Superendividamento – deveres pré-contratuais

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05/07/2024 às 17:46
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SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Aspectos gerais da Relação Pré-Contratual nos Contratos de Concessão de Crédito; 2.3 A Boa Fé; 3. O Nefasto Fenômeno do Superendividamento e a Saída Legislativa; 3.1 Alterações Legislativas – Uma Mudança Necessária. 4 Considerações Finais; 5 Referências.

1. Introdução

A concessão de crédito tornou-se uma prática comum e indissociável no mercado de consumo. Cada vez mais consumidores obtém crédito, seja a título de empréstimo ou de financiamento, como forma de gerar a possibilidade de obtenção de um produto ou de um serviço.

Sem dúvidas, a concessão de crédito é um fenômeno positivo, desde que sua aquisição ocorra de maneira responsável pelo consumidor, eis que possibilita a aquisição de bens e serviços que o consumidor somente obteria no futuro, e viabiliza o aumento da produção e da comercialização dos produtos e servidos, fomentando a riqueza e o mercado de consumo. 1

Doutro lado, a obtenção de crédito de maneira irresponsável ou, até mesmo, desinformada, pode tornar-se um verdadeiro calvário ao consumidor, ao fornecedor e ao próprio mercado consumerista, gerando situações de inadimplemento, endividamento, superendividamento, e aumento dos valores e de juros como forma de compensação desta inadimplência.

As operações de crédito são responsáveis, em grande medida, não apenas para a aquisição de produtos, mas de também, e de maneira igualmente importante, para o pagamento de dívidas já existentes e que por algum motivo não puderam ser quitadas sem os ganhos atuais do consumidor. 2

Trata-se, portanto, de um serviço perigoso, pois a concessão e a tomada de crédito de maneira irresponsável podem acarretar nefastas consequências ao mercado financeiros e aos consumidores, afetando inclusive o mínimo existencial e a dignidade. 3

Por muito, a legislação pátria deixou de tratar de maneira mais específica e detalhada aspectos pré-contratuais que pudessem diminuir os riscos da concessão de crédito, o que pode ser considerada como uma das causas para a atual situação do superendividamento dos brasileiros.

Entretanto, recentemente, uma festejada alteração legislativa ocorreu no Código de Defesa do Consumidor, pela Lei n.14.181/2021, que instituiu diversas regulações, abarcando inclusive a fase pré-contratual, tipificando legalmente deveres de cumprimento cogente.

Neste breve contexto, o presente artigo tem o desígnio de examinar alguns aspectos gerais da relação pré-contratual nos contratos de concessão de crédito; os chamados deveres acessórios por parte do fornecedor; o dever da boa fé objetiva e, por fim, as principais alterações advindas da chamada lei do Superendividamento, tanto no aspecto pré-contratual, como na forma escolhida para tentativa de resolução deste nefasto problema que atinge milhares de brasileiros.

2. Aspectos Gerais da Relação Pré-Contratual nos Contratos de Concessão de Crédito – Responsabilidade Pré-Contratual e Deres Acessórios.

Por muito, a fase pré-contratual foi pouco estudada pela doutrina que debruçava-se com maior afinco na fase contratual e pós contratual, trabalhando fenômenos como o do superendividamento4. Nem por isso, sua importância não é relevante, pois quando cumpridos os deveres inerentes a esta fase, há a ampla diminuição dos riscos intrínsecos à concessão de crédito.

O Código de Defesa do Consumidor não possui um capítulo específico sobre a responsabilidade pré-contratual. Entretanto, inclusive preteritamente a alteração legislativa abordada a seguir, que institui um capítulo de prevenção e do tratamento do superendividamento, há dispositivos legais que permitiram uma construção teórica dos deveres pé contratuais. 5

A partir de uma análise sistêmica dos artigos 6, 31, 35, 46, 48 e 52, vislumbra-se uma divisão dos momentos da fase pré contratual, consubstanciadas na oferta e na negociação.

