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Por que as normas de direitos humanos não se concretizam na vida das pessoas?

26/07/2024 às 17:12
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Não se pode deixar a realização da paz apenas na solidariedade intelectual e moral da humanidade, nem minimizar a importância dos arranjos políticos e econômicos quando se dão em uma esfera pública amplamente participativa e transparente.

Desde o início de sua criação, em 16 de novembro de 1945, a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura – Unesco - tem difundido valores de promoção da paz, enquanto fundamentos para uma coexistência humana harmoniosa e segura, assim como entre as nações e povos. E, para tanto, ressalta a importância da cultura - além da ciência e da educação - para concretizar os seus objetivos.

Nesse sentido, a Unesco inicia as suas atividades ao expressar a disposição dos Estados-Membro que deram início à Organização de tentar romper com o pensamento monocultural e etnocêntrico que disseminou tanta morte e destruição na Segunda Guerra Mundial e em momentos antecedentes, com uma visão distorcida de universalidade e superioridade cultural, considerando ainda o dever de promover o reconhecimento da diversidade como sendo um dado real e fundamental da coexistência humana no planeta, além da necessidade de cooperação internacional para o autêntico desenvolvimento humano e social.

Segundo a Constituição da Unesco, em seu Preâmbulo, o desconhecimento e o não reconhecimento do outro e de suas práticas, isto é, das diferenças, promove o etnocentrismo no lugar da alteridade; a violência no lugar da paz; a desigualdade no lugar da justiça.

De acordo ainda com a referida Constituição, o cultivo da paz nas “mentes” [1] – como uma nova racionalidade e princípio ético de ação no mundo – e “corações” [2], na perspectiva de afetos que mobilizam o agir humano, tem o condão de animar condutas baseadas no princípio da alteridade, da busca pelo bem-estar do outro, do bem comum e o de si mesmo, como consequência de uma ambiência interior e exterior [3] harmonizadas pelo espírito de “assistência e preocupação mútuas”, como propaga a Constituição da Unesco, permitindo a livre existência de identidades culturais distintas, mas formadas nesse movimento de complementação.

Vale destacar que a leitura que se faz é de que a paz – interior e exterior à pessoa humana - não se identifica com passividade, com aceitação do que está posto, mas com a busca de alternativas para enfrentar as diversas formas de violência, inclusive contra os demais seres do planeta, em uma perspectiva pacífica, sem apelar para a falácia de que a paz se faz com a guerra (pax romana), e sem permitir que esse ideal tão caro à vida humana seja manipulado para fins de controle dos povos.

Nesse sentido, considera-se o diálogo como essencial para a existência da diversidade cultural, e, para tanto, é preciso estabelecer algumas bases para a promoção de relações dialógicas que podem se dar a partir da uma cultura de paz que proporciona a abertura para o autoconhecimento e o reconhecimento do outro; e para as condições mentais e afetivas adequadas para que se estabeleça o animus interior pessoal e as ações exteriores necessárias para sua realização.

Dessa forma, a promoção da cultura de paz [4], isto é, da difusão de valores, ideias, sentimentos e princípios que promovam a harmonia pessoal e social, com potencial de transcender para relações interinstitucionais e interestatais, necessariamente passa pelos instrumentos que difundem a cultura, na atualidade, de forma mais intensa: o processo de educação e os meios de comunicação de massa (Unesco, 1945).

Nesse contexto, a cultura de paz tem como animus expressões que aproximam as pessoas com respeito e igual consideração, e na qual são valorizados e promovidos o diálogo, a colaboração mútua e a responsabilidade universal. Logo, condutas bem distintas da cultura egocêntrica de exacerbado individualismo e competição, próprias de sistemas nos quais são cultivados a hipervalorização do ter e do “parecer ter” – em especial dinheiro/poder – e o consumo acrítico.

Não se trata de um ideal homogeneizante de sentimentos, valores e expressões, mas que no seio da diversidade cultural, própria de cada grupo, povo e nação, a promoção do diálogo e da colaboração possa “fortalecer o respeito universal pela justiça, pelo estado de direito, e pelos direitos humanos e liberdades fundamentais”, como dispõe o artigo primeiro da Constituição da Unesco.

