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A escolha de Carolina: vida, dor e morte

16/09/2024 às 10:45
Leia nesta página:

Comentamos o caso da mulher que buscou levantar fundos para acabar com o próprio sofrimento através do suicídio assistido.

Este caso não é apenas sobre Carolina, é um espelho das nossas incoerências e da maneira hipócrita como tratamos questões de vida e morte.

Carolina Arruda, uma mineira de 27 anos, trouxe à tona uma questão delicada e profundamente controversa: o direito de escolher a morte, diante de uma vida de sofrimento. Diagnosticada com neuralgia do trigêmeo, uma doença degenerativa e incurável que provoca dores intensas e incessantes, a jovem enfrenta a enfermidade há mais de uma década tendo passado por mais de 70 médicos, 50 medicamentos diferentes e 4 cirurgias, sem qualquer melhora.

Por conviver com intensas dores 24 horas por dia, a jovem vive constantemente hospitalizada e quase não permanece de pé, o que a impede de trabalhar e cuidar da filha de 11 anos, que vive com parentes. Tamanho sofrimento a levou a tentar o autoextermínio 2 vezes, e recentemente Carolina tomou uma controversa decisão.

Através de uma campanha de arrecadação online intitulada “Por uma despedida digna: ajude Carolina a alcançar paz”, ela busca levantar fundos para acabar com o próprio sofrimento através do Suicídio Assistido. Diferente da Eutanásia, o procedimento consiste na administração de medicamentos letais pelo próprio paciente, que deve ter plenas capacidades mentais e supervisão médica. Embora a família de Carolina seja contrária à sua decisão, até sua filha a compreende e apoia, por ter acompanhado seu sofrimento desde o dia em que nasceu.

Como o Suicídio Assistido e a Eutanásia são proibidos no Brasil, a jovem estudante de veterinária faria o procedimento na Suíça com auxílio da Dignitas, uma instituição sem fins lucrativos que atua desde 1998 sob o slogan "viver com dignidade, morrer com dignidade" auxiliando pessoas com o Suicídio Assistido, permitido no país. Trata-se de uma das poucas instituições no mundo que auxilia pacientes de outros países.

Segundo Dr. Carlos Marcelo de Barros, presidente da Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor (SBED), a doença é causada por um raro conflito vascular no qual uma artéria mal-formada toca o nervo, causando sua disfunção e ocasionando as dores. O quadro de Carolina é ainda mais grave, pois é bilateral (acomete os dois nervos) e atinge os três ramos de cada nervo, sendo um raríssimo caso da doença em seu máximo potencial. Além disso, a jovem foi diagnosticada ainda na adolescência, embora a doença geralmente acometa idosos.

A coragem de Carolina em expor sua condição deu voz a milhares de pacientes com dores crônicas no Brasil, fomentando importantes debates sobre o tema. Após seu caso viralizar, a Santa Casa de Alfenas anunciou tratamento gratuito para 50 pacientes com neuralgia do trigêmeo. Diversas medidas parecidas foram anunciadas pelo país, ocorrendo importantes debates sobre a criação de políticas públicas para assistência aos pacientes com dor crônica no Brasil. Em paralelo, a campanha de arrecadação alcançou mais de R$ 137 mil até meados de julho, doados por quase 3 mil pessoas.

Nas Redes Sociais, Carolina recebeu o apoio de milhares de seguidores. Houve também covardes ataques à jovem, com asneiras como “a doença dela é falta de Deus”, mas nada disso a abalou. Carolina seguiu demonstrando sabedoria e empatia, como no vídeo em que orientou outros pacientes de que eutanásia não é a única saída, afirmando que seu caso é muito raro e não deveria servir como referência, pois o quadro da maioria dos pacientes não é tão grave, e responde bem aos tratamentos.

Sua postura positiva atraiu boas atitudes: Dr. Carlos Marcelo de Barros, autoridade no tratamento de dor crônica, decidiu auxiliá-la a buscar novas opções de tratamento, sem qualquer custo. Empresas da indústria farmacêutica se dispuseram a fornecer medicamentos, visto que os tratamentos mais inovadores não são oferecidos pelo SUS. Com este apoio, talvez, a jovem pudesse ter sua vida de volta após 10 anos de sofrimento. Se não plenamente recuperada, pelo menos com dores suportáveis que lhe permitam trabalhar, estudar, cuidar de sua filha e viver com dignidade. Carolina compartilhou sua alegria com seus seguidores nas redes sociais, afirmando que em caso de sucesso, poderia desistir da eutanásia e doar o dinheiro arrecadado. No entanto, sua esperança despertou vozes críticas, algumas delas agressivas, que irresignadas com sua decisão, questionaram seu desejo de abraçar a vida após aceitar a morte.

Este caso reflete uma peculiaridade sombria de nossa sociedade: enquanto muitos apoiavam sua busca por um final sem dor, outros pareciam mais interessados no espetáculo da sua morte, criticando-a por decidir viver. Estas reações revelam a complexidade moral e ética que envolve a eutanásia e o suicídio assistido: mesmo enfrentando uma dor inimaginável, Carolina foi julgada pelas duas decisões: por considerar morrer, e por desejar viver.

