Fatos supervenientes nas relações contratuais e o dever de renegociar

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28/06/2024 às 17:19

Resumo:


  • Este artigo analisa a interação entre fatos supervenientes e o dever de renegociar em contratos.

  • Aborda a importância da boa-fé objetiva e da função social do contrato na renegociação.

  • Destaca a relevância do dever de renegociar diante de desequilíbrios contratuais e a proposta de inclusão desse dever no Código Civil brasileiro.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

RESUMO

Este artigo analisa a interação entre fatos supervenientes e o dever de renegociar em cenários nos quais eventos imprevisíveis surgem após a celebração dos contratos, demandando revisão e renegociação com o objetivo de buscar soluções equitativas diante dessas mudanças, com o objetivo de fomentar relações contratuais justas, equilibradas e duradouras.

Palavras-chave: Direito contratual; Onerosidade excessiva; Boa-fé objetiva; Dever de renegociar.

SUMÁRIO. Introdução. 1. Contrato: Conceito, Natureza Jurídica e Historicidade. 2. Princípios Contratuais. 3. Desequilíbrio Contratual Posterior. 4. Dever de Renegociar e suas Implicações. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

As relações contratuais são fundamentais para a organização da sociedade contemporânea, regulando desde simples transações comerciais até complexos acordos internacionais. No entanto, nem sempre as condições inicialmente estipuladas se mantêm ao longo do tempo, podendo ser impactadas por eventos extraordinários e supervenientes que alteram significativamente o equilíbrio contratual. Nesse cenário, surge a necessidade de se discutir o dever de renegociar contratos diante de fatos supervenientes, tema que se mostra relevante e atual, especialmente em tempos de incertezas como os que vivemos atualmente, marcados pela pós-pandemia de Covid-19.

Diante desse panorama, este trabalho se propõe a analisar os principais aspectos relacionados aos fatos supervenientes nas relações contratuais e o dever de renegociar. Para isso, examinaremos os fundamentos teóricos que embasam os temas, bem como as implicações legais e os desafios práticos enfrentados pelas partes envolvidas na renegociação de contratos.

O artigo adota uma abordagem indutiva e qualitativa, utilizando a técnica de pesquisa bibliográfica. Nele, são analisados os eventos imprevistos em contratos de longo prazo e a obrigação de renegociar, a partir dessa análise, é traçado um paralelo entre seus principais aspectos, além de ser examinada a possível existência do dever de renegociar no contexto jurídico brasileiro.

1. CONTRATO: CONCEITO, NATUREZA JURÍDICA E HISTORICIDADE

O direito contratual é um dos pilares fundamentais do direito civil, exercendo um papel crucial nas interações humanas, podendo ser conceituado como um acordo de vontades em que as partes manifestam seu consentimento para estabelecer certos direitos e obrigações. No entanto, segundo a melhor doutrina, essa visão foi progressivamente complementada por uma abordagem mais objetiva, na qual o contrato é dito como uma norma de comportamento que visa a autorregular os interesses envolvidos. Assim, o conceito de contrato transcende a mera expressão da vontade das partes, passando a ser compreendido também como um instrumento de regulação de interesses, adaptando-se às necessidades sociais e aos valores fundamentais do ordenamento jurídico pátrio.1

Discorrendo a respeito do tema, Gustavo Tepedino, Carlos Nelson Konder e Paula Greco prelecionam, de modo esclarecedor, a natureza jurídica do contrato, segundo o qual:

O contrato é tido como espécie do gênero negócio jurídico, reunido já não tanto pela sua estruturação na manifestação de vontade, mas por sua função de autorregulação de interesses. Considera-se, nessa perspectiva, o contrato como o negócio jurídico, bilateral em sua formação e patrimonial no seu objeto, destinado a autorregulamentar interesses.2

