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Economia do cárcere

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Resumo:


  • O Brasil possui um alto índice de aprisionamento, afetando não apenas os detentos, mas também seus familiares e pessoas próximas.

  • A pesquisa realizada no Rio Grande do Sul buscou compreender o impacto do encarceramento na vida dos familiares dos apenados, evidenciando a prisionização secundária.

  • Os resultados da pesquisa mostraram que o encarceramento de um membro da família gera uma série de adversidades, como mudanças nas relações familiares, impacto financeiro e estigmatização dos familiares, evidenciando a necessidade de políticas públicas que apoiem esse público.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Considerações finais

O presente trabalho teve como escopo pessoas que não estão reclusas, mas têm sua vida profundamente afetada pela prisão. Existem muitos indivíduos enredados pelo cárcere além do próprio apenado: agentes de segurança, advogados, defensores públicos, juízes, professores, comerciantes, familiares e amigos de presos, fornecedores, prestadores de serviço, entre outros. Esta pesquisa teve como tema principal familiares que enfrentam inúmeras adversidades para conviver com seus parentes aprisionados, de que forma e em que medida as consequências do encarceramento se estendem para a vida de tais pessoas.

Através da pesquisa de campo que durou cerca de um ano, entre interrupções por causa da pandemia mundial em razão da doença COVID-19, causada pelo vírus Sars- Cov-2, e reformulações no projeto inicial, foi possível coletar respostas de 96 (noventa e seis) familiares de apenados ao questionário estruturado com perguntas abertas e fechadas, algumas de escolha simples, outras de múltipla escolha.

A partir da ferramenta de pesquisa e de dados oriundos do INFOPEN, foi possível analisar alguns pontos dos relacionamentos intermuros das prisões. Almejou-se evidenciar as condições derivadas da prisionização secundária, verificar se o cárcere seria capaz de deteriorar os relacionamentos familiares, romper os vínculos afetivos entre a família e o preso. Cabe enfatizar que não se pode afirmar se houve ou não rompimento de laços, pois a pesquisa envolveu apenas detentos que recebem visitas de seus familiares. Vale ressaltar que as autoras têm consciência de que, entrevistando somente pessoas que visitam seus familiares segregados, é possível apenas apresentar uma análise parcial de como o cárcere atinge as famílias, dado que a maior parte da população prisional não recebe visitas regulares.

Apurou-se que alguns relacionamentos tiveram os laços estreitados, em razão do sentimento de saudade pela ausência do familiar recluso, segundo manifestado por entrevistados. Os vínculos familiares e afetivos observados em razão da pesquisa são muito fortes, pois é a família quem mais provê para o detento e garante a sua sobrevivência no sistema prisional. Todavia, não deixa de ser um ônus, um encargo muito grande, em especial às mulheres, que jamais deveria ser repassado às famílias.

A dispersão das casas prisionais pelo interior do Rio Grande do Sul foi uma hipótese aventada como possível justificativa para o rompimento de laços. Essa circunstância não foi citada pelos entrevistados como empecilho para a realização da visita, mesmo porque os prisioneiros geralmente são alocados em casas penais próximas aos locais de suas residências, exceto no caso dos presídios exclusivamente femininos, já que existem poucas unidades no Rio Grande do Sul.

A infraestrutura dos estabelecimentos penais, a variabilidade das normas que cada unidade prisional adota e os procedimentos constrangedores de revista corporal foram situações avaliadas como presumidamente capazes de reduzir a frequência da visitação por parte dos familiares. A pesquisa demonstrou que nenhuma das razões citadas acima são capazes de reduzir a periodicidade com que os familiares visitam os detentos. Muito pelo contrário, os respondentes exteriorizaram que não apenas ultrapassam as barreiras impostas pelo Estado para encontrar seu familiar aprisionado, como também desejam aumentar a frequência de dias de visita.

Segundo averiguado por meio da pesquisa de campo, foi possível observar um considerável impacto financeiro a partir do aprisionamento do membro familiar. As companheiras assumem dois trabalhos, submetem-se a jornadas extras ou encarregam-se das atividades do detento no mundo externo. As famílias reestruturam-se, reorganizam-se para suprir a falta do ente encarcerado, mas dificilmente atingem a mesma condição econômica pré-encarceramento.

A partir dos resultados provenientes dos questionários aplicados, foi possível inferir que há considerável quebras nas relações entre pais e filhos, pois as crianças são, em grande parte, afastadas de seu genitor preso. Em contrapartida, as mães dos apenados não os abandonam, mesmo se vendo obrigadas a passar por situações constrangedoras, como a revista corporal, aguardar muitas horas na fila para ingressar nos estabelecimentos penais, enfrentar frio, chuva e calor para encontrar seus filhos.

