Alienação fiduciária de bens imóveis – interpretação de um sistema

06/09/2024 às 12:26
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RESUMO

Este artigo discute a questão da alienação fiduciária de bens imóveis no contexto jurídico brasileiro. A principal tese do artigo é que, quando essa modalidade de garantia é constituída por pessoas físicas ou jurídicas que não são integrantes do Sistema de Financiamento Imobiliário, a sua formalização deve ocorrer por meio de escritura pública, de acordo com o artigo 108 do Código Civil Brasileiro. A ênfase recai sobre a importância de seguir procedimentos solenes para garantir a validade dos contratos e evitar nulidades, em consonância com o interesse de promover a segurança jurídica e reduzir a sobrecarga do sistema judiciário, através da utilização de métodos extrajudiciais.

O texto também menciona que quatro estados brasileiros - Minas Gerais, Paraíba, Pará e Bahia - já estabeleceram regulamentações administrativas que estabelecem conexões entre a alienação fiduciária de imóveis e disposições do Código Civil. Esse contexto levou à instauração de um procedimento no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para esclarecer essa questão em âmbito federal. A conclusão é que, em muitos casos, a formalização da alienação fiduciária deve ocorrer por meio de escritura pública, a menos que a entidade envolvida esteja inserida no Sistema de Financiamento Imobiliário.

Além disso, o artigo examina as mudanças legislativas ao longo do tempo que influenciaram a interpretação da lei de alienação fiduciária e argumenta que a escritura pública é um elemento fundamental para garantir a segurança jurídica e proteger os consumidores. Também são apresentados exemplos hipotéticos para ilustrar as implicações da interpretação da lei.

Em resumo, o artigo enfatiza que a alienação fiduciária de bens imóveis é um direito real de garantia e destaca a necessidade de seguir os procedimentos legais adequados para garantir a validade dos contratos, prevenir fraudes e proteger os consumidores.


ABSTRACT

This article discusses the issue of fiduciary alienation of real estate in the Brazilian legal context. The main thesis of the article is that when this form of guarantee is established by individuals or legal entities that are not part of the Real Estate Financing System, its formalization must occur through a public deed, in accordance with Article 108 of the Brazilian Civil Code. The emphasis is on the importance of following solemn procedures to ensure the validity of contracts and avoid nullities, in line with the goal of promoting legal certainty and reducing the burden on the judicial system through the use of extrajudicial methods.

The text also mentions that four Brazilian states - Minas Gerais, Paraíba, Pará, and Bahia - have already established administrative regulations that establish connections between the fiduciary alienation of real estate and provisions of the Civil Code. This context led to the initiation of a procedure at the National Council of Justice (CNJ) to clarify this issue at the federal level. The conclusion is that in many cases, the formalization of fiduciary alienation must take place through a public deed, unless the entity involved is part of the Real Estate Financing System.

Additionally, the article examines legislative changes over time that have influenced the interpretation of the fiduciary alienation law and argues that the public deed is a crucial element to ensure legal certainty and protect consumers. Hypothetical examples are also presented to illustrate the implications of the interpretation of the law.

In summary, the article emphasizes that the fiduciary alienation of real estate is a real right of guarantee and highlights the need to follow the appropriate legal procedures to ensure the validity of contracts, prevent fraud, and protect consumers.


1- INTRODUÇÃO

O presente artigo tem a finalidade de demonstrar que a alienação fiduciária de bens imóveis, quando constituída por pessoas físicas ou jurídicas, não integrantes ao Sistema de Financiamento Imobiliário, somente poderá ser constituída através de escritura pública, sendo, portanto, um ato um ato solene, devendo obediência ao artigo 108, do Código Civil Brasileiro.

Esse tema tem gerado grande embate jurídico, sendo necessário esclarecer alguns pontos fundamentais, para que esse direito real de garantia, tão utilizado atualmente, seja considerado existente, válido e possa produzir todos seus efeitos, garantindo às partes, a segurança jurídica necessária, evitando dissabores e nulidades, previstas no artigo 166, IV, do Código Civil Brasileiro.

