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Sílvio Santos e três lições sobre o Direito brasileiro

Resumo:


  • O empresário e comunicador Sílvio Santos faleceu aos 93 anos, sendo lembrado por diversos episódios de sua vida que trazem aprendizados sobre o direito brasileiro.

  • Um dos episódios envolveu sua impugnação como candidato à Presidência da República em 1989, destacando a importância de não permitir a burla da inelegibilidade prevista em lei.

  • Outro episódio relevante foi o litígio entre Sílvio Santos e Zé Celso Martinez envolvendo a construção de torres no terreno ao lado do Teatro Oficina, ressaltando a importância do estrito cumprimento das leis e decisões judiciais, mesmo diante de conflitos complexos.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Três episódios juridicos sobre Silvio Santos: conflitos com a TV Globo foram resolvidos por negociação; candidatura foi impedida pela Justiça Eleitoral; disputa com Zé Celso envolveu o patrimônio cultural.

Faleceu aos 93 anos o empresário e comunicador Sílvio Santos. Entre muitas notas de pesar, incluindo aquelas de seccionais da OAB, alguns episódios de sua vida têm sido relembrados pela imprensa.

Empresário com tantos anos de atividade comercial, alguns desses episódios podem nos trazer interessantes aprendizados sobre o direito brasileiro. Este artigo visa apresentar três desses episódios.


1. "Nossos advogados vão resolver": a importância da resolução consensual de conflitos

Entre outras possíveis lições jurídicas que a biografia de Sílvio Santos nos traz, a primeira a que me referirei não diz respeito a nenhum processo judicial, mas a uma tentativa de resolução consensual de um conflito que logrou êxito.

O caso ocorreu entre o empresário Roberto Marinho, na época à frente da TV Globo, e Sílvio Santos, à frente de outra emissora de TV, o SBT, tendo ainda como envolvido o apresentador Gugu Liberato.

Anos antes, entre 1965 e 1976, era na TV Globo que Sílvio Santos mantinha seu programa, através de locação de horários (BENÍCIO, 2024). Como se tratava de programa popular -- com caixa que lhe permitia, segundo Jeff Benício (2024), socorrer à TV Globo em suas obrigações, com adiantamento de pagamentos pelo horário de exibição --, em uma mudança de perfil da emissora carioca, objetivando sofisticação da grade de sua programação, buscaram a resolução deste contrato, com seu término.

Com isso, Sílvio Santos não apenas saiu da TV Globo, mas se tornou seu concorrente em outra emissora, até vir a se tornar ele próprio dono de sua emissora, o SBT (Sistema Brasileiro de Televisão), ao vencer concorrência pública para assumir concessões cassadas da TV Tupi e da TV Excelsior.

Anos depois, quando a TV Globo contratou um dos principais apresentadores do SBT, Gugu Liberato, rm 1988, este foi convencido por Sílvio Santos a permanecer nesta última emissora. O problema era o contrato já firmado entre as partes.

A lição que este episódio da vida de Sílvio Santos traz é que, sempre que possível, o melhor caminho é o da resolução consensual de conflitos: Sílvio e Gugu foram até Roberto Marinho, que teria dito "Nossos advogados vão resolver", evidenciando animus de resolução consensual, sem ajuizamento da questão.


2. "Um dia é possível que a sociedade brasileira venha a entender melhor a função judiciária": "não se pode permitir a burla da inegibilidade prevista em lei"

O segundo episódio que nos traz valiosa lição como juristas, dentre episódios vividos por Sílvio Santos, é aquele que envolve sua impugnação como candidato à Presidência da República, em 1989.

Não tínhamos eleições para presidente da República havia quase 30 anos, após um regime militar entre 1964 e 1985. Com o retorno de eleições presidenciais, ocorreu uma pulverização de candidaturas e, neste bojo, surgiu a proposta de alguns setores do Partido da Frente Liberal (PFL) do lançamento de Sílvio Santos -- filiado ao partido desde 1988 -- como candidato de outra legenda, o Partido Municipalista Brasileiro (PMB), cujo candidato, Armando Correia viria a renunciar (TSE, s/d).

