Conselho de justiça: necessidade pelo conhecimento da caserna ou afronta ao direito fundamental de um juiz imparcial.

18/06/2024 às 09:50
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CONSELHO DE JUSTIÇA: Necessidade pelo conhecimento da caserna ou afronta ao direito fundamental de um juiz imparcial.

José Osmar Coelho1

INTRODUÇÃO

É comum o argumento de que é necessária a composição do Conselho de Justiça com militares, em razão da peculiaridade da vida militar e dos costumes militares, por isso a importância dessa mescla de juiz de direito e juiz militar. Entretanto, temos um juiz que - diferente do juiz de direito - está vinculado e subordinado ao executivo, pois o oficial continua militar e, mesmo durante o período em que está à disposição do Conselho de Justiça, continua ele com suas atividades na instituição militar. Em muitas ocasiões, na mesma organização militar da vítima, testemunhas, encarregado ou escrivão do IPM e do acusado.

Ser julgado por um juiz imparcial é um direito fundamental de todo acusado, lembrando que o Código de Processo Penal Militar não está à serviço de controle social ou proteção das instituições militares, muito pelo contrário: serve o código como limitador de poder2. Com o julgamento do TEDH no caso Piersack vs. Bélgica, passou-se a dividir a imparcialidade em objetiva (relacionada com o caso) e subjetiva (em relação aos envolvidos). Ou seja, não basta ser imparcial, precisa parecer imparcial. E por essa razão é necessário avaliar se a atual estrutura do Conselho de Justiça assegura o direito ao julgamento por um juiz imparcial.

IMPARCIALIDADE DO JULGADOR

A Constituição não vê de forma expressa a necessidade da imparcialidade do julgador. No entanto, isso pode ser extraído da análise sistêmica da Constituição, onde se impõe: o respeito ao devido processo legal, juiz natural, impossibilidade de juízo ou tribunal de exceção etc. Já a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos3, incorporado ao ordenamento pátrio por meio do decreto nº 678/1992, assegura de forma expressa a garantia do julgamento por um juiz imparcial.

É evidente que em uma estrutura acusatória - como posta pela CF/88 e tratados internacionais incorporados pelo Brasil ao sistema pátrio - o nosso Código de Processo Penal Militar não se adequa a esse sistema ao permitir a gestão de provas na mão do julgador4. Em uma estrutura acusatória, juiz não age de oficio. Juiz não vai em busca de provas. Só que em relação ao Conselho de Justiça isso é ainda muito pior, pois os juízes militares pertencem ao executivo em uma estrutura hierarquizada. E quem labora na Justiça Militar sabe que não é incomum juízes militares discutirem o caso, terem informações ou buscarem informações de forma extra aos autos. E, se você não acredita que isso acontece, converse com algum militar que já atuou como juiz militar.

Com base no julgamento do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, a partir do caso Piersack vs Bélgica, passou-se a distinguir o conceito de “imparcialidade objetiva” e “imparcialidade subjetiva”.

A imparcialidade subjetiva está relacionada a convicção pessoal do juiz, ou seja, ao caso no qual o juiz tem opinião sobre o fato em apuração ou em relação aos envolvidos. A imparcialidade objetiva está voltada à postura do julgador, onde não é possível existir nenhuma margem de dúvidas acerca de sua imparcialidade, ficando claro que seu julgamento é feito sem nenhum favoritismo entre as partes.

Vale dizer, a análise da imparcialidade dá-se em duas frentes: a subjetiva, que se afere por meio da convicção pessoal do magistrado e é presumida (demanda prova em contrário), e a objetiva que se constata por meio da efetivação de garantias e providências que excluem qualquer dúvida a respeito de que aquele juiz atuará com imparcialidade naquela causa e para aqueles envolvidos (vítima, imputado, testemunha), embora, por vezes, seja difícil separar as duas perspectivas5

Não basta a imparcialidade subjetiva: é imprescindível também a imparcialidade objetiva. Ou seja, não basta ser imparcial é preciso parecer imparcial. E qual aparência de imparcialidade o Conselho de Justiça possui perante a sociedade quando um militar está sendo julgado por um juiz militar que está vinculado e subordinado à força militar, e até mesmo ao sujeito passivo do suposto crime militar?

Juiz imparcial pressupõe juiz independente e independência pressupõe garantias constitucionais que visem dar segurança ao juiz de que, no exercício de suas funções, não sofrerá coações políticas ou funcionais, constrangimentos que possam ameaçá-lo da perda do cargo. A imparcialidade do juiz, portanto, tem como escopo afastar qualquer possibilidade de influência sobre a decisão que será prolatada, pois o compromisso com a verdade, dando a cada um o que é seu, é o principal objetivo da prestação jurisdicional.6 Grifos Aditados

Sendo assim, a imparcialidade vai além do subjetivismo do julgador. Com a necessidade da imparcialidade objetiva passa-se a exigir também uma confiança por parte da sociedade de que os julgamentos são imparciais e de que está sendo feita a justiça.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos também já se posicionou quanto a necessidade do respeito à imparcialidade objetiva.

