Da não adequação da retributividade da pena ao Estado Democrático de Direito

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As teorias denominadas absolutas se baseiam na finalidade retributiva da pena, que visa a compensação do mal causado pela prática de um crime, tendo como ponto de partida uma ação cometida no passado e que precisa ser reparada para que não haja a ruptura da ordem social em decorrência da prevalência dos interesses individuais sobre os coletivos1.

Sob esse ponto de vista, há quem diga que isso dá à pena a característica de ser um fim em si mesma, o que justificaria a nomenclatura de absoluta, já que a mesma não buscaria nenhum outro efeito social voltado para o futuro; ela não teria como objetivo combater a criminalidade, manter a paz social ou reintegrar o apenado futuramente2. Apesar desse conceito ser bem difundido, esse posicionamento não pode ser considerado exato, haja vista que a finalidade retributiva, em cada uma das suas vertentes (vingança, expiação, imperativo categórico de justiça ou retribuição jurídica), não está isenta de finalidade, contendo escopos bem delineados, respectivamente: a compensação do mal, o arrependimento do infrator, o alcance da justiça ou o reestabelecimento do equilíbrio do ordenamento jurídico.

Mesmo assim, resta claro que em nenhum dos casos em questão esses efeitos têm a pretensão de alterar o status social futuro. A aplicação da pena decorre apenas da prática delitiva ocorrida no passado e é exatamente esse o ponto em comum entre todas as vertentes retributivas que faz com que elas sejam doutrinariamente classificadas como teorias absolutas. Contudo, o fato de se punir alguém apenas em decorrência do cometimento de um crime não implica que, de forma secundária, a pena deixe de gerar reflexos que se propagarão no futuro. Ou seja, a adesão a uma das teorias absolutas não rechaça completamente a existência de efeitos com características preventivas, apenas não se considera que esses efeitos secundários justifiquem a existência da pena.

Gustavo Junqueira3, em sua obra, divide a finalidade retributiva da pena em 04 (quatro) aspectos distintos: vingança, expiação (conforme classificação de Lesch), imperativo de justiça (visão kantiana) e retribuição jurídica (visão hegeliana). Fazendo uso dessa diferenciação, que engloba as várias das vertentes retributivas da pena, serão analisados cada um dos ângulos da característica compensatória das penas, de forma a abordar os seus aspectos retributivos. Tal análise se faz necessária para a compreensão das nuances existentes nas teorias mistas, bem como para tornar possível o entendimento de como o discurso ressocializador serve de álibi para as finalidades mais agressivas e rígidas, como a própria vingança.

Desde as organizações sociais primitivas, é possível observar o anseio de vingança que permeia o ser humano. Tal anseio é amplamente explicado pela psicanálise e trabalhado por Freud em sua conhecida obra “Totem e tabu”4, que historicamente deu origem à pena: o ser humano, como integrante de um corpo social que se submete a um conjunto de normas tem, ou sente ter, a necessidade de infringir um mal àquele que violou a ordem posta e ameaçou a segurança do grupo, no que tange às organizações sociais primitivas.

Logo, os grupos sociais dos primórdios se submetiam às regras de convivência supostamente impostas por uma divindade (“Totem”), a quem deviam respeito e sua segurança. A violação das regras por um dos integrantes do grupo despertaria a ira do Totem, colocando todos em risco, o que urgia punir o infrator a fim de apaziguar a divindade e evitar eventuais desgraças que poderiam se abater sobre essa pequena organização social.

Neste cenário, a aplicação da pena como castigo/vingança era a maneira encontrada pelas sociedades pré-estatais, que tinham um poder descentralizado, para comunicar a desaprovação e repulsa do grupo contra o infrator. O problema desse fenômeno vingativo, cuja execução ocorria internamente, é a tendência de se eternizar, como ocorria à época da vingança privada desordenada, levando à extinção dos grupos que acabavam por se digladiar entre si, uma vez que a pena não respeitava qualquer noção de proporcionalidade. Esse movimento incontrolável enfraquecia o grupo e o colocava em risco quando este entrava em combate com um inimigo externo, fazendo-se necessária a limitação da vingança através da aquisição de uma consciência de coletividade para combater o grupo rival.

