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O destino nas mãos da justiça: uma perspectiva penal de "A Cartomante", de Machado de Assis

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20/06/2024 às 18:27

Resumo:


  • O conto "A Cartomante" de Machado de Assis aborda o adultério e o homicídio como temas centrais, revelando as consequências desastrosas desses crimes.

  • O Código Criminal de 1830, vigente na época da narrativa, influencia diretamente as ações dos personagens e a percepção da justiça na história.

  • O feminicídio, forma extrema de violência contra a mulher, não estava contemplado no Código Criminal de 1830 e só foi reconhecido e criminalizado de forma específica em 2015 pela Lei do Feminicídio.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

"A Cartomante" de Machado de Assis aborda o adultério e homicídio, refletindo sobre a lei penal do século XIX e atualidade, revelando a complexidade da natureza humana.

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo investigar a temática do adultério e de sua pior consequência, o homicídio, presente no conto "A Cartomante" de Machado de Assis. O estudo fará uma análise jurídica das leis penais vigentes no século XIX, além de destacar a importância do código criminal de 1830. Será realizada uma análise do tipo penal do adultério e do homicídio, adentrando na legislação penal atual para discutir o crime de feminicídio. Através da literatura machadiana, o estudo ilustrará as noções de direito penal vigentes à época da narrativa do conto e seu reflexo nos dias atuais.

Palavras-chave: Direito Penal; Machado de Assis; adultério; Código Criminal de 1830; homicídio.


INTRODUÇÃO

Machado de Assis, em sua vasta obra literária, lança luz sobre as diferentes facetas da natureza humana sob a perspectiva do direito, revelando situações marcadas por atos de violência perpetrados por homens que, impelidos pelo sentimento de ultraje à sua honra, reagem de maneira socialmente aceitável, mas nem sempre justa.

Ao mergulhar nas páginas dos escritos de Machado, somos confrontados com personagens complexos que, por vezes, sucumbem à tentação de buscar reparação por meio do uso da violência. O escritor aborda tal temática de forma sutil, retratando a honra como um código moral arraigado na sociedade da época, influenciando os pensamentos e ações desses indivíduos.

O objetivo deste estudo é analisar as ações e a motivação criminosa presente no conto "A Cartomante", à luz do contexto histórico em que foram escritos, estabelecendo paralelos com a lei penal da atualidade.

Para explanar o presente artigo, foi utilizado o método dedutivo, tendo em vista que os argumentos foram embasados a partir da análise e compreensão de estudos já realizados. Aplicou-se como técnica a pesquisa bibliográfica.


1. DO CONTO “A CARTOMANTE”

"A Cartomante", é um conto escrito por Machado de Assis e publicado em 1884 na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, e depois publicado em outros livros, como “Várias Histórias ” e “Contos: uma antologia”.

O conto se inicia com uma citação de Hamlet, obra de William Shakespeare, escritor que Machado nutria grande admiração e que era frequentemente referenciado em suas obras literárias. Para o leitor mais atento, é perceptível que a complexa relação entre paixão e razão dos personagens da trama e sua conexão com a tragédia de Shakespeare desempenham um papel crucial no desenrolar da estória

A narrativa do conto se passa no ano de 1869 na cidade do Rio de Janeiro, e acompanha a intrigante jornada dos personagens Vilela, Rita, Camilo e a misteriosa antagonista, conhecida como cartomante.

Vilela é um ex magistrado que casa com Rita e passa a se dedicar a advocacia. Já Camilo, funcionário público, é um velho amigo de infância de Vilela. A amizade tem seus laços estreitados com a morte da mãe de Camilo, que contrata Vilela para tratar dos processos judiciais relacionados à morte de sua mãe. No entanto, uma reviravolta inesperada acontece quando Rita se apaixona por Camilo, dando início a um triângulo amoroso.

A trama se torna ainda mais complexa quando Camilo começa a receber cartas anônimas o acusando de adúltero. Essas correspondências provocam em Camilo uma maior cautela em relação ao relacionamento com Rita, pois fica evidente que alguém sabe do relacionamento secreto dos dois. Paralelamente, Rita passa a duvidar do amor de Camilo por ela e acaba recorrendo a uma cartomante em busca de respostas sobre seu destino.

