Da possibilidade da repactuação de dívidas nos Juizados Especiais Cíveis à luz da Lei do Superendividamento

15/06/2024 às 18:46
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A Lei nº 14.181, em vigor desde 02 de julho de 2021, representa um marco no ordenamento jurídico brasileiro ao introduzir dispositivos que visam aprimorar as garantias das práticas de crédito responsável e regulamentar a prevenção e tratamento do superendividamento. Dentro desse arcabouço legal, destacam-se os artigos 104-A a 104-C do Código de Defesa do Consumidor (CDC), os quais delineiam um procedimento específico para a repactuação de dívidas.

O artigo 104-A estabelece que, mediante solicitação do consumidor superendividado pessoa natural, o juiz pode iniciar o processo de repactuação de dívidas, convocando uma audiência conciliatória. Durante essa audiência, o consumidor apresentará uma proposta de plano de pagamento com um prazo máximo de 5 anos, preservando o mínimo essencial, conforme regulamentado pelo Decreto Federal nº 11.150, de 26 de julho de 2022.

Em complemento, o artigo 104-B prevê que, em caso de falta de sucesso na conciliação com qualquer credor, o juiz, a pedido do consumidor, instaurará um processo de superendividamento para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas restantes por meio de um plano judicial compulsório.

O artigo 104-C adiciona que a fase conciliatória e preventiva do processo de repactuação de dívidas pode ser realizada de forma concorrente e opcional pelos órgãos públicos do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, podendo ser regulada por convênios específicos entre esses órgãos e as instituições credoras ou suas associações.

Os Juizados Especiais, popularmente conhecidos como juizados de pequenas causas, tiveram sua origem no Brasil com a promulgação da Constituição Federal, especialmente por meio da disposição do artigo 98, inciso I da Carta Magna. A criação dos Juizados teve como principal objetivo agilizar a tramitação de processos de menor complexidade, buscando, sobretudo, facilitar o acesso à justiça.

A garantia do acesso à justiça encontra respaldo no artigo 5º, XXXV da Constituição Federal, que estabelece que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito". Esse princípio é comumente conhecido como o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional ou princípio do direito de ação.

Foi estabelecido o sistema dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, regulamentado pela Lei 9.099/1995. Esses juizados estão vinculados à justiça estadual (comum) e têm competência para conciliação, processo e julgamento de causas cíveis de menor complexidade.

Cumpre ressaltar que estão excluídas da competência do Juizado Especial as causas de caráter alimentar, falimentar, fiscal e relacionadas aos interesses da Fazenda Pública, assim como aquelas vinculadas a acidentes de trabalho, resíduos e ao estado e capacidade das pessoas, mesmo que tenham natureza patrimonial, conforme estipulado pelo § 2º do art. 3º da Lei 9.099/95.

Ademais, é viável ingressar com demandas de menor complexidade no juizado, mesmo que ultrapassem o limite legal estabelecido.

No entanto, nesse cenário, a parte autora deverá abdicar do crédito excedente ao limite estipulado pelo art. 3º da Lei 9.099. Vale ressaltar o enunciado 1º do FONAJE, que estabelece que o "exercício do direito de ação no Juizado Especial Cível é facultativo para o autor.

O Juizado Especial Cível permite que pessoas físicas, empresas (microempresas e empresas de pequeno porte) e organizações de direito civil ingressem com ações sem necessidade de advogado quando o valor da causa for até 20 salários mínimos. Contudo, para valores maiores, de até 40 salários mínimos, a representação por advogado é necessária.

A competência dos Juizados Especiais Cíveis para processar essas demandas, em consonância com o princípio da simplicidade e celeridade estabelecido pela Lei nº. 9.099/95, é reforçada pelo entendimento jurisprudencial, como evidenciado no precedente do TJMG, que ressalta a necessidade de acesso facilitado à justiça, especialmente para os consumidores superendividados, senão vejamos:

CONFLITO DE COMPETÊNCIA - AÇÃO DE REPACTUAÇÃO DE DÍVIDAS - SUPERENDIVIDAMENTO - CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR - LEI DO SUPERENDIVIDAMENTO - COMPETÊNCIA DO JUIZADO ESPECIAL - MANUTENÇÃO. Sabe-se que no dia 02 de julho de 2021, a Lei nº. 14.181 (Lei do Superendividamento) entrou em vigor, alterando o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto do Idoso, para aprimorar as garantias de práticas de crédito responsável e dispor sobre a prevenção e o tratamento de situações de superendividamento.

