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Estelionato espiritual: a fraude no âmbito da religião

05/08/2024 às 18:10

Resumo:


  • A liberdade religiosa é um direito fundamental garantido pela Constituição Federal.

  • Estelionato espiritual pode ser configurado como uma fraude que utiliza a religião para obter benefício ilícito.

  • Condenar crimes de estelionato espiritual é desafiador devido à necessidade de comprovar o dolo e à proteção constitucional da liberdade religiosa.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Embora a expressão “estelionato espiritual” ainda não esteja formalmente definida na legislação brasileira, a prática fraudulenta envolvendo religião pode ser reconhecida e punida, desde que os elementos do art. 171 do Código Penal estejam presentes.

A liberdade religiosa é um direito fundamental garantido pelo art. 5º, inciso VI, da Constituição Federal. No entanto, essa liberdade vem acompanhada de uma grande responsabilidade, especialmente para aqueles considerados líderes espirituais.

Recentemente, um video viralizou1, se tornando meme na internet, a respeito de um pastor pregando sobre a forma como os fiéis deveriam agir em relação ao dinheiro.

O pastor dizia “dinheiro, venha para mim agora”, momento em que vários fiéis saíam de seus lugares e colocavam dinheiro no terno do pastor sob os gritos de “eita glória, Jesus”. Não satisfeito, o pastor continuou “money, come here” e cada vez mais as pessoas entregavam dinheiro ao pregador.

Dentre os muitos comentários irônicos sobre o vídeo, um questionava se essa prática não seria um crime. Na maioria das situações jurídicas, especialmente no direito penal, a resposta é: depende. Embora a situação possa parecer absurda para alguns, ela pode ser justificada como uma manifestação legítima da fé e do exercício do direito à liberdade religiosa.

No entanto, estando presente outros elementos (que abordaremos a seguir), é plenamente possível a situação tranformar-se em um caso de estelionato espiritual.


Estelionato Espiritual e a Legislação Brasileira

No nosso código penal, existem alguns crimes que podem ser relacionados à crença religiosa, como o Charlatanismo2, Curandeirismo3 e o Estelionato4.

Para que um crime seja configurado, ele deve estar tipificado na lei, nos termos do art. 1º do Código Penal:

Art. 1º - Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.

Contudo, embora o Código Penal Brasileiro não preveja explicitamente o "estelionato espiritual" ou "estelionato religioso", a fraude envolvendo religião pode ser configurada sob o tipo penal do estelionato, previsto no art. 171. do Código Penal.

Assim, o estelionato espiritual pode ser definido como qualquer fraude que utiliza a religião para enganar a vítima e obter um benefício ilícito, geralmente em dinheiro. Exemplos incluem promessas de retorno de amor em dias específicos, obtenção de emprego condicionado a pagamentos ou a promessa de não mais ficar doente em troca de dinheiro.

De acordo com o o advogado criminalista David Metzker, estelionato espiritual ocorre

"quando uma pessoa tira vantagem financeira de outra mediante uma promessa de alcançar um desejo. Ou seja, o golpista utiliza-se da fé e da crença religiosa do indivíduo para enganar a pessoa e conseguir dinheiro."5

Um exemplo é o caso julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, onde um homem foi condenado por enganar uma vítima vulnerável emocionalmente, que realizou depósitos significativos para “trabalhos espirituais” que supostamente melhorariam seu "destino". A decisão do tribunal enfatizou que o uso da fé como artifício para enganar e obter vantagem econômica configurava o crime de estelionato:

APELAÇÃO CRIMINAL – CONDENAÇÃO POR "ESTELIONATO RELIGIOSO" – A DEFESA OBJETIVA A ABSOLVIÇÃO, DIANTE DA ATIPICIDADE DA CONDUTA OU FRAGILIDADE DAS PROVAS – O MINISTÉRIO PÚBLICO ALMEJA A ELEVAÇÃO DA PENA-BASE, REGIME MAIS RIGOROSO E QUE SEJA AFASTADA A PERMUTA – ABSOLVIÇÃO IMPOSSÍVEL, POIS EVIDENTE O EMPREGO DA FÉ COMO ARDIL PARA ENGANAR A VÍTIMA E AUFERIR VANTAGEM PATRIMONIAL RELEVANTE – DOLO EVIDENTE DIANTE DAS PECULIARIDADES DO CASO, A VÍTIMA PASSAVA POR MOMENTO DE DIFICULDADES EMOCIONAIS E FOI CONVENCIDA A FAZER DOIS DEPÓSITOS, DE QUANTIAS VULTOSAS (R$ 107.000,00 E R$ 9.000,00), DESTINADOS A "TRABALHOS ESPIRITUAIS", QUE MELHORARIAM SEU DESTINO – A PENA COMPORTA ALGUNS AJUSTES, A PENA-BASE DEVE SER ELEVADA, POIS RELEVANTE O PREJUÍZO IMPOSTO – PELO MESMO MOTIVO, JUSTIFICA-SE O REGIME SEMIABERTO, PARA A HIPÓTESE DE EXPIAÇÃO – A SUBSTITUIÇÃO POR ALTERNATIVAS FICA MANTIDA – RECURSO DA DEFESA DESPROVIDO E RECURSO MINISTERIAL PROVIDO EM PARTE, PARA ELEVAR A PENA-BASE E FIXAR REGIME SEMIABERTO PARA A HIPÓTESE DE EXPIAÇÃO, MANTENDO-SE NO MAIS A R. SENTENÇA.