Com o decorrer do tempo e desenvolvimento dos grupos sociais, a pena, apesar de não ter perdido o seu viés vingativo, passou por um período de organização (vingança privada ordenada) com o surgimento das leis baseadas na Lei de Talião, a qual preconizava a máxima “olho por olho e dente por dente”.

Durante esse período da história, o estabelecimento da pena a ser aplicada e sua execução ainda ocorria na esfera do particular – vítima ou familiares da mesma –, mas agora de uma maneira ordenada, já que se baseava em um conceito rudimentar de proporcionalidade. Assim, aquele que furtava um bem alheio pagaria com a perda de uma das mãos; aquele que tirasse a vida de um indivíduo compensaria o mal causado com a própria vida, havendo em alguns momentos históricos a possibilidade dessa pena ser aplicada em forma de compensação diversa da pena corporal, a depender do tipo de infração praticada pelo agente.

Assim, como acontecia durante a fase desordenada, as penas ainda tinham como meta a satisfação de um anseio social de vingança, de garantir a manutenção do corpo social e de comunicar a reprovação do comportamento daquele que violou a ordem, sem qualquer compromisso com a racionalidade. Cumpre dizer que, apesar da noção de proporcionalidade trazida por essa vertente retributiva da pena, a mesma seria incompatível com a ressocialização, uma vez que a morte, amputação de membros ou a conversão de um indivíduo em inválido em nada contribuem para que este reintegre de forma saudável ao corpo social.

Prosseguindo na linha evolutiva do aspecto vingativo retribucionista da pena, tem-se o surgimento do Estado como ente governante e detentor do poder de punir de forma ilimitada. Essa transferência do jus puniendi para um poder centralizado veio de encontro com uma nova forma de organização social – Estado Absolutista, cujos objetivos eram a manutenção de uma sociedade mais evoluída e estruturada e a proteção do capital e da economia que vinham se desenvolvendo5.

Nesse estágio da sociedade, é possível perceber nitidamente a existência de uma relação indissociável entre Estado e Igreja, pois o soberano é o enviado de Deus à Terra e sua vontade é a tradução da vontade divina. Oriunda dessa relação, tem-se a premissa de que aquele que delinque e atenta contra a vontade do soberano, também atenta contra a vontade de Deus, fazendo jus à punição designada pelo detentor de todo o poder terreno e celestial, que consistia basicamente em suplícios, ordálios ou penas de morte.

Nessa época, a pena de vingança estava mais relacionada à uma afirmação ou resgate de poder do que efetivamente apenas retribuir – de forma proporcional – o mal do crime. É no intuito de comunicar esse poder ilimitado do Estado e do soberano que a execução das penas atribuídas acontecia de forma espetacularizada e pública6. A tortura, a submissão e a posterior morte do indivíduo apenado em praça pública, diante dos olhos dos seus semelhantes, é a forma mais eficaz de fazer saber que não se pode contrariar o rei7.

Exemplos emblemáticos dessa prática são as decapitações e enforcamentos públicos, e a queima das bruxas na Europa, bem como a execução de Joaquim José da Silva Xavier – o Tiradentes, no Brasil, que foi enforcado, desmembrado e teve partes de seu corpo expostas pelas estradas das Minas Gerais para servir de exemplo para os demais insurgentes.

Nos tempos modernos, não há mais lugar para a faceta vingativa da pena retributiva, posto que o Estado Democrático de Direito não se coaduna com a ideia de pena-sofrimento propagada por essa vertente da teoria absoluta. Esse modelo de Estado não tem permissão para fazer os cidadãos sob sua égide sofrer, pois prima pelo desenvolvimento pleno de cada um dos seus indivíduos componentes.