Vale ressaltar que a origem precisa do contrato permanece incerta, contudo, destaca-se o direito romano como um marco histórico significativo no desenvolvimento do direito contratual, uma vez que os romanos empreenderam esforços consideráveis para sistematizar o direito contratual, estabelecendo a vontade das partes como a base essencial. Além disso, distinguiram os meros pactos dos contratos, reservando a estes últimos efeitos obrigacionais e exigindo a presença de tipicidade e formalismo. Logo, a celebração de determinados tipos contratuais demandava a observância de certas solenidades que não eram exigidas nos meros pactos.3

Evidencia-se, por fim, que o direito contratual passou por uma significativa transformação no contexto contemporâneo, caracterizado pelo período pós-guerra e pela notável influência do neoconstitucionalismo, esse fenômeno foi especialmente evidente no Brasil com a promulgação da Constituição de 1988, que resultou na constitucionalização do direito civil. Diante disso, essa mudança trouxe consigo reformulações à ideologia anterior. Isto porque, essa abordagem mais moderna reconhece as assimetrias de poder e informação que frequentemente existem nas relações contratuais, contribuindo para uma análise mais equitativa e justa das obrigações estabelecidas. Justamente por essas situações, o direito civil constitucional, constrói uma teoria do contrato que, sem ignorar a autonomia privada dos contratos, não desconhece que a autonomia privada deve sofrer limitações, principalmente pelos princípios da boa-fé objetiva e a função social do contrato, o quais sustentam a dignidade da pessoa humana.4

2. PRINCÍPIOS CONTRATUAIS

Após a breve explanação sobre a conceito e natureza jurídica do contrato, torna-se oportuno abordar a principiologia que orienta este ramo do direito civil, destacando os principais princípios que o regem. Diante disso, inicialmente incumbe destacar o princípio da dignidade da pessoa humana no contexto do direito contratual, pois, como salientado por Luiz Edson Fachin:

A eficácia externa imediata da Lei Fundamental significa que a dignidade humana deve ser respeitada não somente por medidas do Estado, mas também por ações dos sujeitos privados, com relação à integridade física e ao núcleo absoluto da personalidade. Tanto no plano cível quanto no constitucional há direitos prestacionais originários diante de terceiros e que são merecedores de tutela.5

Em virtude disso, a dignidade da pessoa humana, princípio fundamental consagrado no artigo 1°, III, da CF, é considerada um valor absoluto pelo ordenamento jurídico. E, por estar estreitamente vinculada à meta de reduzir desigualdades, a dignidade da pessoa humana configura uma cláusula geral de proteção que abrange direitos tanto explícitos quanto implícitos, derivados dos princípios constitucionais, razão pela qual a dignidade da pessoa humana deve ser observada inclusive nas relações contratuais.6

Um segundo princípio norteador é o princípio da autonomia privada, que se refere à capacidade das pessoas de determinarem suas próprias relações jurídicas, de acordo com sua vontade e interesses. Ou seja, a autonomia privada permite que os indivíduos decidam livremente sobre questões que afetam seus direitos e obrigações, manifestando-se de várias formas, como na celebração de contratos, na escolha do regime de bens no casamento, na disposição de bens por meio de testamento, entre outros.7

Nesse passo, Pietro Perlingieri assevera:

Pode-se entender por “autonomia privada”, em geral, o poder, reconhecido ou concedido pelo ordenamento estatal a um indivíduo ou a um grupo, de determinar vicissitudes jurídicas como consequência de comportamentos – em qualquer medida – livremente assumidos.8

Aliado ao princípio da autonomia privada, o princípio da força obrigatória dos contratos, expresso pelo brocardo "pacta sunt servanda", determina que o contrato celebrado tem eficácia de lei entre as partes, buscando alcançar sua utilidade econômica e social. Esse princípio é essencial para conferir validade à celebração do negócio jurídico. No entanto, é fundamental ressaltar que tanto a autonomia da vontade quanto a força obrigatória não são absolutas, pois existem mecanismos jurídicos, como a teoria da onerosidade excessiva e a boa-fé objetiva, que impõe limitações a esses princípios.9