(TJ-SP - APR: 00118278620188260451 SP 0011827-86.2018.8.26.0451, Relator: Euvaldo Chaib, Data de Julgamento: 28/01/2022, 4ª Câmara de Direito Criminal, Data de Publicação: 28/01/2022).


Desafios na Prova e na Condenação

Na prática, condenar crimes de estelionato espiritual é extremamente difícil. A prova do dolo, ou intenção fraudulenta, é complicada, especialmente devido à subjetividade da fé e à proteção constitucional da liberdade religiosa.

Para configurar o crime, é necessário demonstrar que o acusado não apenas sabia do poder enganador de suas ações, mas também tinha a intenção de prejudicar a vítima e obter benefício próprio.

Isso é o que a doutrina denomina como animus fraudandi, elemento constitutivo do crime de estelionato. Caso não seja, de forma robusta, demonstrado, a absolvição do réu deverá ocorrer:

APELAÇÃO CRIMINAL – CRIME DE ESTELIONATO – ART. 171, CAPUT, DO CP – SENTENÇA ABSOLUTÓRIA – APELO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO – PLEITO CONDENATÓRIO SOB O FUNDAMENTO DA EXISTÊNCIA DE PROVAS SUFICIENTES DA MATERIALIDADE E AUTORIA DELITIVAS APTAS A ENSEJAR A CONDENAÇÃO DO RÉU – NÃO ACOLHIMENTO – INSUFICIÊNCIA PROBATÓRIA QUE DEMONSTRE TANTO A MATERIALIDADE DELITIVA – AUSÊNCIA DE ANIMUS FRAUDANDI – SENTENÇA ABSOLUTÓRIA MANTIDA – RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.

(Apelação Criminal Nº 202300335639 Nº único: 0003634-71.2020.8.25.0053 - CÂMARA CRIMINAL, Tribunal de Justiça de Sergipe - Relator (a): Ana Lúcia Freire de A. dos Anjos - Julgado em 22/09/2023) (TJ-SE - APR: 00036347120208250053, Relator: Ana Lúcia Freire de A. dos Anjos, Data de Julgamento: 22/09/2023, CÂMARA CRIMINAL).

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Além disso, as vítimas desses crimes frequentemente estão em situações de vulnerabilidade emocional ou psicológica, o que dificulta a percepção da fraude. E, nos termos do art. 171, §5º, do Código Penal, a vítima é a única legitimada a representar criminalmente contra o criminoso, uma vez que o estelionato, após a Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime) , somente será processado mediante representação.


Conclusão

Embora a expressão “estelionato espiritual” ainda não esteja formalmente definida na legislação brasileira, a prática fraudulenta envolvendo religião pode ser reconhecida e punida, desde que os elementos do art. 171. do Código Penal estejam presentes. A proteção da liberdade religiosa não deve ser usada como escudo para práticas fraudulentas que exploram a fé dos indivíduos para obter vantagens ilícitas


Notas

1 https://www.youtube.com/watch?v=EKM9grV-Igs

2 Art. 283. - Inculcar ou anunciar cura por meio secreto ou infalível

3 Art. 284. - Exercer o curandeirismo: I - prescrevendo, ministrando ou aplicando, habitualmente, qualquer substância; II - usando gestos, palavras ou qualquer outro meio; III - fazendo diagnósticos:

4 Art. 171. - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento

5 Disponível em: https://www.agazeta.com.br/es/gv/o-que-e-estelionato-espiritual-e-como-voce-pode-denunciar-0120

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Sobre o autor
Matheus Reis de França

Advogado criminalista, formado pela Universidade Federal do Sul da Bahia, com pós-graduação em Direito Processual Civil Aplicado pela Escola Brasileira de Direito.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRANÇA, Matheus Reis. Estelionato espiritual: a fraude no âmbito da religião. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7705, 5 ago. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/110455. Acesso em: 22 dez. 2024.

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