Em determinada ocasião, Vilela encaminha uma carta de caráter urgente a Camilo, porém sem informar o motivo do convite. Intrigado, Camilo, que sempre foi cético, decide recorrer à cartomante, buscando orientação sobre o que lhe reserva o futuro. Após sair do encontro sentindo-se mais tranquilo, ele se dirige à residência de Vilela, acreditando firmemente nas palavras da cartomante de que o “amigo” não suspeita de nada e desconhece completamente o ocorrido.

Contrariando as previsões da cartomante, Camilo ficou em estado de choque ao encontrar Rita sem vida e ensanguentada. Sem ter tempo de reagir, ele é brutalmente baleado por Vilela, levando dois tiros de revólver e caindo sem vida no chão, finalizando assim a trágica narrativa.

Analisando a obra de Machado de Assis sob a ótica do direito, compreendemos o valor da literatura como uma ferramenta enriquecedora. Ela se mostra como uma aliada na compreensão e interpretação de conceitos jurídicos complexos, ao mesmo tempo em que promove a humanização e a empatia nas questões legais. Por meio das histórias, somos capazes de enxergar as reais consequências das leis e das decisões judiciais na vida das pessoas, oferecendo uma perspectiva mais profunda e sensível do mundo jurídico.


2. DA LEI PENAL VIGENTE NA ÉPOCA

"A Cartomante", é uma obra-prima da literatura brasileira, que aborda de forma realística questões morais e éticas, mostrando as consequências do adultério e da traição. Com uma perspectiva psicológica aguçada, o autor nos leva a refletir sobre as intricadas emoções do amor, da paixão e da culpa, levantando questões sobre as implicações jurídicas das ações dos personagens e nos convidando a considerar a legislação penal da época em contraste com a atualidade.

Após a conquista da independência e a promulgação da Constituição de 1824, tornou-se imprescindível a elaboração de um código penal que se adequasse à realidade da sociedade recém-formada no Brasil. Com a criação do Senado e da Câmara em 1826, e do Supremo Tribunal de Justiça em 1828, faltava ainda uma legislação que estabelecesse as normas de conduta dos cidadãos, visando garantir a ordem e a segurança no país recém-criado.

Durante o período em que se desenrola a narrativa de “A Cartomante”, o Brasil seguia o primeiro Código Criminal Brasileiro, que havia sido sancionado alguns meses antes da abdicação de D. Pedro I, em 16 de dezembro de 1830. Esse código era considerado inovador e trazia avanços legislativos significativos para a sociedade brasileira recém-independente. Há de se ressaltar que o Brasil só teve um código criminal, o do Império, que recai sobre o crime. Depois dele, o país editou os códigos penais de 1890 e de 1940, nos quais o foco passou a ser a pena. “O código atualmente em vigor é de 1940.

Apesar de ser considerado um código avançado para a época, o Código Criminal do Império ainda apresentava lacunas importantes. Entre elas estavam a falta de definição clara de culpa, a desigualdade no tratamento do escravo perante a sociedade, a ausência de separação entre Igreja e Estado, a previsão de penas como galés (trabalho forçado) e pena de morte, e a perpetuação de injustiças e desigualdades presentes nas Ordenações Filipinas, especialmente em questões de gênero que permitiam que um marido punisse sua esposa em nome de sua própria honra.Alguns pontos destacáveis eram: a exigência de individualização da pena, a previsão da atenuante da menoridade relativa e a criação do sistema do dia-multa.

Heleno Cláudio Fragoso observa que o Código Criminal de 1830 foi o primeiro Código Penal autônomo da América Latina. Sofreu a influência das ideias que então dominavam na Europa, ou seja, dos princípios liberais do Iluminismo e do utilitarismo, e sobretudo das ideias de Bentham, as quais repercutem em vários pontos do código. As influências legislativas mais importantes foram as do Código Penal Francês de 1810, e do Código Napolitano de 1819, mas sem ser nosso Código obra realmente independente, pode-se dizer que há nele originalidade em algumas disposições, a par de inegável superioridade ‘técnica’. [...] Isso o fez influenciar a legislação espanhola em 1848 e 1870 que, por sua vez, serviram de modelo a muitos códigos da América Latina”

Para Laura Aidar, no conto tragicômico de Machado lemos uma série de críticas sociais e uma denúncia da hipocrisia que reinava na sociedade burguesa daquela época. Paira em torno de A cartomante o tema do assassinato, do adultério e, sobretudo, da sustentação de um casamento vazio para manter a ordem social.