Não obstante a existência desse limite e da necessidade de adequação à existência inequívoca dos direitos humanos em um sistema global de proteção, a pena, nos dias de hoje, ainda está atrelada ao aspecto vingativo existente desde os primórdios, como alerta Duek Marques8 ao afirmar que a demanda mítica de vingança ainda permanece no seio da sociedade atual. Nesse sentido, também são válidos os ensinamentos de Hassemer e Muñoz Conde9, que afirmam ser:

[...] errôneo e precipitado negar importância, também de um ponto de vista criminológico, à teoria absoluta ou retributiva da pena, tanto em sua versão clássica, como em suas versões mais modernas. Há, sem dúvida, muitos casos em que a ideia de ‘quem deve pagar’ não somente é motor principal do Direito pena, senão de muitas outras sanções jurídicas, que se impõem quando tenham sido infringidas, culpavelmente ou não, determinadas normas de comportamento. Nestes casos, a ideia de sanção (pena, obrigação de reparar o dano causado etc.) é quase tautológica, de natureza puramente lógica: cumprindo um determinado pressuposto, deve-se aplicar a consequência prevista, sem outra finalidade que o restabelecimento da vigência da norma, confirmando sua superioridade sobre a vontade do infrator. O sentimento de satisfação generalizada que se produz quando o autor de um ou de vários delitos é condenado (‘no fim se fez justiça’ será o título de muitos meios de comunicação) traduz de certo modo uma necessidade da pena, que se pode entender como uma necessidade de justiça ou de pena justa, que devolve a tranquilidade aos cidadãos que se sentiram alarmados e indignados pelo crime. O perigo é que esta ‘necessidade de pena’ [...] expresse na realidade um ‘sentimento de vingança’ e que, no fundo, não seja mais do que a projeção de desejos reprimidos sobre o delinquente, a quem se trata como um ‘bode expiatório’ que paga com as suas penas a culpa de todos.

A despeito do anseio de vingança que pulsa no ser humano e na satisfação gerada pela aplicação da pena-castigo ao delinquente, o Estado, fundado na racionalidade e por isso denominado “de Direito”, não pode e nem deve assumir o papel de viabilizar a expressão de um sentimento humano10.

Entretanto, não se pode dizer que esse limite é devidamente respeitado nos dias de hoje, haja vista a pouca ou nenhuma atenção dada ao sistema carcerário brasileiro no que se trata de propiciar condições minimamente dignas para o cumprimento de penas restritivas de liberdade. Submeter, ainda que através de uma postura omissiva, os detentos à situações sub- humanas no que se refere à infraestrutura dos estabelecimentos prisionais e permitir que os mesmos sejam torturados por agentes estatais que deveriam zelar por sua integridade, enquanto indivíduos diretamente sob os cuidados estatais, é uma forma de endossar o desejo social pela punição vingativa e ilimitada daqueles que violaram a ordem.

Nesse cenário, apenas o sofrimento desmedido desses indivíduos, ainda que desproporcional e irracional, saciariam a sede de vingança e a ânsia punitivista social11. Aqui se encaixa com bastante clareza o conceito de less elegibility, desenvolvido por Rusche e Kirchheimer na obra “Punição e Estrutura Social”, o qual determina que o indivíduo preso – considerado o menos elegível – não poderia usufruir de uma situação mais confortável que o mais miserável dos homens livres, sob pena de estimular a submissão do povo ao assistencialismo público e de tornar o sistema penal incongruente, já que a pena não consistiria em punição, mas em um benefício12.

Cabe dizer que a vertente vindicante da finalidade retributiva da pena em nada se coaduna com o discurso ressocializador, posto que, desde o início, não persegue qualquer utilidade futura para a pena e nem visa uma mudança de comportamento do apenado e pelo fato de que, em razão do contexto histórico em que se inseria, consistir no extermínio ou mutilação do indivíduo, impossibilitando seu retorno harmônico à sociedade.

