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O princípio ético do bem comum e a concepção jurídica do interesse público

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12. Primazia do Bem Espiritual sobre o Bem Material

Uma segunda conseqüência prática é a de que são mais comuns os bens espirituais do que os materiais, uma vez que a comunhão naqueles não tem limite quantitativo, enquanto a participação nestes tem esse limite (conforme já visto ao examinar a noção de participação).

Assim, o bem honesto – aquele que é em si perfeito e apetecível, captado como tal pela razão – está acima do bem deleitável – aquele que aquieta o apetite, uma vez que apraz aos sentidos – uma vez que os sentidos devem subordinar-se à parte mais nobre do ser humano, que é a razão.

Nesse sentido, não é a abundância de bens materiais, que só têm um valor instrumental para a felicidade do homem, que qualifica como boa a política adotada numa sociedade. Isto porque o bem comum não se reduz a um conjunto de bens materiais de uso público. Daí que o fim da sociedade política deva ser propiciar a que o homem possa alcançar a sua bondade existencial e fazer o bem, agindo virtuosamente: crescimento interior mais do que exterior. Ser melhores homens e melhores cidadãos contribui mais para o bem da sociedade do que qualquer incremento no bem estar material, pois a felicidade, no final das contas, não está em ter, mas em ser.

Exemplo que se destaca, na aplicação desse princípio, demonstrando como a promoção do bem particular pela autoridade pública, quando de natureza superior, contribui substancialmente para a consecução do próprio bem comum, é o da proteção legal que se dá à gestante. A maternidade, como valor fundamental para a existência e sobrevivência de qualquer sociedade humana, não pode estar subordinada a valores menos relevantes, ligados à lucratividade ou produtividade. Assim, posturas discriminatórias em relação à mulher, afastando-a do mercado do trabalho quando mãe de família, em face dos encargos sociais que a licença-maternidade supõe, são altamente nocivas para o bem comum da sociedade, que depende, para sua manutenção e crescimento, de novos integrantes, que sejam, ao mesmo tempo, sadios e equilibrados.

Assim, no Brasil, a promulgação da Emenda Constitucional n. 20/98, que fixou em R$1.200,00 o teto de todo e qualquer benefício previdenciário, desembocou na edição da Portaria n. 4883/98 do Ministério da Previdência Social, que passou a atribuir ao empregador a complementação do salário-maternidade que ultrapassasse esse teto. O Supremo Tribunal Federal, ao apreciar a ADIn n. 1946-5 (Rel. Min. Sydney Sanches), considerou inconstitucional a portaria, por introduzir elemento de discriminação contra a mulher gestante no mercado de trabalho. A própria Convenção n. 103. da OIT já previa a vedação à imposição do salário-maternidade ao empregador, como elemento de proteção à mulher.

Lembre-se também que a experiência brasileira e internacional da adoção do contrato a tempo parcial como forma de propiciar à mulher uma realização profissional externa e o tempo necessário para a atenção dos filhos, bem maior que possui, tem sido salutar e já vai dando os seus frutos, de tal forma a impedir que as situações críticas de Itália, Alemanha e França, com crescimento demográfico negativo, não obstante o estímulo estatal para a maternidade (na esperança de se reverter esse quadro), possam se repetir em outros países.


13. Limites ao Princípio do Bem Comum

Pelo princípio da preferência, o bem comum tem primazia sobre o bem particular. No entanto, essa primazia tem seus limites, impostos pelo princípio da proporcionalidade, segundo dupla vertente:

  • Limite qualitativo – a primazia do bem comum sobre o particular só vale dentro da mesma categoria de bens (não se pode exigir o sacrifício de um bem espiritual particular de ordem superior, para atender um bem material comum de ordem inferior).

  • Limite quantitativo – a prevalência do todo sobre a parte depende da quantidade de indivíduos afetados pelo sacrifício do bem próprio ao comum (não se pode sacrificar uma parte relativamente grande da comunidade em nome da preservação da própria sociedade politicamente organizada).

