Resumo: A presente pesquisa aborda a análise da Mutação Constitucional frente ao ordenamento jurídico brasileiro comparado ao ordenamento jurídico argentino. Neste sentido, é indispensável averiguar o possível conflito entre a soberania nacional dos Estados envolvidos na pesquisa e o Sistema Interamericano de Proteção de Direitos Humanos. O problema se centra na possibilidade de haver uma mudança na aplicação das normas constitucionais sem que haja alterações em seu texto e com isso acontecer uma mudança significativa que altere a vida da sociedade de maneira substancial sem que a Constituição seja alterada. A mutação constitucional se sustenta na condição da evolução da sociedade que a própria constituição rege, ou seja, que a constituição não necessita de alteração em seu texto bastando uma interpretação de acordo com as aspirações daquela sociedade, já que a Constituição de uma nação nada mais é do que a vontade do povo.
Palavras-chave: Mutação Constitucional, Ativismo Judicial, Paradigmas Constitucionais, Ordenamento jurídico Brasileiro, Ordenamento jurídico Argentino.
INTRODUÇÃO
Investigação que busca desvendar as perspectivas reais de que o paradigma do fenômeno da mutação constitucional modifique os fundamentos do próprio direito constitucional, notadamente o que diz respeito ao ordenamento jurídico Brasileiro perfazendo um comparativo ao ordenamento jurídico Argentino.
O fenômeno denominado mutação constitucional foi apreendido na tradição jurídica ocidental no final do século XIX, a partir da compreensão de que as constituições podem sofrer mudanças por meio de processos informais, nos quais há a modificação de sentido de determinada norma constitucional, sem a alteração de seu texto. De lá para cá, poucos foram os estudos que se debruçaram sobre o tema, em especial quanto às questões pertinentes aos seus limites.
Diante desse cenário, que vai do final do século XIX ao início deste, coloca-se como objetivo do presente trabalho contribuir com uma fundamentação hermenêutica à noção de mutação constitucional, que se demonstre compatível com a força normativa da constituição e possibilite a elaboração de limites para o seu controle.
Nesse sentido, o presente estudo apresentar o fenômeno no âmbito do ordenamento jurídico Brasileiro comprado ao Argentino, no qual ocorre perceptível mudança no âmbito da norma, desde que compreendido de forma compatível com a interpretação do programa da norma.
Nesse quadro, a mutação constitucional é aqui concebida como a alteração ocorrida no interior da norma constitucional, ou seja, dentro do próprio direito e não fora dele. Calcado nesse percurso, são feitas considerações sobre seus limites.
Aponta-se, nesse sentido, o programa normativo como uma primeira modalidade de limite às mutações constitucionais, com destaque para importância do texto constitucional. E, posteriormente, como uma segunda modalidade, têm-se os limites que podem ser extraídos do horizonte de compreensão do programa normativo, sobre os quais se apresenta, exemplificativamente, na experiência brasileira e argentina.
1. O FENÔMENO DA MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL
As Constituições classificadas como rígidas não pretendem, como já dito, ser eternas na forma como nasceram. Possuem uma perspectiva de mudança, mas demandam, para tanto, processo complexo que impõe certas dificuldades ao poder reformador, como limites expressos e tácitos e requisitos específicos. E, quanto mais difíceis se apresentam as técnicas de reforma, mais fortemente aparecerão os meios difusos de modificação constitucional, para a adaptação do Texto Maior às exigências prementes da sociedade.
Seria errôneo, entretanto, e mesmo ingênuo, pensar-se que as Constituições rígidas somente pudessem sofrer alterações através de técnicas jurídicas expressa e previamente estabelecidas, e que o impacto da evolução política e social somente pudesse atuar sobre elas através desses canais, e que a vida deveria necessariamente acomodar-se, em seu eterno fluxo de progresso, dobrando-se com docilidade ao sabor dessas fórmulas e apenas ao juízo de políticos e legisladores.
Nesse sentido, além das possibilidades previstas pelo Poder Constituinte no momento de criação da Constituição, outras práticas acabam por propiciar o redimensionamento da realidade normativa constitucional, através dos chamados processos informais ou indiretos de modificação. Com base nesse fundamento, as Constituições, embora rígidas, transformam-se espontânea e continuamente, ainda que de modo lento e imperceptível. Esse meio difuso de se buscar o equilíbrio, sempre dinâmico, da norma escrita no tempo e no meio em que se insere assume diversos nomes na doutrina, a exemplo de revisão informal ou transição constitucional, processo não formal, vicissitude constitucional tácita, mudanças constitucionais difusas, processos de fato, mudança material.