Já no que tange a pena retributiva pela expiação, classificada como uma vertente da teoria absoluta por Heiko Lesch13, não se pode olvidar a origem religiosa dessa finalidade, posto que desde o Código de Manu, todo crime cometido equivale a um pecado, devendo o seu autor ser purificado pela pena14.

A confusão entre o poder governante e a fé resultou, consequentemente, em uma confusão entre delito e pecado. Dessa relação simbiótica entre Igreja e Estado na época medieval, na qual o poder reinante era oriundo da delegação divina15, depreende-se que a autoridade civil, ao julgar o agente, faz as vezes de enviado de Deus para exercer, de forma antecipada, uma pequena parcela da justiça divina que se completará no pós-morte, consolidando a ideia de vingança divina.

A vertente expiatória, então, se diferencia da vingança por não ter como objetivo a restauração da ordem anterior das coisas, estando relacionada única e exclusivamente com a reconciliação do infrator consigo16, tendo as penas o suposto objetivo de gerar arrependimento e aperfeiçoamento do infrator, já que pelos preceitos cristãos – religião que teve influência direta na pena expiação17 – a pena não deveria constituir um mal para o apenado, mas um bem que salvaria e libertaria sua alma. Isso porque o Deus do cristianismo é sempre piedoso e não prega a vingança aos seus filhos e seguidores18 e, como ensina Lyra, “se sujeita o réu a sofrimento, é para que a dor o redima, tornando-o puro e capaz de comparecer diante de Deus”19.

Ao contrário do que acontecia nas sociedades primitivas, nas quais a expiação do pecado visava a não punição do grupo pela divindade que tivesse sido ofendida pela violação perpetrada, com a influência do direito canônico, o foco da pena expiação passa a ser o agente delinquente e não o corpo social. Com esse novo enfoque, foi necessário estabelecer uma medida para a aplicação da pena que, no caso, não estava atrelada ao ato cometido ou com o dano oriundo dele. O que estabelecia a medida da pena era a medida da má intenção, ou seja, o quão espiritualmente corrompido estava o agente para o cometimento daquela falta e quão necessária era a salvação de sua alma.

Outro ponto importante que merece destaque é o fato de que a Igreja, outrora, pregava a clausura para meditação e reflexão como forma de purificação (a chamada penitência) para crimes religiosos em oposição ao que acontecia no direito comum e, em alguns dos seus ramos, era contrária à aplicação de suplícios e ordálios, o que pode ser considerado como um embrionário posicionamento em prol da humanização das penas.

Todavia, as práticas rechaçadas por uma parcela da Igreja não foram totalmente extintas, como fica aparente durante o período da Inquisição20, no qual a perseguição, tortura e morte de indivíduos considerados pecadores, pois atentavam contra a Igreja e Estado, era habitual. Essa contradição advém exatamente da colocação da pena como um bem, como uma salvação, daquele que a recebe, pois se ela serve para redimir e salvar, ela não deve ser limitada, deve ser aplicada até que se obtenha sucesso, como medida de caridade para o recebedor da pena e para o grupo social o qual ele pertencia21.

Não bastasse a questão da ausência de limites para a aplicação da pena-expiação quando considerada um bem para quem a recebe, essa vertente da teoria absoluta também padece de outros problemas insolúveis e que geram questionamentos até os dias de hoje, os quais seriam a incongruência desse tipo de pena com o livre-arbítrio do ser humano, que o recebeu do próprio Deus, tornando-se inteiramente responsável pelos seus atos, quer sejam eles bons ou maus22. Além disso, tem-se o fato de que o Estado não poderia coagir, através da aplicação da pena, ou seja, pelo uso da força, um indivíduo a se arrepender, atuando na esfera psíquica do condenado23, bem como a incompatibilidade de uma pena com fundamento religioso em um Estado laico, fundado na razão e não na fé24.