Outro princípio de extrema importância no âmbito do direito contratual é o princípio da boa-fé objetiva previsto no artigo 422 do CC, que ganhou ênfase nos tribunais com a chegada do Código de Defesa do Consumidor, é atualmente um dos princípios mais relevantes para a interpretação de contratos no país. Sendo considerado como uma cláusula geral, devido à sua significativa força normativa, este princípio orienta o comportamento das partes na relação jurídica, estabelecendo a responsabilidade de colaboração mútua visando atingir os propósitos almejados na relação contratual.10

Nesse contexto, chama-se atenção para a tríplice função da boa-fé objetiva, sendo elas: a função interpretativa do negócio jurídico, uma vez que a interpretação do negócio jurídico deve ocorrer à luz da boa-fé, diferenciando-se, assim, da boa-fé subjetiva, que está relacionada a aspectos psicológicos do indivíduo; a função delimitadora do exercício de direitos que atua para prevenir a prática irregular ou abusiva nas relações contratuais, valendo-se de princípios cunhados pela doutrina, tais como o tu quoque, venire contra factum proprium, supressio, surrectio e inciviliter agere; por fim, destaca-se a função criadora de deveres anexos em todo e qualquer contrato, assim, mesmo que o contrato nada diga, alguns deveres são implícitos, pois emanam da boa-fé objetiva, são exemplos o dever a lealdade, honestidade, cooperação, informação, cuidado e sigilo.11

Importante ressaltar que a transgressão desses deveres adicionais constitui uma forma de inadimplemento, independentemente de culpa, conforme estabelecido pelo Enunciado 24 da I Jornada de Direito Civil.12

Por fim, destaca-se o princípio da função social do contrato introduzida no Código Civil brasileiro de 2002, conforme estabelecido nos artigos 421 e 2.035, que embora detenha uma relevante carga axiológica para o direito contratual, enfrenta desafios quanto à sua definição na legislação nacional e à sua aplicação nos tribunais, devido à falta de critérios claros e à complexidade associada à sua empregabilidade.13

Diante disso, a função social do contrato implica em estabelecer que a liberdade de contratar e os efeitos dos contratos devem ser examinados considerando não apenas os interesses das partes envolvidas, mas também os interesses da sociedade e os valores constitucionais como um todo. Isso se reflete, por exemplo, na restrição da autonomia privada em casos em que um contrato viola normas que refletem interesses coletivos positivados na Constituição Federal, como a dignidade da pessoa humana, igualdade substancial, livre iniciativa, justiça social e a preservação do meio ambiente, revelando-se como uma medida necessária em benefício do bem coletivo, levando em consideração a especificidade e a função inerentes a cada tipo de contrato.14

Insta mencionar que, segundo Carlos Nelson Konder, a função social do contrato vai muito além da concepção principiológica, atuando como um postulado interpretativo metodológico, visto que ela não estabelece sanções ou reprova condutas em si, e sim guia a aplicação e tutela dos contratos. Cabendo ao intérprete de submeter a tutela e eficácia dos contratos à consideração de interesses coletivos constitucionalmente relevantes já abordados, analisando de maneira individualizada a função e especificidade de cada tipo de contrato, ficando condicionada a esses interesses coletivos, e não depende de ponderação com outros princípios.15

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3. DESEQUILÍBRIO CONTRATUAL POSTERIOR

A elaboração de mecanismos para o equilíbrio contratual não é algo recente no direito, visto que tem como um dos primeiros referenciais históricos o Código de Hammurabi, na lei nº 48, que já trazia um embrião de teorias que foram consagradas anos depois, estabelecendo, em suma, que se uma pessoa tinha um débito com juros e uma tempestade arruinava sua plantação ou destruía sua colheita, ou se a falta de água impedia o crescimento do trigo em seu campo, ela não deveria entregar trigo ao credor naquele ano. Em vez disso, deveria revisar os termos do contrato e não pagar juros durante esse período .16