Observa-se, destarte, que as denominações não fogem de um conceito de natureza informal. Hoje em dia, temos esses processos reunidos, para estudo doutrinário, sob a denominação de mutação constitucional. Fala-se, aqui, de uma mudança informal do sentido, do significado e do alcance de uma norma constitucional, sem alteração de sua letra, que pode acontecer por diversos meios, mas sempre em virtude da discrepância entre realidade fática e norma escrita, partindo de uma concepção de Constituição viva. “Uma teoria jurídica da mutação constitucional e seus limites só seria possível através do sacrifício de um dos pressupostos metódicos básicos do positivismo: A separação estrita entre Direito e realidade”. Doutrinadores alemães no final do século XIX, ao constatar abismais disparidades entre o texto constitucional formal e a realidade circundante, passaram a distinguir a mutação constitucional da reforma constitucional. Conforme lição de Pinto Ferreira, a Constituição pode sofrer mudanças formais em seu texto, chamadas de reforma constitucional, ou materiais no conteúdo de suas normas, entendidas como mutação constitucional. A mutação constitucional é um processo de natureza informal, não prevista expressamente pelo legislador, um conjunto de circunstâncias que fazem com que as normas tenham seu sentido modificado segundo uma necessidade social.
Várias são as diferenças encontradas entre a reforma, alteração formal da Constituição, e a mutação, alteração informal. A que parece mais evidente é quanto ao lugar onde percebemos essas mudanças. Laband detectou o fenômeno da mutação ao examinar as mudanças ocorridas na Constituição Alemã de 1871, caracterizando-o como a alteração ocorrida no sentido da norma, sem que houvesse a modificação de seu texto. Seu conceito de mutação foi traduzido para o espanhol por Urritia: “A verdadeira essência da lei do Estado consagrada na constituição pode sofrer uma modificação radical e significativa sem que o texto constitucional tenha sua expressão escrita alterada”. No caso de reforma, a mudança ocorre no próprio texto constitucional, enquanto a mutação se perfaz somente no mundo sensível. “Sem qualquer alteração no texto, as Constituições vão se modificando, assumindo significados novos, de forma tal que é difícil conhecer de modo adequado a estrutura fundamental de um Estado, as relações de governo, o funcionamento de órgãos constitucionais, pela simples leitura da Lei Maior”. A mutação altera o sentido e a abrangência do comando constitucional, consiste em uma alteração do significado de determinada norma da Constituição, sem observância do mecanismo constitucionalmente previsto para emendas e, além disso, sem que tenha havido qualquer modificação de seu texto.
Essa característica, a possibilidade de alteração da letra da norma, é uma diferença encontrada entre esses dois meios de mudança constitucional que se faz de grande importância para a aplicação do Direito, vez que permite a metamorfose da Carta Suprema, sem que se tenha que transformá-la em uma colcha de retalhos.
Mesmo porque, assim como o texto original, aquele modificado por reforma também pode vir a sofrer transformações. Jellinek aponta outro critério para diferenciar a reforma e a mutação constitucional, além da alteração ou não do texto da norma: a intenção de mudar. A reforma, segundo ele, advém de um ato de vontade do legislador, enquanto a mutação se dá devido a fatos que não pretendem mudar o texto constitucional, mas acabam por exigir uma mudança do sentido da norma para que a mesma não se torne obsoleta em razão da mutação da própria sociedade. Em suas palavras, traduzidas para o espanhol por Christian Förster: Por reforma da constituição entendo a modificação dos textos constitucionais produzidos por ações voluntárias e intencionais. E por mutação da constituição, entendo a modificação que deixa seu texto intacto sem alterá-lo formalmente que é produzida por fatos que não precisam ser acompanhados da intenção, ou consciência de tal mutação.
Heller aprofunda o conceito, atentando para os elementos não jurídicos que fazem da mutação constitucional um mecanismo informal. Os métodos formais são assim chamados não só porque alteram o texto da norma ou porque dependem da vontade do legislador, mas também por estarem previstos no próprio texto constitucional, possuindo, assim, procedimento próprio e, portanto, formal. Já as mudanças difusas são legítimas a partir de uma visão material de Constituição. Isso não quer dizer que elas sejam formalmente opostas à Constituição, pelo contrário, nascem dos próprios princípios constitucionais, da ideia de ordenamento jurídico vivo, mutável.