O problema é que essa proposta surgiu a muito pouco tempo da realização do primeiro turno das eleições. E a candidatura de Sílvio Santos, já formalizada no "Registro De Candidatos À Presidência E Vice 31/DF" de 1989, foi questionada por 18 pedidos de impugnação que discutiam (1) a legalidade de sua nova filiação partidária, (2) a regularidade do registro de seu novo partido, o PMB, que não havia realizado as convenções necessárias para seu registro definitivo, conforme as exigências da Lei nº 5.682/71 (Lei Orgânica dos Partidos Políticos), além da (3) inegibilidade de Sílvio Santos, segundo parecer da Procuradoria-Geral Eleitoral, por ter o empresário exercido cargo ou função de direção, administração ou representação em empresas concessionárias ou permissionárias de serviço público ou sujeitas a seu controle, com fulcro no art. 1º, II, d , da Lei Complementar nº 5/70.

O julgamento no TSE ocorreu e este tribunal declarou, incidentalmente, no processo de registro de candidatura (RCPR nº 31 de 09/11/89), extintos os efeitos do registro provisório do PMB, impedindo a candidatura de Sílvio Santos, considerado um julgamento histórico do TSE, com a decisão pela incapacidade jurídica eleitoral do partido para indicar candidatos. A ementa do julgado apresenta o seguinte teor:

ELEICAO PRESIDENCIAL. REGISTRO PROVISORIO DE PARTIDO POLITICO. EXTINCAO DE SEUS EFEITOS. REGISTRO DE CANDIDATOS. PARTIDO MUNICIPALISTA BRASILEIRO - PMB. EXTINTOS OS EFEITOS DO REGISTRO PROVISORIO, PELO DECURSO DO PRAZO PARA PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS PARA REGISTRO DEFINITIVO, DESAPARECE A FIGURA DO PARTIDO POLITICO, QUE ASSIM JA NAO PODE MANTER OS CANDIDATOS QUE INDICARA NEM INDICAR OUTRAS EM SUBSTITUICAO. PEDIDO INDEFERIDO, PELA PREJUDICIAL.

Decisão

O TRIBUNAL INDEFERIU O PEDIDO DE REGISTRO DE NOVOS CANDIDATOS A PRESIDENCIA E A VICE-PRESIDENCIA DA REPUBLICA. DECISAO UNANIME.

TSE, RCPR nº 31 Resolução nº 15900 DF, Relator(a): Min. Vilas Boas, Julgamento: 09/11/1989

Foram 7 votos, unanimidade. No primeiro voto, do relator, Min. Vilas Boas, em seu 46° parágrafo, cita decisão do Min. Cordeiro Guerra, no STF, que entendia não se poder permitir a burla da inegibilidade prevista em lei.

Já no último voto, do Min. Francisco Rezek, nos parágrafos finais, quase em tom de desabafo, se pronunciou o julgador:

Examinando, nos últimos dias, este tormentoso feito, nós nos defrontamos com um trabalho árduo, não exatamente previsto para esta fase do processo eleitoral, fizemos por bem desenvolvê-lo, tal como manda Constituição. Convivemos, nesse periodo, não apenas com trabalho: também com manifestações da mais variada origem, da mais variada índole; manifestações inteiramente lícitas, na medida em que não advindas de algum núcleo de poder, mas de pessoas comuns, de populares articulistas da imprensa, que valem-se do seu direito de dizer que pensam, sem pretender com isso que Tribunal seja permeável, no deslinde de uma questão juridica, considerações de tal natureza.

