Capa da publicação Justa causa para abordagem policial e busca pessoal
Capa: DepositPhotos

Justa causa para abordagem policial e busca pessoal

Exibindo página 1 de 2
11/09/2024 às 11:49

Resumo:


  • A abordagem policial e a busca pessoal são institutos distintos, sendo a abordagem o ponto de partida para a busca pessoal, mas não se confundem.

  • O Superior Tribunal de Justiça tem se manifestado sobre a necessidade de fundada suspeita para abordagem policial, o que pode gerar confusão entre os requisitos para cada instituto.

  • A correta diferenciação entre abordagem policial e busca pessoal é essencial para garantir a segurança jurídica na atuação policial e evitar prejuízos práticos decorrentes de interpretações equivocadas.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Tribunais têm restringido abordagens policiais, especialmente em casos de tráfico de drogas, gerando insegurança jurídica e confusão entre abordagem e busca pessoal.

1. INTRODUÇÃO

Em nosso dia a dia é comum presenciarmos equipes policiais realizando abordagens a veículos e pedestres. Ora são abordagens em fiscalização de trânsito, ora para realizar buscas, com o intuito de encontrar elementos de corpo de delito ou efetuar prisões, e há casos em que a abordagem visa apenas a orientação e demais verificações rotineiras.

Ocorre que, nos últimos anos, os Tribunais Superiores têm restringido sobremaneira a atuação das polícias em abordagens, especialmente nos casos envolvendo tráfico de drogas. Não bastasse a enxurrada de interpretações para todos os lados acerca da matéria, causando, por conseguinte, enorme insegurança jurídica, há, ainda, a presença de importante atecnia quanto ao manuseio de institutos como o da abordagem policial e o da busca pessoal, não raras vezes sendo tratados como sinônimos, entendimento este que claramente não merece prosperar.

Sem a pretensão de esgotar o tema, o presente artigo visa apresentar a considerável diferença existente entre os requisitos necessários para uma abordagem policial, dos requisitos exigidos para a busca pessoal. Ainda, impactos reais que a inobservância dessa diferenciação nos julgados pode causar na atividade policial, dificultando a tomada de decisões e comprometendo a ordem pública.


2. ABORDAGEM POLICIAL E BUSCA PESSOAL COMO INSTRUMENTOS PRIMORDIAIS DAS POLÍCIAS

A Constituição Federal (Brasil, 1988) assevera que é dever do Estado, por meio de suas polícias, garantir a preservação da ordem pública, incolumidade das pessoas e do patrimônio. Para efetivar a obrigação, União, Estados e Distrito Federal criaram as suas respectivas polícias para atuarem preventiva e repressivamente. Os municípios, por sua vez, estão incumbidos da criação de Guardas Municipais, com o objetivo constitucional de garantir a segurança do patrimônio municipal e seus usuários. A criação das polícias origina a competência de cada uma delas, desempenhando funções típicas e atípicas, de natureza administrativa ou criminal.

São considerados órgãos de Segurança Pública as Polícias Federal, Rodoviária Federal, Ferroviária Federal, Civis, Militares e Penais, bem como a Guarda Municipal e os Corpos de Bombeiros Militares. Na seara criminal, com exceção dos Corpos de Bombeiros Militares, os órgãos mencionados devem agir para que o crime não ocorra e, em havendo a consumação ou tentativa, agir para que o autor seja identificado e responsabilizado. Já na seara administrativa, dentro da busca pelo interesse coletivo, além de diversas prerrogativas, detém o poder de polícia.

O poder de polícia é uma das espécies de poderes administrativos. Hely Lopes Meirelles (Meirelles apud Marcelo Alexandrino, 2018, p. 293) conceitua o poder de polícia como sendo “a faculdade de que dispõe a Administração Pública para condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais, em benefício da coletividade ou do próprio Estado”. A doutrina divide o poder de polícia em preventivo, repressivo e fiscalizador. Preventivo, ao estabelecer normas que limitam ou condicionam a utilização de bens ou o exercício de atividades privadas que possam afetar a coletividade (Marcelo Alexandrino, 2018, p. 297); repressivo, ao praticar atos específicos em obediência à lei e aos regulamentos, como por exemplo, apreender revistas pornográficas; e fiscalizador, quando previne lesões, vistoriando veículos, fiscalizando pesos e medidas, entre outros (Matheus Carvalho, 2020, p. 138).