Busca-se afastar as nulidades, assim como a insegurança jurídica, e aplicar a adequada ciência jurídica vigente no ordenamento jurídico brasileiro, como forma de proteção ao direito do consumidor, aos hipossuficientes e toda a população, utilizando-se e preservando a advocacia extrajudicial, desafogado o judiciário através dos serviços extrajudiciais, dando celeridade, segurança jurídica e atuando à prevenção de litígios.

Percebe-se que em quatro (4) Estados do Brasil, sendo as Corregedorias dos Estados de Minas Gerais, Paraíba, Pará e Bahia, possuem previsão administrativa regulando, que, nesses casos, os artigo 22, §1, e 38, ambos da Lei 9.514/1997, devam ser conjugados com artigo 108, do Código Civil Brasileiro, e com a Lei 4.380/1964.

Justamente em razão dessas previsões normativas, foi deflagrado o Procedimento de Controle Administrativo n° 0000145-56.2018.2.00.0000 perante o Conselho Nacional de Justiça, em face do artigo 954, do provimento 93/2020, do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, tendo o Egrégio Conselho confirmado e declarado válida a normatização mineira, e ainda apontou na direção de que o tema deva ser regulamentado em âmbito federal.

Assim, para que os leitores tenham a própria conclusão, segue abaixo o dispositivo mineiro atacado:

"Art. 954. Os atos e contratos relativos à alienação fiduciária de bens imóveis e negócios conexos poderão ser celebrados por escritura pública ou instrumento particular, desde que, neste último caso, seja celebrado por entidade integrante do Sistema de Financiamento Imobiliário - SFI, por Cooperativas de Crédito ou por Administradora de Consórcio de Imóveis." (grifo nosso): acessar: https://www.tjmg.jus.br/data/files/C2/E0/DF/41/B61E27106431D4275ECB08A8/Provimento%20Conjunto%2093-2020.pdf

DO INSTRUMENTO PARTICULAR COM FORÇA DE ESCRITURA PÚBLICA

A terminologia “instrumento particular com força de escritura pública” se encontra presente no § 5º, do artigo 61, da Lei 4.380 de 1966. Ele dispõe que nos contratos em que foram parte o Banco Nacional de Habitação ou entidades que integrem o Sistema Financeiro de Habitação, poderão ser celebrados por instrumento particular, sendo atribuídos a esse a força de escritura pública.

A finalidade social do diploma legal acima referido, far-se-á de modo a que sejam simplificados todos os processos e métodos pertinentes às respectivas transações, conforme se verifica expressamente em seu artigo 60, o que também se verifica pela leitura da ementa da LEI N. 4.380/64, que concentra de modo conciso, o objeto da mencionada norma legal, a maneira que ela institui a correção monetária nos contratos imobiliários de interesse social, como funcionará o sistema financeiro para aquisição da casa própria, criou o Banco Nacional da Habitação (BNH) – que foi extinto, a Sociedades de Crédito Imobiliário, as Letras Imobiliárias, o Serviço Federal de Habitação e Urbanismo e dá outras providências.

Diante do que já foi dito consta que se instituiu um microssistema jurídico para os assuntos que foram por ela tratados, e em relação à forma de expressar a declaração de vontade, ela é interpretada como uma norma especial que deve prevalecer sobre a norma geral, prevista atualmente no artigo 108, do Código Civil (antigo artigo 134, II, do Código Civil de 1916). Tanto é verdade, que mesmo com advento do novo Código Civil de 2002, nunca se falou na revogação tácita de referido instituto. Trata de um microssistema jurídico que deve tratado como tal.

A Lei de alienação fiduciária, como direito real de garantia, complementou e proporcionou avanços significativos no desenvolvimento do mercado imobiliário em geral. Tanto para imóveis dados em garantia em que o credor estava vinculado ao Sistema Financeiro de Habitação, quanto para os casos em que os imóveis dados em garantia integram uma relação entre particulares que não fazem parte do sistema financeiro de habitação.

