Assim doutrina o jurista: "A Corte de Contas não julga, não tem funções judicantes, não é órgão integrante do Poder Judiciário, pois todas as suas funções, sem exceção, são de natureza administrativa" [32]. José Afonso da Silva também é contrário à caracterização de algumas das suas funções como jurisdicionais, entendendo que "o Tribunal de Contas é um órgão técnico, não jurisdicional. Julgar contas ou da legalidade dos atos, para registros, é manifestamente atribuição de caráter técnico". [33] Em outro ponto, afirma o doutrinador, acerca do sistema de controle externo: "É, portanto, um controle de natureza política, no Brasil, mas sujeito à prévia apreciação técnico-administrativa do Tribunal de Contas competente, que, assim, se apresenta como órgão técnico, e suas decisões são administrativas, não jurisdicionais". [34] (grifos ausentes no original).
Odete Medauar se filia ao entendimento de Cretella Júnior e José Afonso. Afirma que nenhuma das atribuições das Cortes de Contas caracteriza-se como jurisdicional. Em observância ao já mencionado inciso XXXV, do artigo 5º, da Constituição Federal, qualquer decisão dos Tribunais de Contas, mesmo no tocante à apreciação de contas de administradores, pode ser submetida ao reexame do Poder Judiciário, se o interessado considerar que seu direito sofreu lesão. Ausente se encontra, em tais decisões, o caráter de definitividade ou imutabilidade dos efeitos, inerente aos atos jurisdicionais. [35]
Não é diferente o entendimento exposto por Oswaldo Aranha Bandeira de Melo, o qual entende que o órgão em questão só possui função administrativa de acompanhar a execução orçamentária e apreciar as contas dos responsáveis por dinheiros ou bens públicos. Rebate o argumento de que a apreciação de fatos já apurados pelos Tribunais de Contas constituiria um bis in idem [36] e proclama:
O Tribunal de Contas julga as contas, ou melhor, aprecia a sua prestação em face de elementos administrativo-contábeis, e, outrossim, a legalidade dos contratos feitos, bem como das aposentadorias e pensões. A Justiça Comum julga os agentes públicos ordenadores de despesas e os seus pagadores. E ao julgar os atos destes, sob o aspecto do ilícito penal ou civil, há de apreciar, também, os fatos que se pretendam geraram esses ilícitos. Repita-se, a função jurisdicional é de dizer o direito em face dos fatos. Jamais de apreciar fatos simplesmente. Mesmo se aceitasse como definitiva esta apreciação, não corresponderia a uma função de julgar. [37]
Eduardo Lobo Botelho Gualazzi, do mesmo modo, nega peremptoriamente o exercício de qualquer função jurisdicional por parte das Cortes de Contas [38], opinião igualmente sufragada por Marques Oliveira. [39]
4.3 A revisibilidade das decisões
Como aduzido anteriormente, dentro da corrente doutrinária que atribui natureza administrativa aos julgamentos realizados pelas Cortes de Contas, há dois enfoques distintos, que versam sobre a possibilidade de revisão das referidas decisões. Um se refere a sua eficácia definitiva no âmbito administrativo, outro, aos limites de sua revisão judicial.
4.3.1 A coisa julgada administrativa
Em breves considerações, a coisa julgada é uma característica própria da jurisdição, podendo ser formal ou material. Ambas decorrem da impossibilidade de interposição de recurso contra a sentença, residindo a diferença entre elas no grau que alcançam dentro de um mesmo fenômeno (a inalterabilidade das decisões judiciais). Todo processo faz coisa julgada formal, que significa a imutabilidade da decisão dentro de um processo específico, quer porque não é cabível mas nenhum recurso, quer porque os prazos para interposição se esgotaram. Ela atua dentro do processo em que a sentença foi proferida, sem impedir que o objeto do julgamento volte a ser discutido em outro processo [40], tratando-se, portanto, de uma preclusão endoprocessual. Já a coisa julgada material só se verifica quando há a apreciação do mérito, possuindo o condão de tornar a questão indiscutível e imutável após o seu trânsito em julgado, representando, assim, a verdadeira coisa julgada.
Nesse ponto, a imutabilidade não é absoluta, pois ainda há a possibilidade da desconstituição da decisão através de ação rescisória, nas hipóteses taxativamente previstas no artigo 485, do Código de Processo Civil. Só depois de escoado o prazo decadencial de 2 (dois) anos para a propositura da ação rescisória é que se pode falar em uma verdadeira irreversibilidade da decisão de mérito, o que se denomina de coisa soberanamente julgada.