A Corte determinou que a imparcialidade exige garantias subjetivas da parte do juiz, assim como garantias suficientes de índole objetiva que permitam afastar qualquer dúvida que possam ter o acusado ou a comunidade a respeito da ausência de imparcialidade. Neste sentido, a Corte precisou que a recusa é um instrumento processual que permite proteger o direito a ser julgado por um órgão imparcial.7 Grifei

Para que possamos falar em imparcialidade é necessário que exista independência do julgador, e essa independência “requer a sua separação institucional dos outros poderes do Estado”8. O que não existe com o oficial que compõe o Conselho de Justiça, tendo em vista sua total vinculação com a instituição militar e por via reflexa ao executivo, já que o Presidente da República é o responsável por nomear os comandantes das Forças Armadas, após indicação do Ministro da Defesa9. Além disso, para alçar o posto de oficial general, o candidato é indicado em lista pelo comandante da respectiva Força ao Ministro da Defesa e em seguida apresentada ao Presidente da República, que é quem promove os oficias generais10. Ou seja, os juízes militares possuem total vinculação ao executivo.

Num caso no qual atuamos, onde um graduado da Força Aérea foi denunciado pelo crime de publicação e crítica indevida contra o comandante da sua ALA, os oficiais que compuseram o Conselho Permanente de Justiça, foram oficias subordinados a esse coronel aviador supostamente ofendido pelo graduado (sujeito passivo indireto), restando evidente a total falta de imparcialidade objetiva dos julgadores. Inclusive, ao final da instrução o MPM pugnou pela absolvição, o juiz de direito votou pela absolvição e os oficiais intermediários e superior votaram pela condenação.11

Importância da imparcialidade, recentemente apreciada pelo STF:

Imparcialidade como pedra de toque do processo penal. A imparcialidade judicial é consagrada como uma das bases da garantia do devido processo legal. Imparcial é aquele que não é parte, que não adere aos interesses de qualquer dos envolvidos no processo. Há íntima relação entre a imparcialidade e o contraditório. A imparcialidade é essencial para que a tese defensiva seja considerada, pois em uma situação de aderência anterior do julgador à acusação, não há qualquer possibilidade de defesa efetiva; é prevista em diversas fontes do direito internacional como garantia elementar da proteção aos direitos humanos (Princípios de Conduta Judicial de Bangalore, Convenção Americana de Direitos Humanos, Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e Convenção Europeia de Direitos Humanos), além de ser tal garantia vastamente consagrada na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Caso Duque Vs. Colombia, 2016) e do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (Castillo Algar v. Espanha, 1998, e Morel v. França, 2000).12

A Corte Interamericana de Direitos Humanos já assentou o direito de ser julgado por um julgador imparcial - como decorrência do devido processo legal - no caso DUQUE VS. COLOMBIA, com sentença de 26 de fevereiro de 2016.

A Corte reitera que o direito de ser julgado por um juiz ou tribunal imparcial é uma garantia fundamental do devido processo legal, devendo ser garantido que o juiz ou tribunal no exercício de sua função de juiz tenha a maior objetividade para enfrentar o julgamento.13 (Tradução Livre) Grifei

Para que possamos falar em devido processo legal na Justiça Militar, é necessário que seja assegurado o julgamento por um julgador imparcial, sendo assegurada não só a imparcialidade subjetiva como também a objetiva.

Conclusão

É comum o mantra entoado de que o julgamento na Justiça Militar deve ocorrer com a mescla entre juiz de direito e juiz militar em razão das peculiaridades da caserna. Ora, tal argumento é reproduzido sem pensar, pois todas as circunstâncias da vida cotidiana de cada classe possuem peculiaridades inerentes à situação. Imaginemos o julgamento de um médico, seja por homicídio culposo ou com dolo eventual em razão da morte de um paciente decorrente de uma cirurgia extremamente técnica e de alta complexidade. Teríamos por isso o julgamento por um juiz de direito e juízes médicos por conhecerem as peculiaridades da medicina? Evidente que não. Nesse caso, provavelmente o juiz iria se valer da prova pericial e demais conjunto probatório.

Não é mais possível o Processo Penal Militar sem respeito aos direitos fundamentais. E a imparcialidade é essencial para que tenhamos um julgamento justo e em conformidade com a CF/88 e Tratados Internacionais. O que devemos ter são juízes de direito especializados na demanda que vão julgar, que possam visitar as instituições militares e conhecerem um pouco das peculiaridades da vida militar14. E que conversem, não só com os comandantes e oficias dessas unidades, mas também com os praças. Não estamos aqui defendendo o fim da Justiça Militar e sim o fim da participação de militares na Justiça Militar pois, como dito, não basta ser imparcial: é preciso parecer imparcial.