Ilícitos comuns constatados na fase pré-contratual relacionam-se ao cumprimento a oferta, bem como ao dever de informação. Especialmente a violação ao dever de informação adequada e clara ocorre antes da formação da relação contratual, de modo a incidir a responsabilidade pré-contratual, que tem como sustentação a teoria da "culpa in contrahendo".6

Há responsabilidade pré-contratual ocorre quando há ruptura arbitrária e intempestiva das negociações contrariando a oferta ou as informações disponibilizadas, o que acaba por afetar sobremaneira no processo de escolha do contratante. 7

A teoria da culpa in contrahendo adveio da investigação do autor alemão Rudolf von Jhering, que se debruçou na análise da responsabilidade por perdas e danos advindos de contratos nulos ou inacabados. Para Jhering a culpa in contrahendo é um instituto da responsabilidade civil onde a parte que tivesse conhecimento de eventual óbice ou nulidade do contrato, deveria indenizar a outra pelo interesse contratual negativo. 8

Contenta interessante, a qual há certa divergência doutrinária, gravita em torno do debate da modalidade de responsabilidade inserida na culpa in contrahendo, se contratual, extracontratual ou, ainda, uma modalidade autônoma pré-contratual. Antônio Juqueira advoga a ideia de que o contrato é um processo que perdura desde a fase pré contratual, passando pela fase contratual, a qual abarca a conclusão do contrato, a eficácia e sua execução, até a fase pós contratual, ressaltando que o dever da boa fé objetiva está presente em todas as fases. 9

Doutro lado, Daniel Silva Boa defende que por se tratar de responsabilidade civil decorrente de dano oriundo da ruptura injustificada da negociação, não se pode falar em responsabilidade contratual, mas sim extracontratual. 10

Orlando Celso da Silva Neto, em substancioso artigo que trata de deveres acessórios complementares às obrigações genéricas previstas no CDC, dispõe que a legislação consumerista brasileira, frente a presunção de vulnerabilidade e de hipossufiência do consumidor, estatui deveres legais a todos os fornecedores na fase pré-contratual. Em brevíssima síntese, por muito tempo, notadamente preteritamente ao advento da lei do superindividamento, se entendeu que os deveres legais na operação de crédito se resumiam a exigir a disponibilização de informação prévia e adequada sobre preço, montande de juros, custo efetivo de crédito e as demais condições associadas a sua aquisição. 11

Entretanto, afora estes deveres legalmente estatuídos que, como restará aduzido a seguir, restaram ampliados pela lei do superendividamento, a doutrina reconhece outros deveres que, violados, geram a responsabilidade na fase pré-contratual, a exemplo dos deveres de cooperação, de não-contradição, de lealdade, de sigilo, de correção, de informação e esclarecimento – em suma deveres que decorrem da boa-fé objetiva. 12

2. A Boa -Fé

Boa fé é um termo vago e flexível, uma cláusula geral que possui dois aspectos interessantes: de um lado institui um maior potencial de se obter justiça, eis que estabelece um sistema aberto e valorativo que acaba por privilegiar uma solução mais justa ao caso concreto; doutro lado gera insegurança jurídica, pois dificulta a previsibilidade da solução de determinado caso concreto. 13

A boa fé é um princípio que se apresenta como um mandamento de conduta capaz de instituir um molde ético de lealdade, cooperação e solidariedade, estendido as partes envolvidas da relação obrigacional. 14

Há dois tipos de boa fé: a subjetiva e a objetiva. Na boa fé subjetiva o que se analisa é o aspecto psicológico, intimo e pessoal do indivíduo, de modo que está relacionada a consciência do contratante e a sua intenção. Esta modalidade de boa fé foi privilegiada no Código Civil de 1916, entretanto, hodiernamente, o que prevalece é a boa-fé objetiva. 15

A boa fé objetiva, por sua vez, é uma regra de conduta, onde o comportamento do contratante deve estar em consonância com um padrão de conduta social honesto que o homem médio adotaria. A boa fé objetiva independe, portanto, da consciência ou da convicção de qualquer das partes. Nela se deixa de considerar o caráter subjetivo de consciência, ou seja se a parte considerava ou não que estava tomando um comportamento correto, pois sua conduta, analisada objetivamente por um terceiro, deve ser compreendida como uma conduta correta e honesta. 16 Trata-se, portanto, de uma regra de comportamento, que tem supedâneo na dignidade da pessoa humana e goza de exigibilidade jurídica. 17

Como corroborado, a boa-fé objetiva tem ampla aplicação nas relações contratuais, devendo estar presente desde a fase pré-contratual até a fase pós contratual. No direito contratual boa fé está positivada em alguns diplomas legais, como o Código Civil e o Código e Defesa do Consumidor.