A Lei do Superendividamento foi editada com o objetivo de promover o acesso dos consumidores superendividados à Justiça, o que evidencia a necessidade de que o procedimento seja realizado perante o Juizado Especial, que, em razão do seu caráter mais simples e célere, atrai com mais facilidade o consumidor.

(TJMG - Conflito de Competência 1.0000.22.146822-6/000, Relator (a): Des.(a) Marco Aurelio Ferenzini , 14ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 01/09/2022, publicação da súmula em 01/ 09/ 2022)

Os que entendem ao contrário sustentam que há necessidade de um administrador, bem como em razão da complexidade pericial.

A nomeação de um administrador, conforme previsto no artigo 104-B, é uma faculdade judicial e não uma obrigação do juízo. Pelo rito da lei, pode ser nomeada qualquer pessoa de confiança do juízo, desde que não onere as partes, inclusive podendo ser até um servidor do Poder Judiciário.

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Ademais, ainda que fosse necessária a realização de prova pericial (plano de pagamento), tal fato, por si só, não é suficiente para reconhecer a incompetência dos Juizados Especiais. Uma vez que um plano de pagamento não exige nenhuma complexidade, trata-se de mero cálculo aritmético.

Ao final, alguns argumentam que as ações sujeitas a procedimento especial não se adequam ao rito do Juizado Especial. Nesse sentido, destaca-se o Enunciado 8 do FONAJE: "As ações cíveis sujeitas aos procedimentos especiais não são admissíveis nos Juizados Especiais".

Os denominados"Procedimentos Especiais"estão delineados no Livro IV do Código de Processo Civil, o qual se subdivide em dois Títulos. Essa estrutura é composta pelos Procedimentos Especiais de Jurisdição Contenciosa, abrangendo os Capítulos I a XV do Título I, e os Procedimentos Especiais de Jurisdição Voluntária, que englobam os Capítulos I a XI do Título II do referido livro. Entre os procedimentos destacam-se a Ação de Consignação em Pagamento, Ação de Exigir Contas, Ações Possessórias, Inventário e Partilha, Embargo de Terceiros, Ações de Família e Ação Monitória.

Contudo, é crucial salientar que o procedimento referente ao superendividamento não se enquadra na categoria de procedimento especial, sendo, na realidade, regulamentado pelo Código de Defesa do Consumidor.


Conclusão

Conforme estipulado na mencionada legislação, o consumidor que almeja a repactuação de suas dívidas deverá buscar o Poder Judiciário, podendo estar acompanhado ou não por um advogado, munido de informações detalhadas sobre as dívidas que deseja renegociar. Essa medida visa possibilitar a criação de um plano de pagamento envolvendo todos os credores.

Nesse contexto, os juizados especiais, em conjunto com os Procons estaduais, desempenham um papel crucial ao facilitar as negociações e a repactuação das dívidas dos consumidores.

É importante salientar que a Lei do Superendividamento foi promulgada com o intuito de ampliar o acesso dos consumidores superendividados ao sistema judiciário, ressaltando a necessidade de conduzir o procedimento perante o Juizado Especial.

Essa escolha se justifica ao considerarmos a natureza mais simplificada e ágil do Juizado Especial, o qual atrai de forma mais acessível o consumidor que já se encontra em situação de superendividamento. Submeter tal consumidor à Justiça Comum, com sua formalidade acentuada, obstaculiza a pronta resolução da questão.

Além disso, a imposição de contratar um advogado particular para representar o consumidor já endividado perante a Justiça Comum contradiz, em princípio, o propósito da Lei do Superendividamento. Tal exigência impõe um ônus adicional ao consumidor, resultando em despesas adicionais e agravar ainda mais sua situação financeira.

Sobre o autor
Rodrigo Almeida Chaves

Defensor Público do Estado do Acre, desde o ano de 2007 atualmente lotado no Subnúcleo do Superendividamento e Ações do Consumidor.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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