Outro referencial histórico relevante frequentemente citado pela doutrina emerge do direito medieval, sendo a cláusula rebus sic stantibus. Essa cláusula implicava um condicionamento implícito dos vínculos contratuais de longa duração à manutenção do estado de fato existente no momento da pactuação, isto é, se as circunstâncias se alterassem sem culpa do devedor, o contrato poderia ser modificado ou até mesmo extinto.17

No entanto, a partir da cláusula rebus sic stantibus, diversas teorias começaram a ser formuladas para lidar com o problema do desequilíbrio contratual superveniente e encontrar uma solução para determinar quando e em que medida uma alteração superveniente ao contrato pode afetar seu efeito vinculante. À vista disso, surgiram teorias como a teoria da pressuposição de Windscheid; a teoria da base do negócio jurídico; a teoria da imprevisão, originada na França em uma decisão do Conseil d’État em 1916; e a teoria da excessiva onerosidade, incorporada ao Código Civil italiano de 1942, que foi adotada no Código Civil brasileiro de 2002.18

Ruy Rosado e Sálvio de Figueiredo, em sua análise sobre o tema, afirmam que:

As teorias explicativas têm duas vertentes: as subjetivas, que valorizam a vontade das partes, expressa ou implícita, para afirmar que a modificação da relação decorre da obediência devida à vontade; as objetivas, que consideram o desaparecimento da causa do contrato e a quebra da equivalência entre as prestações.19

No Brasil, embora haja uma considerável divergência doutrinária sobre o tema, é amplamente reconhecido que a principal teoria adotada é a da onerosidade excessiva. Contudo, é importante destacar que, tanto em julgados quanto na doutrina, outras teorias também são consideradas relevantes.

A teoria da onerosidade excessiva, é objetiva e caracteriza a possibilidade de justificar a resolução ou revisão de um negócio jurídico em que a prestação se tornou excessivamente onerosa para uma das partes contratantes devido a um acontecimento posterior à celebração, especialmente em contratos de execução continuada ou diferida. É fundamental ressaltar que a onerosidade excessiva pode afetar tanto o devedor quanto o credor, e sua análise deve considerar a contraprestação a ser adimplida, comparando-a com a situação originalmente pactuada.20

Nesse contexto, o intérprete da norma deve analisar uma série de requisitos estabelecidos no artigo 478 do CC para averiguar se a parte que pretende se utilizar da onerosidade excessiva faz jus ou não à sua aplicação. Segundo o dispositivo legal, devem estar presentes os seguintes requisitos cumulativamente: a) a exigência de contratos de execução continuada ou diferida; b) o acontecimento de eventos extraordinários e imprevisíveis após à celebração do negócio jurídico; c) o evento superveniente deve onerar de forma excessiva uma das partes contratantes; d) a extrema vantagem beneficiada pelo outro contratante em relação ao evento.21

No que diz respeito ao último requisto, Silvio Venosa preleciona:

O essencial nesse instituto é a posição periclitante em que se projeta uma das partes no negócio, sendo irrelevante que haja benefício para a outra. Desse modo, não se deve configurar a onerosidade excessiva com base em um contraponto de vantagem.22

Portanto, a flexibilização na aplicação do requisito da "extrema vantagem para outra pessoa" evidencia uma mudança de paradigma na interpretação e aplicação da resolução ou revisão do contrato por onerosidade excessiva. O enunciado 365 da IV Jornada de Direito Civil do CJF é um exemplo significativo desse movimento, ao estabelecer que essa vantagem excessiva pode justificar a resolução ou revisão do contrato, mesmo sem uma demonstração plena do desequilíbrio econômico. Essa evolução na doutrina reflete uma maior preocupação com a equidade nas relações contratuais, buscando garantir que os contratos atendam não apenas aos interesses das partes envolvidas, mas também aos princípios fundamentais do ordenamento jurídico.23

4. O DEVER DE RENEGOCIAR E SUAS IMPLICAÇÕES

A princípio, é importante notar que, especialmente diante dos problemas trazidos pela pandemia da Covid-19, o Brasil e o mundo têm dado mais atenção ao dever de renegociar. Isso se deve à necessidade de desenvolver remédios jurídicos para lidar com o desequilíbrio contratual e preservar as relações pessoais e os negócios jurídicos firmados, sendo uma solução mais eficiente, pois permite o encontro de uma solução consensual entre as partes.