O crime de adultério e o de homicídio foram incluídos no primeiro Código Criminal do Brasil, conforme veremos a seguir.


3. DO CRIME DE ADULTÉRIO

O Código Criminal de 1830 catalogou o adultério entre os crimes contra a segurança do estado civil e doméstico e a punição, inspirada no Código francês, previa a pena de prisão de um a três anos.

Acredita-se que a inspiração para a criação de Machado de Assis tenha sido despertada pela série de casos de adultério que frequentemente eram expostos nos jornais da época. O tema do adultério era bastante comum e explorado na sociedade burguesa do século XIX. É importante ressaltar que essa realidade influenciou diretamente a escrita do renomado autor brasileiro.

Com base nos dispositivos legais do Código Criminal do Império, tanto Rita (mulher casada) quanto Camilo (adúltero), personagens principais de “A Cartomante” poderiam ser responsabilizados em conjunto pelas consequências jurídicas de sua infidelidade conjugal. Eles estariam sujeitos à pena de prisão com trabalho de um a três anos pelo crime de adultério se estivessem vivos.

A seguir, destacamos o dispositivo legal do Código Penal de 1830 referente ao crime de adultério:

Adultério

“Art. 250. A mulher casada, que commetter adulterio, será punida com a pena de prisão com trabalho por um a tres annos.

A mesma pena se imporá neste caso ao adultero.

Art. 251. O homem casado, que tiver concubina, teúda, e manteúda, será punido com as penas do artigo antecedente.

Art. 252. A accusação deste crime não será permittida á pessoa, que não seja marido, ou mulher; e estes mesmos não terão direito de accusar, se em algum tempo tiverem consentido no adulterio.

Art. 253. A accusação por adulterio deverá ser intentada conjunctamente contra a mulher, e o homem, com quem ella tiver commettido o crime, se fôr vivo; e um não poderá ser condemnado sem o outro. 1

Castro (2007, p. 379) afirma que assim como nas Ordenações, o crime de adultério deveria ser comprovado para o homem, e este, deveria manter uma segunda mulher. Enquanto para a mulher todas as formas de adultério permaneciam.

Para Daniel Gomes da Fonseca (2012), ao criar semelhante desfecho e atribuir o uxoricídio a um personagem refletido, grave, advogado e ex-magistrado, Machado promove a figuração literária e simultaneamente a denúncia de uma sociedade em que a propriedade da mulher pelo homem é sacramentada pelo Estado. O duplo assassínio é a face mais cruel e aguda do pater famílias, da família patriarcal, em que o poder está nas mãos do homem e a mulher é considerada juridicamente incapaz. As Ordenações Filipinas (Liv. IV, tít. XCV) determinam que somente “Morto o marido, a mulher fica em posse e cabeça de casal”. Voltando a casar-se, voltava a ficar juridicamente incapaz, o que se estendeu ao Decreto-lei nº 181 de 1890 – que instituiu, pela primeira vez, o casamento civil e o divórcio – e ao primeiro Código Civil, de 1.916.2

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Paulo José da Costa Júnior (2002), apresenta em sua obra um interessante histórico sobre as leis que tratavam do adultério desde o Direito Romano, a seguir reproduzido:3

“O adultério é punido desde tempos imemoriais. A lei mosaica aplicava a pena de morte por apedrejamento (lapidação), ao adúltero e à mulher. Em Roma, inicialmente a punição do adultério fazia parte do judicium domesticum, realizado pelo pater familias, que podia até mesmo matar a adúltera e o amante. Ao tempo de Augusto, a lex Julia de adulteris fez do adultério e de todos os delicia carni crimes de ação pública. A mulher era punida com o degredo, com o confisco de metade dos bens, com a infâmia e com a obrigação de portar trajes especiais. Reconhecia-se ao marido o direito de matar a mulher, pelo impetus dolori.