No primeiro caso, ou seja, quando o contrato de mútuo, com pacto adjeto de alienação fiduciária é para garantir o financiamento imobiliário, ocasião em que o proprietário fiduciário está vinculado ao Sistema Financeiro de Habitação ou Sistema Financeiro Imobiliário, ela deverá ser interpretada conjuntamente com o microssistema previsto para os financiamentos realizados entre entidades que integrem o Sistema Financeiro de Habitação - Lei 4.380/1966, ou a aquela que instituiu o programa minha casa minha vida - Lei 11.977/2009. Elas têm a mesma finalidade e objetivos, que são: o desenvolvimento de financiamento do setor imobiliário, com a diminuição dos riscos e consequentemente redução da taxa de juros.

No segundo caso, quando a alienação fiduciária é utilizada como garantia nos contratos de venda e compra de imóveis a prazo, ou então, quando é utilizada como garantia nos contratos de mútuo com garantia de imóvel, em que, nesses dois casos as partes sejam pessoas físicas ou jurídicas, mas não integrantes do sistema Financeiro de Habitação, a lei de Alienação fiduciária de bens imóveis poderá ser aplicada, mas deve ser interpretada como um direito real normal, sem status de incentivo ao desenvolvimento econômico imobiliário, devendo obediência ao artigo 108, do Código Civil Brasileiro, de maneira que a escritura pública passa a ser formalidade indispensável e essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País.

Pode-se concluir que, em ambos os casos, a alienação fiduciária é um direito real de garantia, tem nítida natureza acessória, tendo como característica o princípio da gravitação jurídica (o acessório segue o principal). Assim, é ato acessório de um negócio jurídico principal, como por exemplo da venda e compra, devendo o acessório seguir a sorte do principal.

ORDEM CRONOLÓGICA DAS ALTERAÇÕES LEGISLATIVAS DA LEI 9.514/1997.

Iniciar-se-á, seu estudo, a partir da exposição de motivos extraído do sitio da internet, https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9514.htm. Nele se percebe logo na ementa, que a referida Lei Dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário, institui a alienação fiduciária de coisa imóvel e dá outras providências. Como dados complementares estabelece que as companhias securitizadoras terão por finalidade a aquisição e securitização dos créditos imobiliários e a emissão e colocação no mercado financeiro de certificados de recebíveis imobiliários, (CRI), introduzindo o regime fiduciário no SFI.

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Em 20 DE NOVEMBRO DE 1997, o primeiro texto publicado tinha os seguintes dizeres: “Art. 38. Os contratos resultantes da aplicação desta Lei, quando celebrados com pessoa física, beneficiária final da operação, poderão ser formalizados por instrumento particular, não se lhe aplicando a norma do art. 134, II, do Código Civil”. (https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9514.htm).

Logo na primeira publicação o texto expressamente de maneira equivocada disciplinou que os contratos resultantes da aplicação da citada lei poderia ser formalizados por instrumento particular, não se lhe aplicando a norma do art. 134, II, do Código Civil de 1916.

Em 4 DE SETEMBRO DE 2001, o texto foi alterado pela medida provisória 2.223 de 2001, passando a ter os seguintes dizeres: “Art. 38. Os contratos de compra e venda com financiamento e alienação fiduciária, de mútuo com alienação fiduciária, de arrendamento mercantil, de cessão de crédito com garantia real e, bem assim, quaisquer outros atos e contratos resultantes da aplicação desta Lei, mesmo aqueles constitutivos ou translativos de direitos reais sobre imóveis, poderão ser celebrados por instrumento particular, a eles se atribuindo o caráter de escritura pública, para todos os fins de direito, não se lhes aplicando a norma do art. 134, II, do Código Civil. (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.223, de 2001)”

Em 2 DE AGOSTO DE 2004, o texto foi alterado pela LEI 10.931/2004, passando a ter os seguintes dizeres: Art. 38. Os contratos de compra e venda com financiamento e alienação fiduciária, de mútuo com alienação fiduciária, de arrendamento mercantil, de cessão de crédito com garantia real poderão ser celebrados por instrumento particular, a eles se atribuindo o caráter de escritura pública, para todos os fins de direito. (Redação dada pela Lei nº 10.931, de 2004).