No direito estrangeiro, o tema da renegociação contratual já vem sendo amplamente discutido há algum tempo e é contemplado em legislações internacionais que adotam esse dever em seus códigos, bem como o aspecto comportamental dos contratantes, como o "Hardship" previsto na Seção 2 dos Princípios Unidroit Relativos aos Contratos Comerciais Internacionais e nos Princípios Internacionais Europeus. Nesses casos, saímos da figura efetiva do simples dever anexo que nasce com a boa-fé e entramos em uma figura de um dever de negociar previsto em lei, que trazem deveres e consequências já definidas.24

Frente a esses problemas, antes de abordarmos o tema do dever de renegociar, é importante retrocedermos e discutirmos a boa-fé objetiva e o dever de cooperação entre as partes. Esse aspecto é especialmente relevante nos contratos de longo prazo, nos quais o dever de cooperação é ampliado, devendo-se observar com mais enfoque a tríplice função da boa-fé objetiva, conforme já abordado em capítulos anteriores, que traz deveres específicos aos contratantes.25

Dessa forma, torna-se relevante destacar a função da boa-fé objetiva na criação de regras de conduta, pois é nesse contexto que surgem os deveres anexos que dela derivam, bem como a sua capacidade de estabelecer normas de comportamento não previstas explicitamente no código, mas que são implícitas e se manifestam ao longo da execução do contrato.

Ao abordar o tema, Giuliana Bonanno Schunck destaca:

Decorrente da boa-fé objetiva, o dever de renegociar está intimamente ligado aos aspectos da lealdade contratual e do próprio dever de cooperação entre as partes. De fato, em razão da impossiblidade de cumprimento do contrato nos moldes inicialmente avençados, a cooperação entre as partes impõem que elas renegociem de boa-fé os termos que se tornaram prejudicados, seja em razão da incompletude contratual, seja em razão da alteração das circustâncias.26

Todavia, a cooperação e o dever de renegociação, no direito brasileiro, não são amplamente difundidos, em parte devido à falta de abordagem pelo Código Civil de 2002 do aspecto comportamental e de cooperação. Isso porque, conforme se depreende da redação dos artigos 478 a 480 do CC, apenas são abordados os pressupostos e consequências do desequilíbrio, sem detalhar como os contratantes devem agir diante de situações que alteram as circunstâncias contratuais, como eventos imprevisíveis que modificam os contratos, a quebra da base objetiva ou casos em que há alterações nas circunstâncias ou demonstrações de incompletude do contrato.27

Como resultado do desequilíbrio contratual superveniente, Anderson Schreiber aborda os comportamentos dos contratantes nessas circunstâncias, identificando dois padrões frequentes. Por um lado, é comum que o contratante beneficiado pelo desequilíbrio contratual permaneça inerte, mesmo após ser alertado pela outra parte prejudicada, aguardando para evitar uma possível ação judicial. Por outro lado, em contratos desequilibrados, o sujeito só alega o desequilíbrio quando é cobrado pelo credor.28

Assim, no que concerne ao direito de renegociar, é importante observar que a atual codificação não prevê um artigo que estabeleça efetivamente que as partes têm o dever de renegociar. Logo, as doutrinas que analisam o tema retiram fundamentos normativos no direito brasileiro do artigo 422 do CC, que trata a respeito da boa-fé objetiva. Desse modo, os contratantes que sofrem o desequilíbrio têm o dever de avisar prontamente o outro, e aquele que está se beneficiando do desequilíbrio tem o dever de responder a esse chamado para tentar uma solução extrajudicial para o conflito antes de levar o litígio a juízo. Essa abordagem representa um dever de meio, pois embora não garanta um resultado efetivo, obriga as partes a fazerem esforços para buscar uma solução.29