Lembro, entretanto, que convivemos também com algumas manifestações reveladoras do desconhecimento do fenômeno judiciário, que insinuaram perspectivas decisórias base de fatores tão absolutamente desimportantes quanto teria ocorrido se pretendessem inferir provável decisão de um membro da Casa por sua origem étnica, por sua confissão religiosa ou por sua vizinhança habitacional. Chegou-se perto disso. É algo penoso, que não chega, entretanto, ser grave.

Um dia, quando atendidas tantas outras prioridades, é possivel que sociedade brasileira venha entender melhor função judiciária suas caracteristicas. Deus sabe quando isto ocorrerá. Mas talvez então alguém se lembre de que, neste momento histórico, Tribunal Superior Eleitoral contribuiu para alcance de semelhante propósito.

(Voto do Min. Francisco Rezek no Reg. Cand. N° 31 - Cls. 8ª - DF, Res. 15.900. de 09/11/1989 do TSE)

A lição que fica desse episódio pode ser dividida em dois aprendizados práticos: (1) inegibilidade prevista em lei, por qualquer razão, não pode ser burlada, seja por problemas com filiação de candidato, registro de partido ou cargo ou função anteriormente exercido por candidato; e (2) o quanto o fenômeno judiciário é desconhecido pelo senso comum e por articulistas da imprensa, cabendo à sociedade brasileira que, um dia, entenda melhor a função judiciária e suas características. E, evidente, resta um terceiro aprendizado sobre os limites do poderio político ou econômico diante de uma legislação democrática e um tribunal constitucionalmente fundamentado, afinal, o TSE também considerou a inegibilidade de Sílvio Santos por ser dirigente de rede de TV, empresa concessionária de serviço público.


3. "Vivemos no capitalismo": o "estrito cumprimento de leis e decisões judiciais" contra um teatro de "ângulos de visão desafiadores"

A terceira e última lição, dentre outras tantas possíveis, que um episódio envolvendo Sílvio Santos nos traz é aquela que envolve um imbróglio deste empresário com o intelectual e dramaturgo Zé Celso Martinez, tragicamente falecido em 2023, em incêndio que atingiu sua residência.

Ze Celso foi criador do histórico Teatro Oficina, que adquiriu imóvel em 1961 para sua sede, na Rua Jaceguai, em São Paulo. Na década de 1989, Silvio Santos adquiriu o terreno ao lado do teatro, visando construir prédio para sua empresa.

Tal edificação, contudo, na visão de Zé Celso Martinez, poderia prejudicar o teatro, tombado, vindo o lendário dramaturgo a ajuizar ação contra sua construção. Décadas depois, o Grupo Sílvio Santos, ainda respondendo à ação, insistiria em tentar erguer torres de imóveis comerciais e residenciais no terreno (ROMERO, 2024).

O projeto, porém, foi impedido pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico), em 2016, e, a partir de então, Silvio Santos e Zé Celso Martinez buscaram uma resolução consensual do conflito, sem êxito. Ao dramaturgo, pareceu interessante propor a criação, no terreno, de um parque, o Parque do Bixiga, e é fácil se achar pela rede o vídeo de reunião gravada de um dos seus encontros com o empresário e apresentador, em que vemos a dificuldade de avença entre ambos, em relação a este caso.

O próprio IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), em 2018, autorizou construção de torres no terreno, com restrições que respeitassem o tombamento do Teatro Oficina, havendo intervenção do Ministério Público Federal e impedimento judicial à construção.

Para evidenciar o grau do litígio: em 2023, Zé Celso plantou um ipê no terreno em disputa e, dias depois, foi notificado de decisão que o multaria em R$200 mil reais em qualquer intervenção relacionada à posse do imóvel. Nesta ocasião, disse:

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“É a vida como ela é. Vivemos no capitalismo. É muito mais fácil fazer o que eles fizeram (entrar com o pedido liminar) do que ter uma atitude de grandeza e generosidade e doar o terreno" (Zé Celso Martinez apud Romero, 2024).