Considerando-se o monopólio da função jurisdicional pelo Poder Judiciário, seria correto dizer que os Tribunais de Contas apreciam, para homologar ou rejeitar, as contas dos administradores e demais responsáveis por bens e dinheiros públicos. A expressão "julgar", contida no inciso II, do artigo 71, da Carta Magna, não pode denotar atividade excludente de apreciação do Poder Judiciário, significando, apenas, que há preclusão administrativa. Ou seja, após o julgamento, não poderá a Administração ou o órgão fiscalizador se voltar sobre as despesas, inquinando-as de ilegais. [41]
É dentro desse contexto que parte da doutrina defende que as decisões das Cortes de Contas que julgam as contas dos administradores e demais responsáveis por bens e dinheiros públicos fazem coisa julgada administrativa, tese encabeçada por Eduardo Gualazzi. [42] Na esfera administrativa, especialmente na órbita do Poder Executivo, as decisões em questão devem ser admitidas como atos definitivos, obrigatórios e insuscetíveis de questionamento administrativo. Esgotados os meios legais de sua impugnação, tais decisões tornam-se imutáveis administrativamente, ressalvadas as hipóteses de revisão e rescisão pelo próprio órgão [43]. Contudo, sua definitividade é relativa, pois podem ser questionadas judicialmente, devido ao multirreferido princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional.
Na esteira desse entendimento, Maria Sylvia Zanella di Pietro aponta uma peculiaridade com relação à coisa julgada administrativa no âmbito das Cortes de Contas. A referida decisão faz coisa julgada, não só no sentido assinalado para a coisa julgada administrativa (preclusão da via administrativa, por não cabimento de qualquer recurso), mas também, e principalmente, no sentido de que ela deve ser necessariamente acatada pelo órgão administrativo controlado, sob pena de responsabilidade, com a única ressalva para a possibilidade de impugnação pela via judicial. [44] Assim, em relação à Administração Pública e ao Poder Legislativo, as decisões dos Tribunais de Contas têm o condão de produzir a denominada coisa julgada administrativa.
Já a Procuradora da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, Hilda Albandes de Souza, fazendo referência às lições de Marques Oliveira, doutrina:
[45] (grifos ausentes no original)Deve-se dizer que se as decisões dos Tribunais de Contas não se constituem em coisa julgada, sendo sempre possível submetê-las ao Poder Judiciário – este sim capaz e apto, constitucionalmente, a fazer a res judicata – fazem a res veredicta, de modo que, salvo no caso das contas do Presidente da República, Governadores de Estado e do distrito federal e Prefeitos – cujo julgamento é privativo do Poder Legislativo -, as decisões tomadas pelas Cortes de Contas constituem-se em coisa controladora, ou res veredicta, isto é, o produto final da função de controle, no âmbito do controle externo.
4.3.2 Competências específicas e vedação à revisão judicial
Há uma corrente doutrinária que defende a vedação à revisão judicial das decisões proferidas em julgamentos dos Tribunais de Contas. É afirmado que a impossibilidade de tais decisões fazerem coisa julgada, no sentido técnico-jurídico da expressão, não significa que elas sejam inúteis, podendo ser totalmente revistas pelo Judiciário. Elas não admitem revisão no tocante às competências constitucionais e legais, ou seja, em matérias de fato ou de direito cuja apuração objetiva remanesça reservada às Cortes de Contas. Apenas a imputação subjetiva é passível de revisão pelo Judiciário, justamente por ter o condão de causar lesão a direito, efetiva ou potencialmente. [46]
Athos Gusmão Carneiro, não obstante reconheça a natureza administrativa das atribuições das Cortes de Contas, igualmente faz ressalvas à revisibilidade das suas decisões. [47] No mesmo sentido, Castro Nunes afirma que a decisão que julga irregulares as contas tem o condão de comprovar a existência material do delito. Contudo, a imputação da autoria fica a cargo da justiça penal, que pode inclusive absolver o responsável alcançado, desde que não reveja o julgamento das contas, negando a existência material da infração financeira. [48]
Afora tais competências específicas e privativas, relativas à regularidade das contas, que constituem certamente matéria insuscetível de revisão judicial, as decisões dos Tribunais de Contas nunca fizeram coisa julgada em relação ao Poder Judiciário. O princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional garante a todos o acesso ao Poder Judiciário e tem como corolário o direito, por ele assegurado, à tutela constitucional adequada, devendo ser considerada inconstitucional qualquer norma que impeça o Judiciário de tutelar de forma efetiva os direitos lesados ou ameaçados que a ele são levados em busca de proteção. [49]
4.4 A natureza administrativa das atribuições dos Tribunais de Contas
Pelo que foi exposto até então, revela-se imprescindível no presente momento definir o que vem a ser jurisdição, fazendo-se a distinção entre a função jurisdicional e a função administrativa, e analisar o significado da aplicação de termos relacionados àquela função estatal no contexto das Cortes de Contas.
4.4.1 Distinção entre as funções jurisdicional e administrativa
No ordenamento jurídico pátrio, as funções estatais apresentam duas finalidades distintas, quais sejam, a formação do Direito (função legislativa) e a realização do Direito, que compreende a aplicação contenciosa da lei (função judicante) e a aplicação da lei de ofício (função administrativa). Ante essa classificação, podemos afirmar que administrar é aplicar a lei de ofício, enquanto que julgar significa aplicar a lei contenciosamente.