Outrossim, diante de determinadas circunstâncias, é razoável e ético que as partes contratantes de boa-fé busquem conduzir uma renegociação, já que muitas vezes é mais benéfico do que recorrer à arbitragem ou à judicialização, uma vez que a decisão a ser tomada será elaborada pelas próprias partes envolvidas no contrato. Isso difere de uma decisão tomada por um terceiro externo ao contrato, que, mesmo que possua conhecimento técnico, pode não estar totalmente ciente da realidade específica das partes envolvidas e, portanto, agravar a relação.30

É fundamental destacar, ainda, que a doutrina também enfatiza a renegociação como um requisito antes de se intentar uma ação judicial, o que tem gerado debates entre os estudiosos do direito, já que alguns argumentam que não se deve impedir o acesso ao judiciário ou à arbitragem apenas por não ter havido a tentativa de renegociação, em respeito ao princípio da inafastabilidade da jurisdição. Por outro lado, outra parcela sustenta que o dever de renegociar deveria ser uma condição para ingresso em juízo, argumentando que o contratante, ao propor sua demanda, deveria comprovar que tentou, de forma extrajudicial, obter a revisão contratual e não obteve sucesso.31

Nos ensinamentos de Marcos Aurélio Bezerra de Melo sobre o dever de renegociar como condição de procedibilidade da ação de revisão e resolução contratual em tempos de Covid-19, ele dispôs:

Não se trata de malferir o artigo 5º, XXXV da Constituição Federal que preconiza o princípio da inafastabilidade da jurisdição como poderia, a princípio, se entender, mas a proposta de uma regular determinação legal de requisito prévio ou uma condição de procedibilidade. O Supremo Tribunal Federal já decidiu, em repercussão geral, no Recurso Extraordinário 631.240, Relator o Ministro Roberto Barroso, em 10/11/2014, que, em regra, o prévio requerimento ao INSS de algum benefício previdenciário, configurava requisito para a postulação judicial mesmo inexistindo lei federal que imponha tal condição. Obviamente, que no caso, há uma autarquia federal com essa função e, nesse passo, mais confortável ao Poder Judiciário se mostra a prova de que o requerimento prévio não foi suficiente para atender ao direito material do cidadão.32

Somado a isso, no que tange a consequência no Brasil do não cumprimento da obrigação de renegociar pode levar a diferentes consequências legais, dependendo de como essa obrigação é interpretada e se ela está ou não prevista em alguma cláusula contratual. Assim, a doutrina favorável argumenta que, por ser um dever contratual, o descumprimento do dever de renegociação dá ensejo ao dever de ser indenizado por perdas e danos decorrentes da falta de cumprimento desse dever, isto é, o prolongamento das discussões contratuais e os custos gerados pela recusa em negociar podem ser indenizáveis, seja pela postura intransigente de uma das partes em agravar o desequilíbrio contratual, ou pela espera de ser cobrada em juízo para só então reconhecer o desequilíbrio. Contudo, mesmo na via reparatória, a questão da liquidação do dano pode não ser simples, uma vez que o dever de renegociação é de conduta, não garantindo um resultado específico. Por isso, cláusulas contratuais de renegociação podem ser úteis, estabelecendo parâmetros objetivos de readequação do contrato e prevendo cláusulas penais para o descumprimento do dever de renegociar.33

Por último, vale ressaltar que a Comissão de Juristas convocada para reformular o Código Civil de 2002 propôs em seu relatório final a inclusão de um artigo estabelecendo a pretensão ao direito de renegociação de cláusulas pela quebra da base objetiva do negócio jurídico por fato posterior ou desconhecido no momento da celebração, que dispõe:

Art. 480. Justifica-se a pretensão de renegociação das cláusulas contratuais se ocorrer a quebra da base objetiva do contrato, por fatos supervenientes ou por fatos somente conhecidos após a celebração contrato.34

Nota-se, portanto, que a proposta não abordou as potenciais consequências decorrentes da não observância da pretensão estipulada, tais como o comportamento das partes ou a obrigação de indenização. A proposta apenas codificou a pretensão de renegociação das cláusulas contratuais nos casos ali previstos, o que já representa um avanço significativo para o tema no país.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