O art. 422 do CC assim dispõe: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e da boa-fé” 18. O art. 113, por sua vez: “Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração” 19

Já o artigo 4º do Código de Defesa do Consumidor, que trata da política Nacional de Consumo, prevê em seu inciso III “harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores.” 20

Outro dispositivo que também deve ser citado é o Enunciado 24 do Conselho de Justiça Federal: “Em virtude do princípio da boa-fé, positivado no art. 422, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independentemente de culpa”

A boa fé objetiva institui deveres anexos e laterais dos contratantes, cumprindo relacionar alguns: dever de cuidado em relação à outra parte negocial; dever de respeito; dever de informar a outra parte sobre o conteúdo do negócio; dever de agir conforme a confiança depositada; dever de lealdade e probidade; dever de colaboração ou cooperação; dever de agir com honestidade e dever de agir conforme a razoabilidade, a equidade e a boa razão. 21

Especialmente nos contratos de concessão de crédito, a concretização da boa fé objetiva é ainda mais importante, pois há no senário atual uma verdadeira avalanche de inadimplência e de consumidores superendividados, o que afeta diretamente todo o mercado consumerista.

Há, no mercado consumerista um fenômeno de grande expansão da concessão de crédito, em patamares muito superiores a expansão da renda média do consumidor brasileiro, o que acaba por acarretar neste nefasto quadro de superendividamento. 22

Nos últimos 20 (vinte) anos, o crédito no Brasil cresceu substancialmente, notadamente nas classes que experimentaram um período de grande ascensão social, o que ocasionou, inclusive o surgimento do que ficou conhecido em diversas publicações como a nova classe média brasileira. 23

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3. O Nefasto Fenômeno do Superendividamento e a Saída Legislativa

O superendividamento dos consumidores é um fenômeno social, político e jurídico presente no mundo todo e que foi agravado com a pandemia do Covid-19. Desde a muito, tornou-se necessário o estabelecimento de um sistema de tratamento do superendividamento para os consumidores brasileiros, que não seja a simples exclusão desta pessoa da sociedade. 24

Os números hoje existentes, evidenciam a necessidade de mudança e aprimoramento legislativo para não só prevenir como remediar este nefasto problema que afeta o mínimo existencial das pessoas.

Atualmente, o que se vive no Brasil é uma notória crise do superendividamento. Segundo dados extraídos do IDEC- Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor25, 60 milhões de pessoas inadimplentes e, pior, destes 60, 30 milhões são superendividados, isto é, pessoas que não conseguem mais adimplir suas contas e vivem a margem do mercado do consumidor.

Sem dúvida, estes números fogem a qualquer lógica de normalidade, porquanto em torno de 30% da população é construída de pessoas endividadas. Se considerarmos apenas a população adulta, em torno de 40%, possuem contas atrasadas. 26

Como visto, esta nefasta situação não afeta apenas os consumidores, mas o mercado consumerista e financeiro como um todo, de modo que a alteração legislativa tratada a seguir constitui um alento a toda cadeia de crédito.