Nessa passagem, foi novamente mantida a possibilidade dos contratos da referida lei serem celebrados por instrumento particular, a eles se atribuindo o caráter de escritura pública, também de maneira equivocada, com todo respeito aos entendimento diversos.

Em 30 DE DEZEMBRO DE 2004, o texto foi alterado pela LEI 11.076/2004, passando a ter os seguintes dizeres: Art. 38. Os atos e contratos referidos nesta Lei ou resultantes da sua aplicação, mesmo aqueles que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis, poderão ser celebrados por escritura pública ou por instrumento particular com efeitos de escritura pública.         (Redação dada pela Lei nº 11.076, de 2004).

Essa é a atual redação do artigo 38, da Lei 9.514/1997, ele diz que os atos e contratos poderão ser celebrados por escritura pública ou por instrumento particular com efeitos de escritura pública. Ela foi alterada para expressamente dizer que nem todos os contratos particulares celebrados sob sua vigência, são equiparados a escritura pública. Os únicos instrumentos particulares que podem ser utilizados são aqueles que tem efeitos de escritura pública, ou seja, aqueles celebrados por sistema integrantes do Sistema Financeiro de Habitação ou Sistema Financeiro Imobiliário.

Dessa forma, percebe-se que o legislador se preocupou em manter o sistema jurídico vigente dos direitos reais de garantia previstos no artigo 1.225, do Código Civil Brasileiro, e ainda, estendeu para a alienação fiduciária as mesmas exceções até então previstas para o penhor e a hipoteca.

No tocante aos aspectos jurídicos da hermenêutica aplicada pelo Egrégio Conselho Nacional de Justiça, destacamos o artigo de Alexandre Gonçalves Kassama, notário da Capital Paulista que enfrentou a densidade dogmática e adequação funcional da forma pública na alienação fiduciária. (https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/392714/alienacao-fiduciaria-e-forma-publica):

Deixa-se de lado, desde logo, a argumentação empreendida em torno do art. 5º, §2º, da mesma lei, por se entender que o parágrafo não pode ser ampliativo em relação ao caput, não sendo da técnica legislativa que um parágrafo de um artigo específico seja interpretado com referência a outro artigo, ainda que da mesma lei, como quiseram as autoras do texto referido, de modo que fica claro que o que quis dizer o §2º do artigo 5º é justamente que as condições obrigatórias do financiamento imobiliário previstas no mesmo artigo 5º3 - e não, por óbvio, no art. 38 -, devem ser aplicadas tanto a integrantes do SFI, quanto a entidades que eventualmente realizem a venda de imóveis a prazo fora do referido sistema.

Importante frisar que a conclusão do Dr. Marcio Martins Bonilha Filho, Desembargador aposentado do TJ/SP e sócio no escritório Barcellos Tucunduva Advogados, segue na mesma mão de direção da decisão do Conselho Nacional de Justiça ora comentada, conforme o recorte do artigo extraído do link://www.migalhas.com.br/autor/marcio-martins-bonilha-filho, que segue abaixo:

1- Com a recente decisão unânime (CNJ), torna-se obrigatório a escritura pública de alienação fiduciária entre particulares, possibilitando a excepcional forma particular apenas para as entidades financeiras do SFI e do SFH, tratando-se de medida imprescindível a implementação administrativa pelas demais Corregedorias Gerais da Justiça. 2 - A conscientização dos órgãos de classe, na preparação e reciclagem dos notários para atendimentos mais céleres a iniciativa privada. 3- A diminuição dos casos de fraude em negócios jurídicos celebrados por meio de instrumento particular, que são constantes e integram a rotina do Poder Judiciário Brasileiro. 4- Maior intervenção na fiscalização do Estado no recolhimento de impostos e no combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo, pelos tabelionatos de notas. 5- Maior segurança jurídica e proteção aos consumidores.