Como último comentário a respeito da pena-expiação, deve-se retomar a anotação sobre a prática religiosa de penitência que se dava em celas individuais, de modo que seus habitantes ficavam isolados do mundo exterior a fim de meditar sobre seus atos e, pelas orações, expiar suas faltas e pecados, é possível notar algo de semelhante com as disposições constantes da Lei de Execução Penal, que deixam transparecer quão verdadeira e duradoura é a influência de cunho religioso no cumprimento das penas que, até os tempos atuais, os lugares em que são cumpridas penas privativas de liberdade são denominados “penitenciárias”, prevê-se um espaço celular para ocupação pelo encarcerado e se considera o arrependimento sincero do infrator pelos atos praticados como causa de diminuição de pena25. Na vertente expiatória da retribuição penal também não se pode falar em compatibilidade com o discurso ressocializador, uma vez que a sobreposição da purificação e do sofrimento até visam uma integração do apenado, mas com Deus, com a divindade, e não com o corpo social.

Durante a época contemporânea da história, tempo no qual o Estado tinha uma estrutura e organização já bem definida, surgem pensadores com grande relevância no campo de análise da formação estatal e também pensadores que se dedicaram ao estudo da aplicação do direito penal e, consequentemente, à aplicação da pena.

Na esteira de uma nova linha de pensamento e de avanços no campo da filosofia, entende-se que, como nas palavras de Duek Marques, “as leis penais e as punições teriam então de passar pelo crivo da racionalidade em interesse da sociedade, afastando-se das justificativas metafísicas ou teleológicas”26.

Nesse ambiente de luta contra a arbitrariedade do absolutismo, despontam aqueles que se tornariam os princípios norteadores da Revolução Francesa e da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e inspiraram a produção de obras valiosas até hoje para o campo do direito penal, como “Dos delitos e das penas”, de Cesare Beccaria, publicado em 1764. Essa obra rechaçava a pena como castigo e expiação, devendo a pena ter como objetivo a proteção da sociedade, sem que se configurasse uma violência ao particular.

Também podem ser citadas as importantes produções de Pietro Verri, Voltaire, Rousseau e Jean Paul Marat, todos contrários à aplicação da pena como castigo ou expiação e ao uso de tortura contra os apenados e defensores de objetivos utilitários para esse instituto, bem como da proporcionalidade entre o delito e a pena.

Ainda que no ápice do florescer das teorias relativas, a ideia de retribuição não estava totalmente extinta entre os estudiosos desse período, sendo necessário analisar a vertente do imperativo de justiça kantiana da pena, atrelada à definição desse autor de dignidade da pessoa humana. Sendo o homem um fim em si mesmo, ele não pode servir de meio para a prevenção de crimes, posto que esta função estaria voltada para ao futuro e a terceiros indivíduos27, invalidando qualquer finalidade propagada pelas teorias relativas que serão analisadas no item a seguir.

Assim, na visão de Kant, a compensação do mal do crime aconteceria com a aplicação de uma pena que causasse um mal proporcional, satisfazendo a racionalidade humana na busca por justiça. O autor traz como exemplo mais conhecido em sua obra sobre o tema, o caso a respeito da dissolução consensual de uma sociedade e a resolução ideal sobre a forma de lidar com seus apenados, quando afirma que:

[...] mesmo se uma sociedade civil tivesse que ser dissolvida pelo assentimento de todos os seus membros (por exemplo, se um povo habitante de uma ilha decidisse se separar e se dispersar pelo mundo), o último assassino (criminoso) restante na prisão teria, primeiro, que ser executado, de modo que cada um a ele fizesse o merecido por suas ações e a culpa sanguinária não se vinculasse por ter negligenciado essa punição, uma vez que de outra maneira o povo pode ser considerado como colaborador nessa violação pública da justiça. 28

A teoria kantiana possuía um fundamento moral de realização de justiça (imperativo categórico29), no qual a sociedade, lesada pelo ato praticado pelo delinquente, tornava necessária a aplicação da pena para restaurar a ordem violada, estabelecendo uma relação de causa e consequência racional para que a punição não se aproximasse da vingança irracional e do exercício da arbitrariedade estatal.