Nesse caminhar, a Associação Nacional dos Bureaus de Crédito (ANBC), dispõe que a legislação de prevenção ao superendividamento amplia a transparência nas relações entre o consumidor e o fornecedor de serviços e soluções em crédito, sendo que a avaliação do real risco casuístico na concessão do crédito tem o condão de melhorar a oferta e reduzir a inadimplência. 27

Neste contexto, já em 2012, o Bando Central recomentava a aprovação de normas internas que permitissem o tratamento do superendividamento. Muito embora houvesse no Brasil leis de recuperação de empresas, a exemplo da Lei 11.101/05, não havia qualquer previsão legal semelhante paras as pessoas naturais. Muitos consumidores, assoberbados em dívidas, passam a se quer ter o mínimo para a própria subsistência. 28

Institutos clássicos para o reequilíbrio econômico, como a revisão por onerosidade excessiva ou a redução de obrigações excessivamente onerosa, considerados remédios com desígnio de reajuste da sinalagma, atuam somente sobre a causa atentatória e superveniente a prestação, mostrando-se insuficientes para a solução deste nefasto problema ora tratado, e que surge por situações diversas: falta de análise na concessão do crédito, desinformação pré-contratual, redução da de renda, desemprego, divórcio ou separação etc.) 29

Tornou-se imperioso o estabelecimento de um sistema de tratamento do superendividamento para os consumidores pessoas físicas, que não sua exclusão da sociedade, pois o custo real da inadimplência estava tornando o mercado consumerista e a conceção de crédito cada vez maiores caro. 30

Iniciou-se assim no Brasil, no ano de 2003, os trabalhos para a compreensão e busca de soluções para o superendividamento. Foi realizada uma propulsora pesquisa empírica sobre este fenômeno, presidia pela eminente Cláudia Lima Marques que realizou apontamentos sérios, concretos e reveladores sobre pessoas naturais que comprometiam o núcleo familiar em créditos equivalentes à mais da metade da renda total, bem como de pessoas que por fatos supervenientes restaram impossibilidades de adimplir obrigações e créditos assumidos. 31

Seguindo a linha do estudo exibido, foi apresentado, em 2005, o anteprojeto de Lei no Congresso Brasileiro de Direito do Consumidor, quando da comemoração dos 15 anos do Código de Defesa do Consumidor. 32 Cumpre registrar que Cláudia Lima Marques é a grande cabeça mentora do Superendividamento no Brasil.

Este estudo, acompanhado de um projeto piloto, que colocavam em prática o resultado da pesquisa, estabelecia a conciliação voluntária do devedor de boa fé, com todos os seus credores, em audiências que eram marcadas depois do expediente do fórum. Este projeto, capitaneado por duas juízas, as então Mestrandas, hoje Doutoras pela UFRGS, Clarissa Costa de Lima e Karen Danielevicks, teve sucesso imediato e contou com o apoio incondicional de dos grandes credores, bancos e mais tarde das administradoras de cartões de crédito e de débito, além de ter tido grande repercussão midiática. 33

Após alguns anos, com ampliação dos estudos, escritos, debates e eventos sobre a temática, foi lançado o PLS 283/2012, aprovado no Senado Federal, e que tramitou na Câmara dos Deputados sob o número 3515/2015.

Trata-se de um projeto de lei, sancionado com poucos vetos pelo Presidente da República, oriundo de uma Comissão de Juristas liderados pelo eminente Ministro do Superior Tribunal de Justiça Antônio Herman Benjamin e que aperfeiçoa sobremaneira a disciplina da concessão de crédito, dispondo sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento, tema de ruma relevância para o mercado consumerista e para a economia do país. 34

3.1 Alterações Legislativas – Uma Mudança Necessária

Discorrido sobre o nefasto fenômeno do superendividamento, cumpre conceituar e tratar das recentíssimas alterações legislativas, que abarcam tanto a fase pré-contratual, numa espécie preventiva, como o período pós superendividamento, como uma remediação.

A lei do superendividamento é a lei 14.181/2021, que dispõem que se entende por superendividamento a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação. 35

A partir deste artigo, infere-se alguns pressupostos para que o enquadramento consumidor na condição de superendividado: (i) pessoa natural; (ii) a dívida deve ter sido contraída de boa fé; (iii) impossibilidade de adimplir a totalidade de suas dívidas de consumo, tanto as exigíveis como as que vencerão, sem o comprometimento do mínimo existencial.