E também, nessa mesma linha da raciocínio Germano, José Renato Nalini e Thomas Nosch Gonçalves, conforme trecho extraído do link: (https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/392954/alienacao-fiduciaria-por-escritura-publica-ou-instrumento-particular):

Por fim, independente da correta hermenêutica, dos fundamentos legislativos ou doutrinários, o que buscamos por meio desse breve artigo é demonstrar e conscientizar o benefício do instrumento público em face do particular. Em outros termos, será possível após longo e cansativo debate ideológico, institucional e legal, toda a comunidade jurídica concluir que o instrumento público entregará mais segurança para os consumidores, o mercado, para o Judiciário e finalmente o Estado Brasileiro, que clama por uma justiça mais célere.

Continuando na exposição do entendimento firmado no presente artigo, importante destacar a fundamentação ministrada pelo relator MÁRIO GOULART MAIA, do procedimento administrativo em comento deflagrado junto ao Conselho Nacional de Justiça:

Segundo, porque o Sistema Financeiro da Habitação (SFH),

destinado a facilitar e promover a construção e a aquisição da casa própria

ou moradia, possui regramento análogo à acepção defendida pelo TJMG.

Por fim, deve-se ainda considerar ainda a declaração do Min. Corregedor Geral da Justiça Ministro Luís Felipe Salomão, que, ao proferir seu voto, apontou o desejo de regulamentar em âmbito federal o entendimento do colegiado, adotando a interpretação que prestigia a forma pública em situações que a Lei não permite a forma particular.

Para elucidar e afastar dúvidas, pode-se utilizar alguns casos hipotéticos, caso a legislação não seja interpretada sistematicamente com fundamento na teoria do diálogo das fontes, senão vejamos:

  1. Imagine-se um contrato particular de venda e compra de imóvel com garantia hipotecária – prevista no artigo 17, I, da Lei 9.514/1997 - entre pessoas não integrantes do sistema financeiro imobiliário, declarando que ele será regido pela Lei 9.514/1997, razão pela qual ficaria dispensada a escritura pública. Agora, imagine que esse imóvel dependesse da lavratura de inventário e registro, para cumprir o princípio da continuidade da Lei 6.015/1973, para ser dado em garantia, nos termos da Lei Nº 9.514 de 1997, ressalvando-se que estes herdeiros são maiores e capazes: Esse inventário poderia ser lavrado por instrumento particular ou por instrumento particular com força de escritura pública? A resposta é negativa, porque o inventário não tem relação alguma com sistema financeira imobiliário, de maneira que a instituição financeira não pode usurpar da sua função prevista em legislação para tratar de assuntos que não lhe dizem respeito.

  2. Cite-se outra situação inusitada. Imagine que o vendedor e comprador são pessoas físicas, não integrantes ao Sistema Financeiro de Habitação, e celebram um contrato particular de venda e compra de imóvel a prazo, sendo pelo preço de 1 milhão de reais, pagos em duas parcelas, sendo a primeira parcela no valor de R$1.000,00 (mil reais), e a segunda de R$ 999.000,00 (novecentos e noventa e nove mil reais, contendo os requisitos do artigo 24 (I - o valor do principal da dívida; II - o prazo e as condições de reposição do empréstimo ou do crédito do fiduciário; III - a taxa de juros e os encargos incidentes; IV - a cláusula de constituição da propriedade fiduciária, com a descrição do imóvel objeto da alienação fiduciária e a indicação do título e modo de aquisição; V - a cláusula assegurando ao fiduciante, enquanto adimplente, a livre utilização, por sua conta e risco, do imóvel objeto da alienação fiduciária; VI - a indicação, para efeito de venda em público leilão, do valor do imóvel e dos critérios para a respectiva revisão; VII - a cláusula dispondo sobre os procedimentos de que trata o art. 27. Claramente, percebe-se flagrante burla ao artigo 108, e toda sistemática dos direitos reais de garantia previstos na legislação civil.

Esses exemplos grotescos sobre a interpretação do sistema jurídico brasileiro é apenas para elucidar que o entendimento de quem admite a formalização do contrato de alienação fiduciária por instrumento particular em qualquer hipótese, caminha na contramão dos entendimentos adotados pelo Conselho Nacional de Justiça, e do restante do ordenamento jurídico brasileiro vigente, no tocante aos direitos reais de garantia sobre imóveis.