Nesse ponto, pode-se entender que Kant propunha a defesa jurídica dos imperativos categóricos morais, trazendo a aplicação da pena estabelecida para a violação perpetrada para o campo jurídico e racional. Assim, a lei deveria ser cumprida para manutenção da sociedade e, em sendo violada por um indivíduo, este faria jus ao recebimento de uma punição para que a justiça se realizasse e o corpo social permanecesse em seu perfeito funcionamento.

Como ensina Bitencourt30, Kant era um idealista stricto senso que trabalhava com o mundo do dever-ser, tendo baseado a sua teoria em um império da justiça. Diante disso, essa vertente da teoria absoluta encontra problemas na sua aplicação prática, uma vez que, no mundo fático, a realização plena da justiça teria que ultrapassar as inúmeras diferenças sociais que impedem na criação igualitária dos imperativos categóricos que regeriam a vida em comunidade.

Por isso, Gustavo Junqueira31 destaca que o autor “despreza a realidade social de imensa desigualdade, que não permite a todo o desenvolvimento de suas potencialidades com a mesma força. Assim, um grupo de eleitos acaba por revelar quais são os chamados imperativos”. Essa incongruência da concepção filosófica idealista kantiana, que parte de um cenário de igualdade inexistente no mundo fático, faz com que perseguir um objetivo tão difuso e efêmero quanto a justiça seja quase impraticável.

Ainda que com essa problematização da possibilidade de se alcançar o ideal de justiça, Kant afirma ser imprescindível que haja proporcionalidade entre a infração cometida e a penalidade aplicada e como medida da pena, para que não haja qualquer margem de erro na medida da pena, propondo o retorno da lei de talião como unidade de medida da qualidade e quantidade da pena, desde que determinada por um tribunal – ou seja o ius talione juridicamente aplicada.

Além da crítica feita, cabe dizer que, em um Estado Democrático de Direito, não há espaço para a defesa de fundamentos morais como imperativos de justiça. Esse tipo de Estado não se destina a regular a esfera moral de seus cidadãos, mas apenas a salvaguardar e tutelar bens jurídicos, a despeito da diversidade da orientação moral e ideológica de seus integrantes, diversidade essa, inclusive, que é objeto de proteção de forma estatal que prima pela diversidade social por ser, como diz sua nomenclatura, democrático32. Ademais, a ausência de reflexos futuros – naturalmente inexistentes nas teorias de finalidade absolutas – não se coaduna com a função moderna do direito penal que, com cunho político e social, prima pela redução da criminalidade.

No mais, não há que se questionar acerca da compatibilidade dessa vertente retributiva com a finalidade ressocializadora, uma vez que a realização do imperativo categórico de justiça não tem como foco principal o agente delinquente e nem visa o status futuro do mesmo como integrante da sociedade. A realização de justiça, por si só, seria o critério mantenedor da sociedade em perfeito funcionamento, independente da correção do indivíduo para a vida pós pena.

Por fim, tem-se a visão hegeliana da retribuição jurídica, que assim como a teoria kantiana, se baseia na necessidade de punição única e exclusivamente em decorrência do cometimento de um delito, mas diverge desta pelo fato da compensação ser jurídica e não moral/ética. De acordo com Hegel, o crime seria a negação da ordem jurídica positivada e a aplicação da pena funcionaria como a negação da negação.