À luz do exposto ao longo deste artigo, chegamos ao cerne de uma questão vital no direito contratual moderno: a intersecção entre fatos supervenientes, a realocação dos riscos contratuais e o dever renegociar. Os fatos supervenientes, aqueles imprevisíveis e extraordinários, capazes de desequilibrar a sinalagma funcional do contrato, impõem aos operadores do direito um desafio de releitura hermenêutica e aplicação atenta dos princípios jurídicos.

A necessidade emergente de adaptabilidade contratual em face de eventos extraordinários, não raramente conduzindo a cenários de onerosidade excessiva, suscita a imprescindibilidade de métodos jurídicos para a preservação da equidade e da justiça contratual. A teoria da onerosidade excessiva, ao ser incorporada no Código Civil de 2002, fornece um desses instrumentos de resposta jurídica às alterações de circunstâncias imprevisíveis e extraordinárias que afetam a execução de contratos de longo prazo. Entretanto, vai além ao aduzir possíveis ajustes ou dissoluções contratuais que se fazem necessárias para recuperar o equilíbrio entre as partes.

Nesse espectro jurídico-doutrinário, constatou-se a lacuna normativa sobre o dever de renegociar no direito brasileiro, o qual, apesar de não estar expressamente previsto em lei, manifesta-se como um corolário inescapável dos princípios de boa-fé objetiva e da própria dignidade da pessoa humana. Assim, discute-se a emergente importância de um diálogo efetivo entre os contratantes diante de fatos supervenientes, visando uma solução que preserve tanto o vínculo contratual quanto a justiça da relação, sob a égide da mitigação de perdas e da distribuição equânime dos riscos emergentes.

Importante destacar que eventual dever de indenizar, decorrente dessa dinâmica, não é automático. Exige-se a caracterização de uma cláusula contratual expressa ou uma recusa abusiva à renegociação e a concretização de um dano efetivo que demande reparação. O pilar das perdas e danos, neste âmbito, assenta-se na ideia de que nenhuma parte deve ser desproporcionalmente beneficiada ou onerada pela ocorrência de fatos não antecipados e alheios à sua vontade.

Por fim, é necessário reconhecer que, se por um lado o direito contratual deve proteger expectativas legítimas e proporcionar segurança jurídica, por outro, deve também possuir a maleabilidade necessária para adaptar-se às evoluções sociais e econômicas, conjurando uma resposta jurídica que respeite a dignidade humana e promova uma distribuição mais justa dos ônus decorrentes de eventos imponderáveis. Além disso, é importante observarmos como a doutrina e a jurisprudência irão se comportar acerca do tema nos próximos anos, principalmente diante da possibilidade de aprovação da nova redação do artigo 480 do Código Civil elaborada pela Comissão de Juristas responsável pela atualização do código.

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Conselho da justiça Federal. Enunciado 365. IV Jornada de Direito Civil. Disponível em: https://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/publicacoes-1/jornadas-cej. Acesso 20 de jan. 2024.

BRASIL. Senado Federal. Relatório Geral - Minuta de texto final ao anteprojeto, conforme art. 10, §2 do regulamento da comissão. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2630. Acesso 26 de fev. 2024.

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KONDER, C. N. Para além da "principialização" da função social do contrato. Revista Brasileira de Direito Civil, [S. l.], v. 13, n. 03, p. 39–60, 2018. Disponível em: https://rbdcivil.ibdcivil.org.br/rbdc/article/view/151. Acesso em: 10 de jan. 2024.

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Sobre o autor
Eduardo Carlos Ferreira

Pós-graduando em Direito Civil Constitucional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Especialista em Direito Constitucional. Advogado com atuação nas áreas do Direito Civil, Consumidor e Administrativo. Membro das Comissões de Direito Imobiliário e das Famílias e Sucessões da 20ª Subseção da OAB/RJ.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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