Ressalta-se ainda, em inúmeras situações orquestradas por estelionatários, que aproveitarão desse erro de hermenêutica para aplicar golpes, que serão alavancados ainda mais pelo avanço das tecnologias. Esses contratos particulares seriam assinados com assinatura eletrônicas por meio de certificados digitais da modalidade de assinatura qualificada ou a avançada, conforme se percebe no artigo 17, da Lei 6.015,/1973, causando grande insegurança jurídica do tráfego imobiliário, prejudicando terceiros de boa-fé, e uma verdadeira avalanche de processos para o judiciário apreciar.

CONCLUSÃO

Assim, a alienação fiduciária sobre bens imóveis tem natureza jurídica de direito real de garantia, assim como a hipoteca, o penhor e a anticrese. Todos esses direitos reais, são atos solenes e necessitam da escritura pública para sua constituição, conforme determina o artigo 108 do Código Civil Brasileiro. A exceção a essa regra, ou seja, o instrumento particular com força de escritura pública como forma, é aplicadas apenas aos microssistemas específicos, ou seja, em operações de desenvolvimento econômico nacional, como no setor imobiliário para aquisição da casa própria – por meio do Sistema Financeiro de Habitação ou Sistema Financeiro Imobiliário; no setor agropecuário – por meio do Decreto 167 de 1967; no setor industrial – por meio do Decreto – Lei 413 de 1969; entre outros, como as Cédula de Crédito Imobiliário, Cédula de Crédito Bancário, altera o Decreto-Lei nº 911, de 1º de outubro de 1969, as Leis nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964, nº 4.728, de 14 de julho de 1965. Nesses casos, os agentes são instituições que financiam ou intermediam recursos com pessoas físicas ou jurídicas que atuam nos respectivos nichos de desenvolvimento econômico, razão pela qual, que, em sua compreensão, buscou-se facilitar e desburocratizar, tais institutos.

Em todos esses casos, o que existe é a constituição do direito real de garantia por instrumento particular com força de escritura pública, mas os direitos reais previstos, são os mesmos existentes na legislação geral do Código Civil Brasileiro, mais precisamente em seu artigo 1.225. Tais direitos reais, quando interpretados em seu microssistema, tem suas peculiaridades e características específicas. Como exemplo, pode-se citar a hipoteca existente na cédula rural hipotecária prevista no Decreto 167/67. Ela possui as mesmas características da hipoteca prevista no artigo 1.225, IX, do Código Civil Brasileiro, e tem ainda um complemento para incentivar o desenvolvimento agrícola, como: podem ser constituídas por instrumento particular com força de escritura pública, geram inalienabilidade e impenhorabilidade do bem, dependem de anuência do credor para alienação e desmembramento, dentre outros adjetivos, que não são aplicados à hipoteca convencional.

Portanto, a Lei de Alienação fiduciária de bens imóveis, disciplina dois institutos distintos, conforme se percebe na sua ementa:

  1. No primeiro caso ela dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário, específico para integrantes desses sistemas;

  2. No segundo momento, ela institui um novo direito real de garantia de coisa imóvel que pode ter como sujeitos pessoas físicas ou jurídicas, integrantes do sistema financeiro de habitação, imobiliário, agropecuário ou industrial ou não.

A especificidade da referida Lei é o processo pelo qual a garantia será excutida em caso de inadimplemento. Assim, uma vez constituída, por qualquer sujeito, ela não precisará bater às portas do judiciário para satisfação do crédito do credor.

Porém, quanto a sua constituição, mister se faz o apoio da teoria do diálogo das fontes, de modo que, somente poderá ser constituída através de escritura pública, sendo, portanto, um ato um ato solene, devendo obediência ao artigo 108, do Código Civil Brasileiro, quando constituída por pessoas físicas ou jurídicas, não integrantes ao Sistema de Financiamento Imobiliário.

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