No século III, Alexandre Severo (Constantino) e Constâncio passaram a punir o adultério de modo mais severo, com a morte, equiparando o adultério feminino ao masculino.

Por influência do cristianismo, o adultério, considerado grave pecado, era punido com a morte, pelo fogo ou por submersão. 4

Justiniano, mantendo a pena capital para o homem, determinou que a mulher fosse internada em convento.

No direito italiano intermédio, a adúltera era punida com chicotadas c com a clausura, enquanto o amante era castigado com a morte.

O direito canônico reprime até hoje o adultério, dando-lhe tratamento diverso conforme se trate de pessoa leiga ou eclesiástica.

No século XVII, as famílias se abastardaram, fazendo do adultério quase que uma instituição pública.

Em nosso direito, as Ordenações Afonsinas (1446) puniam o adultério com o confisco, em se tratando de nobres, ou com a morte, em se tratando de peões.

As Ordenações Filipinas (1603) previam a pena de morte para a adúltera e para o amante, se o marido acusasse. Em caso negativo, puniam-se os culpados com o degredo para a África, por dez anos.

Assistia ao marido o direito de matar a mulher, se surpreendida em flagrante adultério. Poderia fazer o mesmo com o amante, se não fosse nobre.

O adultério masculino era punido com o degredo em África, por três anos, e quarentena de todos os bens, excetuada a parte da esposa.

O Código de 1830 punia a adúltera com pena de prisão e trabalho, de um a três anos (art. 250). O marido receberia igual pena, no caso de concubina teúda e manteúda.

O Código de 1890, em seu art. 279, manteve os mesmos princípios.

O Código vigente pune o adultério, em seu art. 240, sujeitando a adúltera (ou o adúltero) e o co-réu à pena que oscila de quinze dias a seis meses 5 .”

A descriminalização do adultério no Brasil ocorreu em 2005, através da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que declarou inconstitucional o artigo 240 do Código Penal que criminalizava o adultério.

O adultério era considerado um crime no Brasil e estava inserido no atual código, o Código Penal de 1940, que previa pena de detenção de 15 dias a seis meses para quem cometesse adultério. No entanto, com o passar dos anos, essa lei foi sendo questionada e considerada ultrapassada, uma vez que era vista como uma intervenção excessiva do Estado na vida privada das pessoas.

A decisão do STF em descriminalizar o adultério foi baseada no princípio da dignidade da pessoa humana e no direito à intimidade e à vida privada, garantidos pela Constituição Federal. A corte entendeu que a criminalização do adultério violava esses direitos e limitava a liberdade individual.

Com a descriminalização, o adultério deixou de ser considerado um crime no Brasil, e as relações extraconjugais passaram a ser tratadas como questões de foro íntimo, sem interferência do Estado. No entanto, é importante ressaltar que a decisão do STF não anulou as consequências do adultério em outras esferas, como no direito de família, que pode afetar questões como guarda dos filhos e partilha de bens em casos de divórcio.

3.1. DO HOMÍCIDIO NO CÓDIGO CRIMINAL DO IMPÉRIO

O desfecho de "A cartomante" é extremamente sombrio. Ao chegar à residência de seu amigo, Camilo depara-se com o corpo de Rita assassinada, sendo posteriormente alvejado por Vilela, que o mata com um tiro no peito.

O Código Criminal do Império permitia que os juízes sentenciassem os cidadãos livres a uma dezena de penas diferentes, a depender do crime: morte na forca, galés (trabalhos públicos forçados, com os indivíduos acorrentados uns aos outros), prisão com ou sem trabalho, banimento (expulsão definitiva do Brasil), degredo (mudança para cidade determinada na sentença), desterro (expulsão da cidade onde se deu o crime), suspensão ou demissão de emprego público e pagamento de multa. A prisão podia ser perpétua ou temporária, assim como as galés, o degredo e o desterro.6

Havia a previsão de penalidades para quem matasse alguém, inclusive com relação às agravantes, sendo tipificada tal conduta como homicídio. Matar alguém permanece um crime e sempre será tratado como tal, no entanto, ao longo da história, as penalidades para os responsáveis por esse ato têm sido gradativamente amenizadas, visando evitar o retorno a métodos cruéis de execução da justiça.