Pode-se reconhecer que a busca da harmonia social e da garantia de direitos fundamentais se dão por meio da proteção e promoção da diversidade cultural, e também pela “força” que as palavras podem ter ao impulsionar pessoas e Estados a cumprir obrigações assumidas na esfera transnacional, expressas por meio de documentos constitutivos, tratados, declarações, entre outros, além das normas locais constitucionais e infra; todavia, na realidade de vida é que se comprova se as palavras são apenas instrumentos retóricos ou se têm poder para animar ações humanas emancipadoras.

Assim, quando a Constituição da Unesco remete à construção de “defesas da paz” na mente das pessoas e “ampla difusão da cultura” como instrumentos para garantir a dignidade humana, e que esta sofre violações por conta da propagação da “doutrina da desigualdade” entre os homens, há poucas dúvidas quanto à veracidade destas afirmações.

O que elas não contam, entretanto, é que, na prática, os Estados-Membro desse organismo, e, em sua grande maioria, partes que deliberam acerca dos documentos finais produzidos a partir de suas conferências gerais, ou no caso dos Estados Unidos da América, membro do Conselho de Segurança da ONU, são os que produzem ou reproduzem a iniquidade e a desigualdade, tanto entre seus cidadãos como em relação a outros povos.

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É importante se apropriar destes documentos internacionais e de sua normatividade vinculante ou apenas orientadora, e utilizá-los como elementos motivadores dos mecanismos sociais e jurídicos capazes de exigir e garantir direitos na esfera política, espaço privilegiado de decisão dos rumos da história humana.

Entende-se que não se pode deixar a realização da paz apenas na “solidariedade intelectual e moral da humanidade”, por mais que ela o precise ser também. Assim como não se pode, no entanto, minimizar a importância dos “arranjos políticos e econômicos” quando se dão em uma esfera pública amplamente participativa e transparente, conforme disposição da Constituição da Unesco.

O que se tem visto, todavia, pelas consequências advindas às vidas humanas e não humanas, é que esses “arranjos” são realizados com base em interesses destrutivos da diversidade cultural e da biodiversidade, por meio de processos de homogeneização cultural e degradação planetária, atingindo a vida das próprias pessoas humanas e demais seres deste planeta.

Além disso, o texto da referida Constituição declara que os Estados acreditam em “oportunidades plenas e iguais de educação para todos, na busca irrestrita da verdade objetiva, e no livre intercâmbio de ideias e conhecimentos”. No entanto, a desconexão entre o professado e a ação tem revelado um espaço de aprofundamento das desigualdades de todas as formas: sociais, econômicas, políticas, entre outras.

Lamenta-se muito que textos normativos internacionais e nacionais professem ideais de vida que não se concretizam para a maior parcela da população humana – tal como este aqui o faz também -, mas é preciso lembrar que tais normas, mesmo fruto de consensos internacionais, estão submetidas a mentes e corações que não vivenciam os ideais proclamados, que governam Estados e administram instituições animados por interesses corporativos e de grupos dominantes da sociedade, fazendo apenas pequenas concessões para protelar o máximo possível o caos social e mundial.


Notas:

[1] Declara a Constituição da UNESCO (1945): “Que uma vez que as guerras se iniciam nas mentes dos homens, é nas mentes dos homens que devem ser construídas as defesas da paz”.

[2] Neste trabalho, mente e coração expressam fontes da racionalidade e afetividade, respectivamente, como motores da ação humana no mundo.

[3] De acordo com a concepção sociológica clássica, a formação da identidade se dá por meio da relação entre o “interior” e o “exterior”, pois como afirma Hall (2015, p.11), “a identidade é formada na ‘interação’ entre o ‘eu’ e a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o ‘eu real’, mas esse é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais ‘exteriores’ e as identidades que esses mundos oferecem”.

[4] De acordo com o Preâmbulo da Constituição da UNESCO (1945): “[...] a ampla difusão da cultura, e da educação da humanidade para a justiça, para a liberdade e para a paz são indispensáveis para a dignidade do homem, constituindo um dever sagrado, que todas as nações devem observar, em espírito de assistência e preocupação mútuas”.

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Sobre o autor
Marcus Pinto Aguiar

Mediador de conflitos (NUPEMEC/TJ-CE), Advogado. Doutor em Direito Constitucional com pós-doutorado pela UNB/FLACSO Brasil. Professor da Faculdade 05 de Julho (F5) e do Mestrado em Direito da UFERSA, membro-fundador do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCUlt)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AGUIAR, Marcus Pinto. Por que as normas de direitos humanos não se concretizam na vida das pessoas?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7695, 26 jul. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/110364. Acesso em: 21 nov. 2024.

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