REFERÊNCIA

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ementa nº Habeas Corpus 164493. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur447799/false. Acesso em: 07 de maio de 2024.

CÓDIGO DE PROCESSO PENAL MILITAR. Decreto Lei nº 1.002, de 21 de outubro de 1969. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Decreto-Lei/Del1002.htm.. Acesso em: 07 de maio de 2024.

COMAR, D. N. M. Imparcialidade e juiz das garantias. 1. ed. São Paulo: D´Placido.

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Disponível em: https://jurisprudencia.corteidh.or.cr/vid/corte-idh-caso-duque-883976903. Acesso em: 07 de maio de 2024.

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DECRETO Nº 678, DE 6 DE NOVEMBRO DE 1992. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm. Acesso em: 07 de maio de 2024.

FERRAJOLI, L. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.

LEI COMPLEMENTAR Nº 97, de 9 de junho de 1999. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp97.htm. Acesso em 07 de maio de 2024

Rangel, Paulo. Direito Processual Penal. 18ª Ed., Lumen Juris


  1. Advogado, Mestrando em Direito, Pós Graduado em Direito Militar, Pós Graduado em Direito Constitucional, Pós Graduado em Polícia Judiciária Militar, Pós Graduado em Ciências Criminais, Professor de Direito Penal e Processo Penal Militar

  2. A função específica das garantias no direito penal, como mostrarei na terceira parte, na realidade não é tanto permitir ou legitimar, senão muito mais condicionar ou vincular e, portanto, deslegitimar o exercício absoluto da potestade punitiva. (Ferrajoli, Luigi, Direito e Razão: teoria do garantismo penal, 4. Ed. ver., São Paulo, 214, p.90/91

  3. ARTIGO 8

    Garantias Judiciais

    1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza

  4. Art. 296. O ônus da prova compete a quem alegar o fato, mas o juiz poderá, no curso da instrução criminal ou antes de proferir sentença, determinar, de ofício, diligências para dirimir dúvida sôbre ponto relevante. Realizada a diligência, sôbre ela serão ouvidas as partes, para dizerem nos autos, dentro em quarenta e oito horas, contadas da intimação, por despacho do juiz.

  5. Comar, Danielle Nogueira Mota. Imparcialidade e juiz das garantias, 1 Ed, D´Placido, pág. 263.

  6. Rangel, Paulo. Direito Processual Penal. 18ª Ed., Lumen Juris, pág. 20/21

  7. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2016/04/2e2d7d2bae74e939fba68e45dd30133d.pdf . Acesso em 09/06/2024

  8. FERRAJOLI, L. Direito e razão- teoria do garantismo penal. 4.ed, São Paulo: RT, 2014, p.534

  9. Art. 4o A Marinha, o Exército e a Aeronáutica dispõem, singularmente, de 1 (um) Comandante, indicado pelo Ministro de Estado da Defesa e nomeado pelo Presidente da República, o qual, no âmbito de suas atribuições, exercerá a direção e a gestão da respectiva Força. (LEI COMPLEMENTAR Nº 97, DE 9 DE JUNHO DE 1999)

  10. Art. 7o Compete aos Comandantes das Forças apresentar ao Ministro de Estado da Defesa a Lista de Escolha, elaborada na forma da lei, para a promoção aos postos de oficiais-generais e propor-lhe os oficiais-generais para a nomeação aos cargos que lhes são privativos.

    Parágrafo único. O Ministro de Estado da Defesa, acompanhado do Comandante de cada Força, apresentará os nomes ao Presidente da República, a quem compete promover os oficiais-generais e nomeá-los para os cargos que lhes são privativos. (LEI COMPLEMENTAR Nº 97, DE 9 DE JUNHO DE 1999)

  11. AÇÃO PENAL N.º 7000082-98.2020.7.03.0303, 3ª AUD/3ª CJM

  12. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ementa nª Habeas Corpus 164493. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur447799/false. Acesso 07 de maio 2024.

  13. Disponível em: < https://jurisprudencia.corteidh.or.cr/vid/corte-idh-caso-duque-883976903> Acesso em 07 de maio de 2024.

  14. https://www.stm.jus.br/informacao/agencia-de-noticias/item/6550-amazonia-e-poder-judiciario-vida-na-selva-e-usada-para-formar-juizes-mais-humanos. Acesso 07 de maio de 2024.

Sobre o autor
José Osmar Coelho

Advogado, Especialista em Direito Militar na Universidade Cruzeiro do Sul e Especialista em Ciências Criminais na Universidade Cândido Mendes, Pós Graduado em Politica e Estrategia pela Universidade do Estado da Bahia em convenio com ADESG/BA

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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