Assim, na relação entre o bem comum e o bem particular, há uma proporção conveniente, no campo tributário, entre o volume de impostos exigidos para a manutenção do Estado e a capacidade contributiva de cada membro da sociedade. O mesmo se diga, no campo trabalhista, entre o volume de produção e o nível salarial, quando se trata de estabelecer a distribuição do produto social por meio do ajustamento entre preços e salários.

Nesse sentido, ainda que buscasse o bem comum, seria injusta uma lei que distribuísse desigualmente suas cargas entre os componentes da sociedade.


14. Contribuição Particular para o Bem Comum

Outra conseqüência prática da compreensão do que seja o bem comum é a da participação ativa dos membros da comunidade na sua consecução.

A bondade do indivíduo é tanto maior quanto, além se buscar e alcançar a própria perfeição, for causa da perfeição de outros: ama não somente o bem, mas também comunicar esse bem aos demais.

Talvez o que explique uma visão conflituosa entre bem comum e bem particular seja a postura de considerar o bem dos demais como alheio ao próprio: não se guarda para com o próximo o mesmo amor que se tem a si mesmo. Assim, uma vez perdida a comunhão que se estabelece por se participar de um mesmo bem, chega-se à desunião, em que o bem do próximo passa a ser considerado como mal próprio. Numa sociedade em que imperasse tal postura, não haveria comunidade, mas mera agregação material de seres com apetites contrapostos.

É fundamental, portanto, que cada membro da sociedade veja no bem comum a sua própria realização e para isso colabore. Assim, todos os homens devem contribuir para o bem comum da sociedade, o que pode ser concretizado através das seguintes condutas:

  • Adquirir e praticar as virtudes morais (bom convívio social);

  • Exercer de forma competente a própria profissão ou ofício (serviço ao próximo);

  • Participar direta ou indiretamente na vida pública (cumprimento dos deveres cívicos);

  • Fomentar a união na vida social (respeito à liberdade).

A participação ativa na vida social, opinando e colaborando na consecução do bem comum, supõe o pluralismo de soluções para questões marcadas pela contingência: daí as divergências naturais entre os membros da sociedade, que devem ser superadas pelo estudo dos problemas e pela crítica positiva, que não busca destruir a opinião contrária, mas ofertar alternativas melhores para resolver os problemas sociais (crítica construtiva).

Nessa perspectiva, a "Cidade Temporal" poderá ser um reflexo da "Cidade Eterna", tal como vislumbrada por SÃO TOMÁS DE AQUINO:

"A vida eterna, além da visão de Deus, em sumo louvor e perfeita segurança, consiste na gozosa sociedade de todos os bem-aventurados; sociedade que será deleitável em grau máximo, porque cada um amará ao outro como a si mesmo, e, por conseguinte, se alegrará com o bem do outro como de seu próprio bem, o que faz que aumente tanto a alegria e o gozo de um, quanto é o gozo de todos".

A busca concreta do bem comum pelo governante ou administrador público, nos casos em que se manifestasse aparente conflito com o seu bem particular, não teria, na verdade, esse confronto, uma vez que os efeitos da postura favorável à prevalência do bem comum sobre o interesse particular são:

  • mediatos – a defesa do bem comum se espraiará necessariamente ao bem particular do administrador que a promove, uma vez que melhora as condições gerais da sociedade ou da comunidade na qual se insere;

  • imediatos – o contraste entre o reconhecimento teórico, pelo administrador, da necessidade da promoção do bem comum e do interesse público, e a prática de atender primariamente ao seu interesse privado (desvirtuado do seu verdadeiro bem particular), gera um conflito interior no administrador, capaz de desnortear a sua capacidade de promover efetivamente o bem comum (hipocrisia ou duplicidade entre o discurso e a prática), que só se resolve com a efetiva opção pelo interesse público, capaz de gerar no administrador a consciência do dever cumprido, essencial para o bom desempenho da missão que lhe é afeta (coerência entre o discurso e a prática).