As dívidas do superendividamento podem ser compostas por quaisquer compromissos financeiros assumidos decorrentes de relação de consumo, inclusive operações de crédito, compras a prazo e serviços de prestação continuada. 36

A atualização do CDC é por demais importante e retira do âmbito abstrato da legislação infraconstitucional o “mínimo existencial”, instituindo uma clara oxigenação dos limites do sacrifício. 37

O princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais se aplicam a toda ordem jurídica e social, especialmente considerando características das relações de consumo como a (hiper) vulnerabilidade dos consumidores. Nesse caminhar, a efetivação da dignidade passa inclusive pelo conceito de mínimo existencial que esta naturalmente ligado as classe mais pobres da população brasileira. 38

O mínimo existencial pode ser compreendido como um conjunto de prestações naturais indispensáveis para assegurar a cada pessoa uma vida digna e saudável, constituindo um núcleo essencial dos direitos fundamentais, blindado por qualquer intervenção por parte do Estado e da Sociedade. 39

Entretanto, os dispositivos relacionados ao superendividamento não se aplicam ao consumidor cujas dívidas tenham sido contraídas mediante fraude ou má-fé, sejam oriundas de contratos celebrados dolosamente com o propósito de não realizar o pagamento ou que decorram da aquisição ou contratação de produtos e serviços de luxo e de alto valor. 40

A título de precaução, a Lei estabelece como princípio da Política Nacional das Relações de Consumo a prevenção e tratamento do superendividamento como forma de evitar a exclusão social do consumido, estabelecendo como instrumento para a execução desta Política Nacional das Relações de Consumo a instituição de núcleos de conciliação e mediação de conflitos oriundos de superendividamento. 41

A comemorada lei também institui mais três incisos no artigo que preconiza os direitos básicos do consumidor, quais sejam: XI - a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de prevenção e tratamento de situações de superendividamento, preservado o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, por meio da revisão e da repactuação da dívida, entre outras medidas; XII - a preservação do mínimo existencial, nos termos da regulamentação, na repactuação de dívidas e na concessão de crédito; XIII - a informação acerca dos preços dos produtos por unidade de medida, tal como por quilo, por litro, por metro ou por outra unidade, conforme o caso.

Com a mesma finalidade preventiva, o estabelecimento de prazos de carência em caso de impontualidade das prestações mensais ou que impeçam o restabelecimento integral dos direitos do consumidor e de seus meios de pagamento a partir da purgação da mora ou do acordo com os credores, passa a ser considerado cláusula abusiva e nula de pleno direito. 42

A revolucionária legislação do superendividamento também abarca outra faceta da fase pré-contratual, a da publicidade. Na oferta de crédito, tanto publicitária ou não, fica vedado, expressa ou implicitamente: II - indicar que a operação de crédito poderá ser concluída sem consulta a serviços de proteção ao crédito ou sem avaliação da situação financeira do consumidor; III - ocultar ou dificultar a compreensão sobre os ônus e os riscos da contratação do crédito ou da venda a prazo; IV - assediar ou pressionar o consumidor para contratar o fornecimento de produto, serviço ou crédito, principalmente se se tratar de consumidor idoso, analfabeto, doente ou em estado de vulnerabilidade agravada ou se a contratação envolver prêmio; V - condicionar o atendimento de pretensões do consumidor ou o início de tratativas à renúncia ou à desistência de demandas judiciais, ao pagamento de honorários advocatícios ou a depósitos judiciais. 43

Outros dispositivo sobremaneira importante referente a fase pré contratual na concessão de crédito, e que abarca os então deveres acessórios e complementares às obrigações de concessão de crédito defendidos por Orlando Celso da Silva Neto no ano de 2015 44, é o artigo ”54, D” , presente no Capítulo VI-A, que trata da prevenção e do tratamento do superendividamento, do CDC.