A pesquisa identificou elementos da prisionização secundária nos entrevistados, estigmatizados por vizinhos, comerciantes, patrões, amigos e/ou mesmo pelos próprios familiares por conviverem com a prisão e manterem relações com detentos. O cárcere reestrutura a vida de muitos indivíduos, não apenas dos que se encontram segregados. Famílias inteiras mudam-se de bairro ou mesmo de cidade para ficarem mais próximas do ente aprisionado. Pessoas passam dias inteiros dedicados a visitar seu parente preso, gastam horas deslocando-se até as unidades penais, onde permanecem mais horas no aguardo da abertura dos portões. Gastam valores exorbitantes com mantimentos, os quais são intencionalmente remexidos ou mesmo destroçados. Sentem-se ridicularizadas e humilhadas perante as circunstâncias que se obrigam a enfrentar. Colocam seus corpos à disposição do Estado, expostos a estranhos que analisam cada costura d e suas vestimentas.

Os deveres do Estado descumpridos geram relações conflituosas entre servidores e visitantes. Caso a LEP fosse cumprida à risca, não haveria necessidade de os familiares levarem alimentos, produtos higiênicos nem roupas para dentro das casas prisionais. A revista material seria, então, eliminada do procedimento de entrada; extinguindo, assim, as práticas de desmantelamento e/ou rejeição da comida que tanto desagradam os visitantes. Se as condições dos familiares de pessoas aprisionadas já eram críticas antes da pandemia, a situação atual reforça a importância do suporte do Estado para garantia da sobrevivência dessas famílias.

A partir da pesquisa desenvolvida, do contato profissional com o meio prisional e dos dados oriundos da SUSEPE, foram pensadas três políticas públicas de fácil e rápida aplicação, visando facilitar a vida dos visitantes, diretamente afetados pelas políticas criminais e pelo encarceramento.

Primeiramente, objetivando reduzir a quantidade de idas aos presídios e de comidas jogadas fora ou de visitas malsucedidas por enganos com as roupas permitidas, seria fundamental padronizar os itens de entrada e as roupas aceitas pela instituição e divulgar ao público essas informações no site oficial da SUSEPE, discriminando as peculiaridades de cada casa prisional.

Ademais, a imposição de especificidades para as roupas permitidas dentro dos estabelecimentos penais leva a crer que se trata de uma questão sexual, uma forma de opressão em especial sobre as mulheres, objetivando assexualizá-las. Não parece haver uma justificativa plausível relacionada à segurança do estabelecimento penal ao impedir que as visitantes usem trajes justos. Nessa senda, repensar o processo de entrada dos visitantes mostra-se oportuno e profícuo, principalmente no que diz respeito às vestes. Autorizar a livre entrada de roupas é uma forma de humanizar a relação entre a instituição e os visitantes.

Além disso, a implementação de uma carteirinha de visitantes virtual mostra-se iminente. Atualmente os documentos de identificação oficiais são aceitos por meio de aplicativos do governo. Semelhantemente a isso, a instituição é capaz de implantar um aplicativo que receba os documentos necessários à confecção das carteirinhas de forma digitalizada, verifique a autenticidade dos mesmos e disponibilize um documento virtual aos interessados em visitar as unidades penais. Assim, eliminaria a quantidade de papéis produzidos e armazenados, eliminaria o retrabalho dos servidores em confeccionar um novo documento a cada transferência ou ingresso de preso em uma unidade prisional e não haveria a necessidade de o visitante comparecer em diferentes datas no estabelecimento penal apenas para a confecção do documento. As digitais dos visitantes poderiam ser coletadas no dia de visita, sem maiores demandas, ou mesmo captadas pelo próprio aplicativo no aparelho telefônico, da mesma forma que os equipamentos identificam os usuários pela sua digital, como forma de substituir senhas numéricas/alfabéticas.

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Por fim, reforça-se que, caso a LEP fosse cumprida à risca, não se estimularia a proliferação de um comércio que lucra com a prisão e os familiares não seriam penalizados para promover o bem-estar do interno. Essa incumbência pertence ao Estado, responsável pela garantia dos direitos dos indivíduos sob sua custódia a sua integralidade.


Referências

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Sobre as autoras
Vanessa Lima Ferrari

Policial penal no Estado do RS. Bacharela em Administração pela UFPEL. Bacharela em Direito pela UFPEL. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela UNISINOS. Mestre em Segurança Cidadã pelo Programa de Pós-Graduação em Segurança Cidadã da UFRGS.

Melissa de Mattos Pimenta

Doutora em Sociologia e professora associada do Departamento de Sociologia da UFRGS. Membro permanente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Segurança Cidadã da UFRGS.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERRARI, Vanessa Lima ; PIMENTA, Melissa Mattos. Economia do cárcere. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7705, 5 ago. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/110410. Acesso em: 5 dez. 2025.

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