Algumas possibilidades de mutação encontram, inclusive, legitimidade expressa no texto constitucional, a exemplo da evolutiva função de interpretação autônoma entregue ao Supremo Tribunal Federal brasileiro pelo legislador constituinte. Outras possibilidades surgem da necessidade de evolução e adaptação da norma às novas exigências da sociedade ou da mudança de perspectiva que se tem de determinados dispositivos. Para Smend, essa transformação informal se deve a um processo de integração advindo de uma concepção de Constituição como movimento. Assim sendo, a mutação é uma consequência da própria Constituição, que, evidentemente, não pode prever todas as possíveis combinações de casos concretos, que a experiência cotidiana possa proporcionar.
Assim como geralmente a aplicação jurisprudencial dos textos jurídicos em vigor está sujeita às diversas necessidades e opiniões dos homens, o mesmo acontece com o legislador, quando interpreta a Constituição por meio de leis ordinárias. O que parece inconstitucional em um momento surge mais tarde de acordo com a Constituição e, assim, a Constituição sofre, ao mudar sua interpretação, uma mutação. Não apenas o legislador pode causar tais mutações, mas também podem ser produzidas de forma eficaz por meio da prática parlamentar, administrativa ou governamental e dos tribunais.
Hsü Dau-Lin levanta a lentidão do processo como mais uma característica da verfassungswandlung, que, por não sofrer interferência do poder reformador, mas de um poder difuso, advindo de fatores cotidianos da vida em sociedade, acontece de forma imprevisível e, muitas vezes, quase imperceptível. O fator tempo mostra-se fundamental na compreensão da mutação, não como requisito dessa, mas para sua percepção. Por ser um processo lento, a mudança só seria constatada quando comparados momentos diferentes e afastados da realidade constitucional. A afirmação da ocorrência da mutação informal, portanto, pressupõe uma comparação temporal que conclua pela diversidade de compreensão de um mesmo enunciado normativo. Na prática, referida lentidão corresponde ao lapso de tempo entre a consolidação da mutação no mundo sensível e sua consequente assimilação pela novel interpretação do texto constitucional.
No entanto, o decorrer de certo período de tempo, a partir da criação de uma Constituição, não é necessário para que ocorram as mutações, afinal, embora lentas, elas podem ser muito mais frequentes que as reformas, justamente por serem métodos informais e pelo seu próprio fundamento. Nem mesmo os métodos formais de mudança podem pretender determinar certo tempo para possibilidade de sua ocorrência.
O fato é que a facilidade ou a frequência com que uma Constituição é alterada depende não só das disposições legais que prescrevem o método de mudança, mas também dos grupos políticos e sociais predominantes na comunidade e na medida em que eles estão satisfeitos ou concordam com a organização e distribuição de política que a Constituição prescreve.
Por evidente, as palavras de Wheare não se aplicam somente ao processo de reforma, como também à mutação constitucional. Nesse sentido, Hesse adverte para a imprevisibilidade do fenômeno, considerando que o lapso temporal entre a entrada em vigor da Constituição e suas mutações não pode ser determinado, posto que depende do influxo das exigências da evolução social. O ritmo, mais ou menos acelerado dessas modificações constitucionais indiretas, há de variar, portanto, em cada época e em cada lugar, de acordo com os fatores históricos atuantes, entre os quais, evidentemente, em primeiro lugar, o próprio ritmo das transformações sociais e políticas.
Por se tratar de processo formal, tem-se que a revisão e a emenda devem ser feitas por agentes para tanto legitimados. A mutação, por sua vez, acontece por meios informais, através de um Poder Constituinte difuso, aproveitando a expressão utilizada por Burdeau, amplo e espontâneo, que não se encontra subjugado a nenhum tipo de delegação. Se o poder constituinte é uma força que faz ou transforma as constituições, é necessário admitir que sua ação não é limitada às modalidades juridicamente organizadas de seu exercício. Trata-se de um poder material, elemento componente de toda a dinâmica constitucional e, por sem dúvida, aquele que mais significativamente explica certas variações ou mudanças profundas de sentido que tomam os textos constitucionais.
Esse poder, por não encontrar legitimidade formalmente determinada pelo poder constituinte originário, ou o poder constituinte em fase de primogeneidade, difere do Poder Constituinte reformador. É nesse sentido que parece interessante a classificação de Viamonte, para que se possa diferenciá-los sem distanciá-los, afinal, os dois são poderes constituintes que atuam em momento posterior ao nascimento da Constituição. Destina-se a função constituinte difusa a completar a Constituição, a preencher vazios constitucionais, a continuar a obra do constituinte. Temos, portanto, um poder de criação inicial da Constituição e dois poderes constituintes de continuidade: um poder reformador e um poder de mutação.