Assim, como na matemática, a soma de negativos geraria uma carga positiva: depreende-se que ao negar (negativa 2) a violação da norma vigente (negativa 1 – o crime), a aplicação da pena tornaria possível a continuação da ordem jurídica previamente existente, além de reforçá-la (carga positiva)33. A teoria hegeliana se baseia na existência de uma ordem jurídica racional que é a manifestação da vontade da coletividade (corpo social) que, sendo contrariada no cometimento do crime pela vontade também racional de um particular, desestabiliza esse equilíbrio e se submete, de livre e espontânea vontade, à aplicação de uma pena que restaurará a ordem lesionada. Dessa racionalidade evidente na visão hegeliana temos a justeza da pena em si mesma, como ensina Duek Marques34:

A pena, sob essa ótica, é justa, por reafirmar o Direito, e não por produzir um mal correspondente ao crime cometido, pois é irracional objetivar um mal pela via do castigo, diante do mal produzido pelo crime, como ocorre no talião, que caracteriza mera vingança. Qualquer outro fundamento atribuído à pena ofenderia a dignidade humana. Para Hegel, a ameaça contida na pena constitui coação contrária à liberdade do homem, como ser racional, afastando por isso a ideia de justiça.

A racionalidade do homem o torna ciente da existência de uma ordem jurídica oriunda da vontade coletiva que inclui ele próprio e também o faz capaz de optar por violar essa ordem, tornando visível a aplicação de um método dialético que, nas palavras de Bitencourt, funciona da seguinte maneira: “a ‘tese’ está representada na vontade geral, ou se preferir, pela ordem jurídica; a ‘antítese’ resume-se no delito como a negação do mencionado ordenamento jurídico, e, por último, a ‘síntese’ vem a ser a negação da negação, ou seja, a pena como castigo do delito”35.

Da mesma forma que Kant, Hegel defende a proporcionalidade entre delito e pena, mas sem que essa equivalência ocorra pela repetição do ato criminoso, dirigindo-se ao agente. Para Hegel, a aplicação da lei de talião, como queria Kant, seria o retorno à pena-vingança. Assim, o ato cometido não definiria a modalidade da pena a ser aplicada – não havendo coincidência entre o mal da pena e o mal do crime, posto que não se pretende compensar a vítima ou a sociedade pela lesão sofrida. Assim, a pena visaria restaurar o ordenamento lesionado, ainda que de maneira conceitual, restando a função reparadora do dano recair sobre uma demanda civil e não criminal.

A visão hegeliana de retribuição jurídica também merece críticas por não se adequar à um estado moderno, cujas concepções não admitem o total descaso para com o delinquente. A aplicação da pena, nos moldes propostos pelas teorias retribucionistas, dentre as quais encontra-se a teoria hegeliana, se dá no sentido de que a anulação do crime ocorreria através da pena, o que não seria efetivo para manutenção da identidade social, já que ela não tornaria o apenado apto para um convívio saudável após o período de cumprimento de pena, uma vez que não possuiria qualquer viés preventivo.

Por fim, após analisar as vertentes mais significativas da teoria absoluta, restou cristalino que a falta de preocupação para com o futuro, quer seja no que diz respeito à pessoa do apenado em particular ou à sociedade, pois não se preocupa com a redução da criminalidade, faz com que essa teoria de finalidades da pena deixe a desejar no que diz respeito ao atendimento das expectativas da sociedade contemporânea quanto à segurança, sendo necessário um novo enfoque sobre as punições..

Por outro lado, não se pode menosprezar a contribuição das teorias absolutas no que tange ao conceito de proporcionalidade que deve existir entre o delito e a pena, como forma de compensação e limite para atuação do Estado no exercício do poder punitivo, tendo, nesse sentido, os ensinamentos de Paulo de Souza Queiroz36 que concedem mérito à finalidade retributiva justamente por se esteirar na proporcionalidade entre a pena e o delito perpetrado pelo agente.

O problema desse posicionamento encontra-se quando a relação entre delito e pena é analisada de perto, pois sabe-se que é necessário punir quando da prática de uma infração, mas não se determina com exatidão o que deve ser punido, nem porquê se deve punir, deixando os pressupostos da punibilidade sem qualquer tipo de especificação.

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