O aludido dispositivo estatui que: no fornecimento de crédito e na venda a prazo, além das informações obrigatórias previstas no art. 52 deste Código e na legislação aplicável à matéria, o fornecedor ou o intermediário deverá informar o consumidor, prévia e adequadamente, no momento da oferta, sobre: I - o custo efetivo total e a descrição dos elementos que o compõem; II - a taxa efetiva mensal de juros, bem como a taxa dos juros de mora e o total de encargos, de qualquer natureza, previstos para o atraso no pagamento; III - o montante das prestações e o prazo de validade da oferta, que deve ser, no mínimo, de 2 (dois) dias; IV - o nome e o endereço, inclusive o eletrônico, do fornecedor; V - o direito do consumidor à liquidação antecipada e não onerosa do débito, nos termos do § 2º do art. 52 deste Código e da regulamentação em vigor. 45

Todas as referidas informações, juntamente com aquelas constantes no artigo 52 do CDC, devem constar de forma clara e resumida do próprio contrato, da fatura ou de instrumento apartado, de fácil acesso ao consumidor.

A introdução deste capítulo que trata exclusivamente da prevenção e tratamento ao superendividamento no Código de Defesa do Consumidor, viabilizará uma excelente modificação dos rumos do Poder Judiciário e do consumidor. Não há perdão de dívidas, mas sim a instituição da cultura do pagamento 46

Trata-se de uma lei salutar não só para o consumidor superendividado, como também ao credor, pois viraliza o recebimento de valores que, possivelmente, jamais receberia ainda que vilipendiasse tempo e dinheiro no Poder Judiciário, bem como para o mercado consumerista e financeiro como um todo.

Este sistema de prevenção de práticas de abusivas na oferta de crédito tem por objetivo proteger grupos mais vulneráveis da sociedade, como idosos e analfabetos. Em uma relação de concessão de crédito, o consumidor é sempre a pessoa mais vulnerável, o que torna necessário que as empresas adotem uma postura ética de boa-fé oferecendo soluções financeiras adequadas ao orçamento de cada consumidor, de modo a equilibrar a relação diminuir o risco da ocorrência de dívidas. 47

Os direitos fundamentais, antes de exigirem reparações e compensações são carentes de prevenção e precaução, mas estes aspectos fluíram com nitidez na Lei do Superendividamento. Muitas das referidas medidas possibilitarão a inibição de práticas abusivas e atentatórias no mercado financeiro, fomentando o poder de fiscalização dos órgãos públicos o que pode diminuir a sobrecarga do Poder Judiciário. 48

O rol de práticas abusivas constantes no artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor, ganhou substancioso reforço com a nova previsão legal constante no artigo 54-G. Por exemplo, a realização de cobrança ou de débito em conta de qualquer quantia que houver sido contestada pelo consumidor em compra realizada com cartão de crédito ou similar, enquanto não for adequadamente solucionada a controvérsia, desde que o consumidor haja notificado a administradora do cartão com antecedência de pelo menos 10 (dez) dias contados da data de vencimento da fatura, assim como a recusa de não entrega ao consumidor ao garante e aos outros coobrigados cópia da minuta do contrato principal de consumo ou do contrato de crédito passam a ser hipóteses expressamente abusivas e vedadas pela legislação consumerista.

Já a título de remediação, uma das principais alterações legislativas que institui substancial vantagem é a possibilidade de os consumidores superendividados renegociarem todas as suas dívidas ao mesmo tempo, constituindo a chamada de negociação em bloco. Assim, os consumidores conseguem adimplir o conjunto das dívidas com sua única fonte de renda, como na maioria do caso dos consumidores superendividados. 49

O primeiro passo para recomeçar a vida financeira, é o consumidor superendividado procurar os órgãos de Defesa do Consumidor ou o Poder Judiciário para o início de uma negociação. É importante que o consumidor organize as informações de todas as suas contas vencidas e vincendas e que calcule o valor de seu mínimo existencial, entendido como o valor das despesas necessárias a sobrevivência da pessoa e de seus dependentes, formulando um plano de pagamento que abarque todos os credores. 50

Neste norte, a lei prevê que a requerimento do consumidor superendividado pessoa natural, o juiz poderá instaurar processo de repactuação de dívidas, com vistas à realização de audiência conciliatória, presidida por ele ou por conciliador credenciado no juízo, com a presença de todos os credores de dívidas previstas no art. 54-A deste Código, na qual o consumidor apresentará proposta de plano de pagamento com prazo máximo de 5 (cinco) anos, preservados o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, e as garantias e as formas de pagamento originalmente pactuadas. 51