O Poder Constituinte difuso também decorre diretamente da Constituição, sendo, portanto, tão legitimado pelo legislador constituinte originário quanto o é o poder de reforma. Seu fundamento, a complementação e adaptação do texto constitucional, decorre da própria Lei Fundamental, que nasce para ser aplicada, mas precisa, para tanto, acompanhar a evolução do meio que pretende organizar. Trata-se, portanto, de uma decorrência lógica, advinda da necessidade de meios que garantam a eficácia da norma constitucional, sua possibilidade de concretização no mundo do ser. A Constituição que quer ser efetivada exige um Poder Constituinte em constante atuação, em exercício cotidiano, um poder que não cessa jamais de agir.
Resta saber, para melhor compreensão da mutação constitucional, quem são os titulares desse Poder Constituinte difuso. Vale observar, para tanto, a lição de Paulo Bonavides: “Poder-se-ia argumentar, em meio a abundantes exemplos colhidos no costume ou na jurisprudência, com o caso da Suprema Corte dos Estados Unidos, vista por Wilson como uma convenção constituinte em sessão permanente, ou seja, um tribunal que, à margem do poder constituinte formal, exercita materialmente atos configurativos de verdadeira atividade constituinte”. Deveras, os juízes e tribunais exercem esse papel, mas se analisar profundamente o processo, vê-se que, assim como no caso do controle de constitucionalidade difuso, o Poder Constituinte difuso é exercido pelo povo, em seu sentido mais amplo. É exercido por cada cidadão, através da construção de uma realidade que faz adaptar o sentido da norma constitucional para sua aplicação ao caso concreto. Esse exercício pode acontecer diretamente, através da interpretação da própria norma constitucional, ou indiretamente, por meio da aplicação de outras normas, ordinárias ou complementares, que devem, outrossim, respeitar a Constituição. Em conclusão: só o povo real, concebido como comunidade aberta de sujeitos constituintes que entre si contratualizam, pactuam e consentem o modo de governo da cidade, tem o poder de disposição e conformação da ordem político-social."
Vale dizer que o conceito de povo, entendido como grandeza pluralística, compreende cada cidadão, cada indivíduo a quem se dirige as normas de determinado Estado. A visão normativa de povo é tão somente o corpo eleitoral de um Estado, o povo que vota. Esse povo-eleitor é entendido como o titular dos poderes constituintes de primogeneidade e de reforma, exercidos mediante representação. Não se pode confundir o eleitor, o titular do direito de sufrágio, com o cidadão. Não se pode olvidar, ainda, que tanto o povo majoritário como o minoritário fazem parte desse poder difuso. As decisões políticas, no âmbito de determinado Estado, são, geralmente, tomadas pela maioria, valendo como decisões do povo. No entanto, também aqueles que votam contra, as chamadas minorias, estão englobados no conceito de povo aqui contemplado. Para que seja legítima, a Constituição precisa ter lastro democrático, isto é, deve corresponder a uma demanda social efetiva por parte da coletividade, estando respaldada, portanto, pela soberania popular.
Com efeito, participantes dos litígios concretos da vida, cada cidadão, maioria ou minoria, eleitor ou não, acessa a Justiça através de um devido processo legal, onde lhe é concedido o direito de argumentação. O processo é um procedimento no qual participam, são habilitados a participar, aqueles em cuja esfera jurídica o ato final é destinado a produzir efeitos: em contraditório, e de modo que o autor do ato final não possa desconsiderar a atividade deles. Cada cidadão pode, então, demonstrar a sua interpretação da lei, ou da Constituição, em um processo dialético, ajudando na construção de uma sentença e na consequente aplicação da norma ou princípio ao caso concreto. Deveras, a essência dessa construção está na simétrica paridade da participação, nos atos que preparam o provimento, daqueles que nele são interessados porque, como seus destinatários, sofrerão seus efeitos. Esse procedimento pode, portanto, alterar o sentido de uma norma constitucional por exercício de um Poder Constituinte difuso, o que nos leva a entender que cada partícipe da sociedade faz parte desse poder, sendo, portanto, sujeito constituinte.
Nessa esteira, a mutação constitucional é um procedimento constituinte informal e difuso, exercido pelo povo, em toda sua plurissubjetividade. E se mostra de extrema importância no atual panorama constitucional mundial, já que o momento privilegiado em que a cidadania pode afirmar seus direitos, impondo a sua vontade sobre a vontade dos governantes, é o momento constituinte. Ainda que não se constitua novo texto ou nova norma, constitui-se novo sentido, significado ou alcance para que a Constituição corresponda, efetivamente, ao dinamismo da sociedade.