A determinação da pena a ser aplicada era baseada na gravidade do crime, nas circunstâncias em que ocorreu e na conduta do réu.

Vilela, um ex-magistrado e advogado conhecedor das leis, não escaparia impune ao crime de tirar a vida de sua esposa Rita e de seu amigo Camilo. Há pelo menos quatro circunstâncias que agravariam sua pena, sendo a emboscada a mais grave, vejamos:

“Art. 16. São circumstancias agravantes:

(...)

6º Haver no delinquente superioridade em sexo, forças, ou armas, de maneira que o offendido não pudesse defender-se com probabilidade de repellir a offensa.

8º Dar-se no delinquente a premeditação, isto é, designio formado antes da acção de offender individuo certo, ou incerto.

12º Ter precedido ao crime a emboscada, por ter o delinquente esperado o offendido em um, ou diversos lugares.

15º. Ter sido o crime commettido com surpresa.”

No Código Criminal de 1830, a execução da pena de homicídio geralmente era realizada por meio da pena de morte, com a condenação do réu à forca. A execução podia ser realizada em praça pública como forma de exemplo para a sociedade e como uma punição severa para o crime de homicídio. Além disso, as penas de prisão perpétua e de trabalhos forçados também podiam ser aplicadas em casos de homicídio, dependendo da gravidade do crime e das circunstâncias em que foi cometido.

A tipificação do crime de homicídio foi estabelecida no artigo 192 do mesmo código, conforme podemos observar:

“Art. 192. Matar alguém com qualquer das circumstancias aggravantes mencionadas no artigo dezaseis, numeros dous, sete, dez, onze, doze, treze, quatorze, e dezasete.

Penas - de morte no gráo maximo; galés perpetuas no médio; e de prisão com trabalho por vinte annos no minimo.

Art. 193. Se o homicidio não tiver sido revestido das referidas circumstancias aggravantes.

Penas - de galés perpetuas no grão maximo; de prisão com trabalho por doze annos no médio; e por seis no minimo.”

Ao convidar Camilo para sua residência e assassiná-lo, Vilela poderia ser sentenciado à pena de morte no grau máximo de acordo com o artigo 192 do Código Criminal do Império em vigor em meados de 1869, época em que se passa a narrativa do conto Machadiano.


4. DO FEMINICÍDIO

Em "A Cartomante", o personagem Vilela resolve o conflito com a esposa e o amigo de forma extrema, recorrendo ao ato de tirar-lhes a vida, vejamos:

[...] com as feições descompostas; fez-lhe sinal, e foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pode sufocar um grito de terror: ao fundo, sobre o canapé, estava Rita morta e ensanguentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão. Machado de Assis.

O feminicídio é a forma mais extrema de violência contra a mulher, que é resultado de uma cultura patriarcal que a subjuga. Segundo Ramos, alguns termos que podem ser associados ao feminicídio são:

A morte de mulheres pela condição de serem mulheres também é estrutural, assim como o racismo. Fruto de uma tradição que as enxerga como propriedade dos maridos e constrói a imagem da mulher do lar, dos filhos e obediente como o ideal de feminino. Um padrão reproduzido para além dos núcleos familiares e que podemos encontrar na rua, na escola, no trabalho, no governo. Sabemos que em 2021, teoricamente, esse ideal não é mais a regra graças a grandes avanços da luta feminista. Porém, até hoje o que se contrapõe a esse modelo, na prática, merece repulsa, violência e até a morte. Afinal, ainda outro dia, o assassinato de mulheres provocado pelos companheiros era autorizado pela legítima defesa da honra ou pela passionalidade dos fatos, ou seja, a culpa da morte era da mulher assassinada e a sentença tinha o aval do Estado.