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15. Conclusão – Resumo

Podemos, em síntese, dizer que:

a) O princípio do bem comum é peça chave para a compreensão das relações sociais, tanto dos indivíduos entre si, como destes com a sociedade, sendo que sua exata captação é elemento que propicia, quando respeitado, a otimização do convívio social.

b) Para se formar um conceito de bem comum, necessário se faz conjugar 5 noções básicas: finalidade, ordem, participação, comunidade e ordem.

c) Finalidade é o objetivo para o qual tende o ser e que o move por atração (causa final, que melhor explica o ser).

d) Bem é aquilo que apetece a todos, atraindo como um fim a ser buscado.

e) Participação é ter uma parte de um todo (concepção material), ou ter parcialmente o que outro tem totalmente (concepção espiritual).

f) Comunidade é a comunhão existente entre os que participam de um mesmo bem e possuem uma finalidade comum.

g) Ordem é a hierarquia entre seres distintos (subordinação de uns em relação a outros), que têm algo em comum (participação de uma mesma natureza ou fim).

h) Bem Comum é o bem singular, considerado como parte de um todo.

i) Interesse é a relação entre um sujeito e um bem capaz de satisfazer uma necessidade sua.

j) Interesse público é a relação entre a sociedade e o bem comum por ela perseguido, através daqueles que, na comunidade, têm autoridade (governantes, administradores públicos, magistrados etc.).

k) Pode haver conflito entre o interesse privado e o bem comum, quando o bem buscado pelo cidadão ou administrador público não corresponde àquele próprio para o seu aperfeiçoamento, de acordo com sua natureza (bem particular).

l) Cabe ao Estado-Juiz, ao dirimir os conflitos de interesses na sociedade, estabelecer a quem corresponde o bem em disputa, de acordo com o ordenamento jurídico vigente na sociedade.

m) De acordo com a ordem existente entre os bens, o bem comum tem primazia sobre o bem particular, como também o bem de natureza espiritual tem primazia sobre o bem de natureza material.

n) Essa primazia tem seu limite no princípio da proporcionalidade, que não admite o sacrifício de um bem de natureza espiritual a um bem de natureza material (limite qualitativo), nem de parcela substancial da comunidade em benefício do todo (limite quantitativo).

o) Cabe ao indivíduo cooperar para a realização do bem comum, vendo na sua consecução, o bem próprio.

p) Também o administrador pode perceber que a busca do bem particular dos outros, em determinadas situações, representa uma forma indireta de se obter a consecução do bem comum.

q) E, finalmente, ainda que os efeitos das ações que visem a consecução do bem comum possam não ter efeitos imediatos visíveis, a sua não implementação acarreta, mediatamente, a deterioração da sociedade em aspectos fundamentais de sua existência. Ainda que tais conclusões sejam de caráter muito geral, não são despidas de interesse, na medida em que o princípio do bem comum, como conceito gêmeo ao de interesse público, é esgrimido para fundamentar toda espécie de exigências aos membros da sociedade, sem que se saiba, ao certo, o fundamento de sua obrigatoriedade e os limites e condições de sua aplicação. Tais substratos conceituais é que procuramos trazer para reflexão, ao desenvolver o presente estudo. Esperamos que sirvam de subsídio a uma melhor compreensão do princípio do bem comum.


Bibliografia

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Sobre o autor
Ives Gandra da Silva Martins Filho

ministro do Tribunal Superior do Trabalho, mestre em Direito Público pela UnB

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS FILHO, Ives Gandra Silva. O princípio ético do bem comum e a concepção jurídica do interesse público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. -943, 1 dez. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11. Acesso em: 5 nov. 2024.

Mais informações

Roteiro da palestra proferida no Workshop Internacional sobre "Eficiência e Ética na Administração Pública", realizado em Brasília nos dias 17, 18 e 19 de maio de 2000, no Centro de Convenções Corporate Financial Center, e promovido pelo ISE – Instituto Superior da Empresa e pela ABRH-DF - Associação Brasileira de Recursos Humanos, Seccional do Distrito Federal. Texto publicado na Revista Jurídica Virtual do Palácio do Planalto, em junho de 2000

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