O não comparecimento injustificado do credor ou seu um procurados com poderes especiais para transigir a esta audiência pode acarretar graves danos. Isso porque a lei institui a suspensão da exigibilidade do débito e a interrupção dos encargos da mora, bem como a sujeição compulsória ao plano de pagamento da dívida se o montante devido ao credor ausente for certo e conhecido pelo consumidor, devendo o pagamento a esse credor ser estipulado para ocorrer apenas após o pagamento aos credores presentes à audiência conciliatória. 52

Obtida a conciliação com quaisquer dos credores, a sentença judicial homologará o acordo e descreverá o plano de pagamento da dívida, constituindo um título executivo com força de coisa julgada. 53

Entretanto, se não obtida a conciliação com quaisquer dos credores, a requerimento do consumidor, o juiz instaurará processo por superendividamento para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório e procederá à citação de todos os credores cujos créditos não tenham integrado o acordo porventura celebrado. 54

Este plano compulsório deve assegurar aos credores, no mínimo, o valor principal da obrigação, corrigido monetariamente por índices oficiais de preço, e preverá a liquidação total da dívida, após a quitação do plano de pagamento consensual, em, no máximo, 5 (cinco) anos, sendo q primeira parcela devida no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias da homologação judicial. 55

Não há dúvidas da importância, proeminência e potencial desta legislação que indubitavelmente aperfeiçoa a fase pré contratual, instituindo deveres que diminuem os riscos inerentes e que equilibram a relação contratual de concessão de crédito e, ao mesmo tempo, cria mecanismos que possibilitam a redução de pessoas superenvidadas, garantindo, sempre a efetivação de direitos fundamentais como a dignidade da pessoa humana.

5. Considerações Finais

O aumento da concessão de crédito foi acompanhado do aumento de pessoas endividadas. Ainda que se trate de um fenômeno positivo, a concessão de crédito é um serviço perigoso, pois se obtido ou concedido de maneira irresponsável pode acarretar nefastas consequências ao mercado financeiros e aos consumidores.

Por outro lado, a observância e o cumprimento de deveres pré contratais diminui, consideravelmente, os riscos inerentes a concessão de crédito. O código de Defesa do Consumidor previa de maneira não substanciosa os deveres legais a todos os fornecedores na fase pré-contratual. Entendia-se que os deveres legais na operação de crédito se resumiam, basicamente, a exigir a disponibilização de informação prévia e adequada sobre preço, montande de juros, custo efetivo de crédito e as demais condições associadas a sua aquisição.

A concessão de crédito de maneira desenfreada e sem a regular informação, ocasionou o chamado superendividamente de milhares de brasileiros, afetando inclusive a dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial. Como visto, o superendividamento dos consumidores é um fenômeno social, político e jurídico presente no mundo todo e que foi agravado com a pandemia do Covid-19.

Neste contexto, recentissimamente, foi aprova a Lei do Superendividamento que aprimora diversos aspectos na relação de concessão de crédito, tanto na fase pré contratual, a título de prevenção, como na fase pós superendividamento, a título de remediação.

O presente artigo, relacionou as principais alterações legislativas instituídas pela Lei do Superendividamento, lei 14.181/2021, no Código de Defesa do Consumidor, tanto na fase pré contratual como pós contratual.

Trata-se de uma legislação extremamente salutar ao mercado financeiro, e aos consumidores superendividados, que terão a possibilidade de negociar suas dívidas e adimpli-las.

Uma legislação muito comemorada e que possui forte proeminência e potencial, eis que aperfeiçoa sobremaneira a fase pré contratual, instituindo deveres que diminuem os riscos inerentes e que equilibram a relação contratual de concessão de crédito e, ao mesmo tempo, cria mecanismos que possibilitam a redução de pessoas superenvidadas, garantindo, sempre a efetivação de direitos fundamentais como a dignidade da pessoa humana.

6 Referências

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BRASIL. Lei nº 14.181, de 01 de julho de 2021. Altera a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), e a Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso), para aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14181.htm

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