Quem pediu o dinheiro de volta não doou para a ajudar: pagou para assistir a um espetáculo. Com o cancelamento, nada mais natural do que pedir seu dinheiro de volta! Qualquer semelhança com os distópicos capítulos de Black Mirror, é mera coincidência: trata-se só de mais um dia comum na nossa civilizada e moderna sociedade, repleta de pessoas que se encantam com o sofrimento alheio, como nos circos e shows de horrores que existiam no início do século passado.

A maioria dos críticos não pediu dinheiro de volta, pois nada doou. São abutres enfurecidos pelo cancelamento do final trágico e gratuito. Carolina teve que se explicar com a finalidade de cessar as críticas. “As pessoas que doaram estão preocupadas em me ver bem, na minha busca pela paz, seja ela viva ou morta. E as pessoas que estão revoltadas querem me ver fazendo eutanásia”, disse. Se criassem um reality-show para este público, com pacientes terminais disputando o prêmio da eutanásia, seria um sucesso absoluto. Imaginem: a morte sendo transmitida ao vivo, no horário mais nobre dos domingos em família? Teríamos 50 temporadas seguidas, com recordes de audiência.

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Talvez Carolina se recupere, mas os carniceiros de plantão podem respirar aliviados, pois quase 2 milhões de brasileiros morrem das mais variadas formas todos os anos. Basta ir a um corredor imundo de qualquer hospital público, que o entretenimento é garantido e gratuito. Quem ama coisas horríveis nasceu na época certa e no país mais indicado, pois somos especialistas em tragédias. Portanto, não se revoltem porque Carolina deseja viver, basta fazer a pipoca e ligar a TV em qualquer canal aberto. Na semana passada, 2 bebês foram sufocados até a morte pelos pais por estarem chorando demais, e o caso ganhou as manchetes em todos os telejornais, que bateram recordes de audiência dando detalhes sórdidos dos crimes.

Carolina já passou por muitos tratamentos e sucessivas frustrações, e talvez não creia em um milagre a essa altura, e somente busque alguma qualidade de vida até vencer toda a burocracia para morrer honestamente, pois no Brasil, até morrer pelos motivos certos é um grande desafio. O estado atrapalha, as autoridades interferem, muitos dão palpites e poucos realmente ajudam.

A jovem busca realizar o procedimento na Suíça porque não existe regulamentação sobre a morte assistida no Brasil. No Congresso Nacional há projetos em tramitação que tratam da morte assistida, e também projetos que buscam viabilizar a eutanásia, que atualmente é tipificada como homicídio. Tanto a eutanásia quanto o suicídio assistido são considerados ilegais pela Constituição Federal, segundo a qual, o direito à vida é fundamental e irrenunciável. Resumindo: o brasileiro não pode morrer, nem consegue se tratar adequadamente: legalmente, só nos resta sofrer. Nosso pátria amada não se contenta em ser dona da nossa vida, é também dona da nossa morte, e não a concede facilmente quando a desejamos.

Este caso não é apenas sobre Carolina, é um espelho das nossas incoerências e da maneira hipócrita como tratamos questões de vida e morte. O diálogo sobre a eutanásia e o suicídio assistido precisa ser conduzido com empatia, respeito e, acima de tudo, um compromisso com a dignidade humana. O caso de Carolina deve servir como um catalisador para mudanças significativas em como lidamos com o sofrimento e a morte, garantindo que as escolhas no fim da vida sejam respeitadas e apoiadas, não apenas toleradas ou condenadas.

Carolina, caso leia esta coluna, saiba que, caso você não tenha mais esperança, nós, milhões de brasileiros do bem, ainda temos. Torcemos por você, pela competente equipe médica que assumiu seu caso, e pela medicina moderna que quase não tem limites. Esperamos que se recupere plenamente, ou que ao menos encontre o conforto que procura.

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Sobre o autor
Renato Assis

Advogado inscrito na OAB dos estados de BA, ES, MG, PR, SP e RJ; Professor de Direito e empresário; Graduado em Direito pela Universidade FUMEC-MG; Especialista em Direito Processual pela PUC-MG; Especialista em Direito Médico pela Universidade de Araraquara/SP; MBA em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas/RJ; Especialista em Direito Ambiental e Minerário pela PUC/MG; Professor do curso de Direito Médico e Odontológico da UCA (Universidade Corporativa da ANADEM); Autor do livro “Direito Processual e o Constitucionalismo Democrático Brasileiro” – 2009; Autor do livro “Socorro Mútuo: Como a Proteção Veicular revolucionou o mercado de Proteção Patrimonial e de Seguros do Brasil” – 2019; Conselheiro Jurídico e Científico da ANADEM – Sociedade Brasileira de Direito Médico e Bioética; Acadêmico Efetivo e Vitalício na área de Ciências Jurídicas da ALACH – Academia Latino-Americana de Ciências Humanas; Membro da AIDA – Associação Internacional de Direito do Seguro; Membro da WAML – World Association for Medical Law; Presidente da Unidade Brasil da ASOLADEME – Associación Latinoamericana de Derecho Médico.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ASSIS, Renato. A escolha de Carolina: vida, dor e morte. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7747, 16 set. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/110828. Acesso em: 2 nov. 2024.

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