Já após o falecimento de Zé Celso Martinez, e antes da despedida de Sílvio Santos, no início de 2024 o Grupo Sílvio Santos ainda fechou com tijolos os arcos cênicos de acesso ao terreno, além de retirarem uma escada do local. Notificado pelo IPHAN da irregularidade do ocorrido, o grupo empresarial se manifestou dizendo-se “seguro de ter agido no estrito cumprimento das leis e das decisões judiciais".

O fato é que, como diz a reportagem de Romero (2024), tal cumprimento de "leis e decisões judiciais" se dá em relação ao "melhor teatro do mundo", de acordo com o jornal "The Guardian", que definiu que

"O Teatro Oficina tem ângulos de visão desafiadores, assentos duros e uma forma que é exatamente a que os teatros não deveriam ter, mas é mais intenso precisamente por isso” (The Guardian apud Romero, 2024)

Romero (2024) sinaliza que uma das particularidades arquitetônicas do teatro é "uma grande janela em uma de suas partes laterais, que possibilita ao telespectador enxergar com certo privilégio a paisagem da cidade de São Paulo, além de trazer iluminação natural ao palco". Não à toa a preocupação de Zé Celso Martinez.

A boa notícia é que o Parque do Bixiga pode estar próximo, pois a Câmara Municipal de São Paulo aprovou, em primeira votação, uma proposta de a Prefeitura pagar R$ 64 milhões pelo terreno de Sílvio Santos (cujo Grupo Sílvio Santos queria R$ 80 milhões pela área) para sua criação.

Com esse desfecho, esta última lição também se desdobra em dois aprendizados importantes aos juristas: (1) nunca devemos desistir de buscar no Judiciário a solução para conflitos de difícil consenso, ainda que vivamos no Capitalismo e que o cumprimento de leis e decisões judiciais possa se dar até mesmo contra um teatro (!) de "ângulos de visão desafiadores" em sentido literal e figurado; e (2) a solução, ainda que por meio da política, poderá vir a contento de ambas as partes, desde que não deixemos de lutar pelo que acreditamos ser o justo.


Referências

BENÍCIO, Jeff. Silvio Santos e o dono da Globo tiveram reencontro amistoso após 12 anos afastados. Disponível em https://www.terra.com.br/diversao/tv/silvio-santos-e-o-dono-da-globo-tiveram-reencontro-amistoso-apos-12-anos-afastados,cb387b2682d0b0acb5c54210105dc1aajdqs8uai.html?utm_source=clipboard <Acesso em 17/08/2024>

BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Registro De Candidatos À Presidência E Vice 31/DF, Relator(a) Min. Vilas Boas, Resolução de 09/11/1989, Publicado no(a) Boletim eleitoral, pag. 793

ROMERO, Felipe. Relembre a disputa entre Silvio Santos e Zé Celso pelo Parque do Bixiga. Disponivel em https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/relembre-a-disputa-entre-silvio-santos-e-ze-celso-pelo-parque-do-bixiga/

TSE. Julgados Históricos: Sílvio Santos. s/d. Disponível em: https://www.tse.jus.br/jurisprudencia/julgados-historicos/silvio-santos <Acesso: 17/08/2024>

Sobre o autor
Carlos Eduardo Oliva de Carvalho Rêgo

Advogado (OAB 254.318/RJ). Doutor e mestre em Ciência Política (UFF), especialista em ensino de Sociologia (CPII) e em Direito Público Constitucional, Administrativo e Tributário (FF/PR), bacharel em Direito (UERJ), bacharel e licenciado em Ciências Sociais (UFRJ), é professor de Sociologia da carreira EBTT do Ministério da Educação, pesquisador e líder do LAEDH - Laboratório de Educação em Direitos Humanos do Colégio Pedro II.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RÊGO, Carlos Eduardo Oliva Carvalho. Sílvio Santos e três lições sobre o Direito brasileiro . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7719, 19 ago. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/110607. Acesso em: 22 dez. 2024.

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