Devido a questões históricas e culturais, o crime de feminicídio não estava contemplado no Código Criminal de 1830. Trata-se de um tipo de homicídio qualificado, motivado pelo gênero, que só foi reconhecido e criminalizado de forma específica com a promulgação da Lei nº 13.104 de 2015, conhecida como Lei do Feminicídio que tipificou como crime aquele cometido em contextos de violência doméstica ou familiar, com menosprezo à condição de mulher da vítima.

Anteriormente, o assassinato de mulheres era equiparado ao de homens, sem levar em consideração adequadamente as questões de gênero envolvidas.

Antes da implementação da legislação específica sobre o feminicídio, diversas medidas foram adotadas ao longo dos anos com o intuito de combater os crimes contra as mulheres. As leis foram sendo aprimoradas progressivamente visando garantir uma maior proteção às vítimas e aplicar punições adequadas aos agressores.

Daniel Gomes da Fonseca, reforça que “o desfecho, ainda, parece ter um significado maior à nossa linha de raciocínio. Vilela só atira em Camilo depois de mostrar-lhe o cadáver de Rita. Essa foi morta em sua própria residência, o amante teve de ir até lá. Ele só sucumbe após desprezar um conjunto de indícios que denunciavam o estado de Vilela (a letra trêmula no bilhete, a sisudez e desconfiança da véspera, o convite à casa em detrimento do escritório), após deixar de lado o lampejo de lucidez no qual vira Rita morta e o marido a esperá-lo e depois de ceder à tentação de buscar alívio com a cartomante. Além disso, Camilo contou com a chance de se defender de fato, em pé de igualdade, armando-se; Rita, não. Ela, na condição de “objeto possuído” – para ficarmos com a expressão de Alexandra Kollontai – tem suas chances de escapar à morte reduzidas a praticamente zero. A comparação entre o uxoricídio de Rita e o homicídio de Camilo, o contraste possível entre o semelhante destino trágico dos amantes, reforça a assimetria de condições entre homens e mulheres e a restrição ainda maior à liberdade das últimas.

A Lei do Feminicídio (Lei 13.104/15) trouxe mudanças significativas no Código Penal (Decreto-Lei 2.848/40), tornando o feminicídio uma circunstância qualificadora do crime de homicídio. Além disso, a lei modificou a Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072/90), incluindo o feminicídio na lista de crimes considerados hediondos com penas mais altas de doze a trinta anos.

De acordo com alguns especialistas no assunto, a legislação que aborda o feminicídio é considerada simbólica, uma vez que não foi embasada em estudos aprofundados de políticas criminais, mas sim em dados estatísticos de homicídios envolvendo mulheres. Nessa visão, o Estado não implementou estratégias eficazes para reduzir esses índices, mas sim criou uma medida superficial para transmitir a ideia de que algo concreto estava sendo feito. A respeito disso, cabe trazer à luz o posicionamento de Marques e Guimarães:

“O feminicídio enquadra-se perfeitamente no conceito de Direito Penal Simbólico, uma vez que se trata de criminalização de uma conduta originada sem um estudo Político Criminal, justificada apenas em dados estatísticos de violência contra a mulher, visando, de maneira clara, instituir tranquilidade na população e transparecer que o legislador está cumprindo com seu dever (2015).”

As alterações legais que provieram pela lei do Feminicídio não mudaram a substância e as consequências penais ao infrator, tendo em consideração que já existia a incidência de qualificadora por motivo torpe, se o crime fosse praticado contra a mulher, simplesmente por razões da condição de sexo feminino. Sendo percebido então, que essa alteração só reforça o caráter mais simbólico do que instrumental da norma, já que não representou, de fato, aumento no rigor punitivo, assim como não apresentou nenhuma política pública preventiva capaz de mudar o pensamento da sociedade acerca da igualdade de gênero (FEIDEN, 2016).

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Sobre a autora
Renata Rodrigues

Bel.em Direito pela Universidade do Estado de Minas Gerais.Advogada especialista nas áreas cíveis e criminais.Pós Graduada em Ciências Criminais pela Universidade Cândido Mendes.Aluna regular do Doutorado em Direito Penal da Universidad de Buenos Aires.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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