A jurisdição é uma parcela do poder do Estado mediante a qual esse se substitui aos titulares dos interesses colidentes para, imparcialmente, buscar a pacificação do conflito que os envolve, com justiça. [50] Dentre as suas características destacam-se, para efeitos deste estudo, a existência de uma lide e a sua inércia inicial. De fato, a atividade jurisdicional depende de iniciativa da parte interessada mediante o ajuizamento de uma ação (inércia inicial) e pressupõe como causa um litígio, uma lide, para cuja eliminação é aplicada a lei.
Já a atividade administrativa pode dispensar o requerimento do interessado, agindo de ofício, e não tem por pressuposto a existência de uma lide entre as partes, pois visa a satisfazer necessidades individuais e coletivas.
Destarte, não há como se confundir uma atribuição jurisdicional com atribuição administrativa. Se a atividade pode ser exercida de ofício, sem a necessidade de provocação, não poderá nunca, dentro do ordenamento jurídico brasileiro, ser classificada como jurisdicional.
4.4.2 Terminologia inadequada: aparente equiparação às Cortes Judiciárias e real significado do julgamento das Cortes de Contas
A natureza dúbia da terminologia "Tribunal" de Contas é uma das responsáveis pela defesa da função jurisdicional das Cortes. Também se revela inadequado o uso, no texto constitucional, de termos inerentes à função jurisdicional, como "julgar", "julgamento" e "jurisdição", que, juntamente com a previsão, aos membros das Cortes de Contas, de garantias, prerrogativas, vencimentos e impedimento semelhantes aos membros da magistratura, leva a crer que tais órgãos realmente exercem função jurisdicional.
Dentre os aspectos apontados, o emprego do verbo "julgar" e de vocábulos similares é, sem sombra de dúvidas, uma das mais expressivas deficiências técnicas presentes na Constituição, pois induz ao erro de se imaginar que foram empregados no mesmo sentido que possuem no âmbito do Direito Processual, o que é uma falácia. Por outro lado, é de se notar que, no Brasil, o vocábulo julgamento é empregado a todo instante e nos mais diversos sentidos. Fala-se em julgamento de concurso, julgamento de licitação. O termo jurisdição também é utilizado em outras acepções, diversas de seu significado processual. A transposição da rigorosa terminologia processual para a acepção vulgar foi responsável pela colocação dos que defendem que os Tribunais de Contas julgam, proferem julgamento, exercem jurisdição, quando, na realidade, exercem apenas atividades administrativas de fiscalização, de apreciação de contas, de concessão de aposentadorias, reformas e pensões. [51]
No contexto das Cortes de Contas, julgar as contas significa examiná-las, verificar se estão certas ou erradas. Dessa análise resulta a emissão de um parecer que apresenta extremo valor técnico, mas que não se revela um provimento definitivo, ou seja, não possui a hierarquia de uma sentença judiciária. A função exercida é puramente matemática, contábil, nada mais. [52]
4.4.3 Os Tribunais de Contas no exercício de atividades meramente administrativas
No Brasil, conforme já aludido, inexiste o contencioso administrativo. Tal sistema, contudo, não se confunde com os tribunais administrativos, cujos procedimentos estão sempre sujeitos à revisão pelo Poder Judiciário, e que existem mesmo no sistema de jurisdição una. [53] É nesse contexto que, a despeito da existência de Cortes Administrativas no Brasil, o aparelho judiciário brasileiro se enquadra no tipo unitário, visto que não dispõe de uma dualidade na outorga do serviço jurisdicional, ou seja, a função de julgar está afeta ao Poder Judiciário. [54]
Na esteira desse raciocínio, é forçoso concluir-se que os julgamentos proferidos pelos Tribunais de Contas não configuram atividade jurisdicional, pois neles não se vêem nem partes, nem propositura de ação, nem inércia inicial, e tampouco se verifica a presença de órgão integrante do Poder Judiciário. [55]
A imposição de limites à revisão judicial das suas decisões não é suficiente para conferir às Cortes de Contas o exercício da função jurisdicional. Com efeito, os julgamentos proferidos apresentam natureza puramente administrativa, visto que constituem atividade passível de exercício ex officio e não envolvem uma situação litigiosa, ou seja, o julgamento das contas não se caracteriza pela resistência do responsável pelas mesmas.
Contudo, o principal argumento utilizado para refutar a tese do exercício de parcela da função jurisdicional pelos mencionados órgãos é a ausência de definitividade em suas decisões, ou seja, a impossibilidade de formarem a coisa julgada propriamente dita. Pode-se até admitir que julgamentos dos Tribunais de Contas tenham caráter definitivo dentro do seu âmbito de atuação, de suas competências específicas, mas isto não significa que tais órgãos exerçam jurisdição, no sentido técnico-jurídico desse vocábulo.
Ressalta-se, no entanto, que a atribuição de natureza administrativa aos julgamentos das Cortes de Contas está longe de significar que tais decisões são despidas de qualquer utilidade prática. Muito pelo contrário. A referidas Cortes são órgãos especializados, compostos por pessoas altamente qualificadas a desempenhar a função institucional. Seus julgamentos podem e devem ser sempre respeitados pelos órgãos jurisdicionais, que não estão aparelhados para a realização análises mais profundas e detalhadas acerca das contas em questão.