Além daquilo que a doutrina aponta acerca do poder de polícia, o Código Tributário Nacional (Brasil, 1966) e o Código de Trânsito Brasileiro (Brasil, 1997), conferem amplos poderes às instituições que exercem papel de fiscalização, como se nota:

CTN. Art. 78. [...] atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

CTB. Art. 20. Compete à Polícia Rodoviária Federal, no âmbito das rodovias e estradas federais: [...]
II - realizar o patrulhamento ostensivo, executando operações relacionadas com a segurança pública, com o objetivo de preservar a ordem, incolumidade das pessoas, o patrimônio da União e o de terceiros;

III - executar a fiscalização de trânsito, aplicar as penalidades de advertência por escrito e multa e as medidas administrativas cabíveis, com a notificação dos infratores e a arrecadação das multas aplicadas e dos valores provenientes de estadia e remoção de veículos, objetos e animais e de escolta de veículos de cargas superdimensionadas ou perigosas.

CTB. Art. 23. Compete às Polícias Militares dos Estados e do Distrito Federal: [...]

III - executar a fiscalização de trânsito, quando e conforme convênio firmado, como agente do órgão ou entidade executivos de trânsito ou executivos rodoviários, concomitantemente com os demais agentes credenciados.

Por isso, diante de tantas funções que os órgãos de polícia possuem, inimaginável seria realizar tudo isso sem a presença daquilo que, pela natureza da atividade, é o carro-chefe das polícias: a abordagem.

A abordagem policial é instrumento operacional primordial para a segurança pública e preservação da ordem, por meio dela ocorrem as intervenções policiais em atendimento às mais diversas ocorrências. Também, a partir da abordagem, o policial orienta o cidadão, interage com a sociedade, flagra e autua em irregularidades administrativas de trânsito. Logo, a presença policial não se resume a uma viatura transitando em via pública com giroflex acionado e o policial como mero observador, mas na possibilidade de um veículo ser abordado e fiscalizado a qualquer momento, fazendo valer o poder de polícia preventivo, fiscalizador e, em caso de flagrante, o poder de polícia repressivo, conforme disciplinam as normas vigentes.

Reconhecendo a importante missão da polícia, o TJSC já se manifestou sobre a aptidão policial para distinguir agentes que, por determinadas manifestações de comportamento, aparentam ou não estarem dotados de boa-fé:

Aliás, é preciso pontuar que o policial militar, diferentemente da maior parte dos civis, é profissional altamente treinado no combate ao crime. É da essência da sua função possuir a aptidão para rapidamente "separar o joio do trigo", possuindo faro severamente aguçado para distinguir agentes que, por determinadas manifestações de comportamento, aparentam ou não estarem dotados de boa-fé. Foi exatamente isso que, tanto mais aliado às circunstâncias traduzidas do contexto fático, permitiu a empreendida, forte nas fundadas suspeitas de que ali aparentava florescer uma ocorrência de crime (como de fato se verificou com a flagrância bem sucedida, desmantelando possível narcotraficância).

Logo, constatado que a ação policial estava legitimada pela existência de fundadas suspeitas para a abordagem e a busca, não se vislumbra a ilicitude das provas obtidas, impondo-se a denegação da ordem neste ponto em específico.

(TJSC, Habeas Corpus Criminal n. 5035228-68.2024.8.24.0000, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Mauricio Cavallazzi Povoas, Quarta Câmara Criminal, j. 27-06-2024).

Durante a abordagem, as polícias enfrentam o momento mais sensível na atuação, pois os riscos altíssimos exigem do agente a técnica adequada, respeitando o que preconiza a doutrina policial. Trata-se de importante meio de prevenção e repressão às mais diversas infrações, sejam elas de natureza administrativa ou criminal. São muitos os casos de abordagens que iniciam no âmbito da fiscalização administrativa de trânsito e terminam na seara criminal, com agentes presos, armas, drogas e veículos apreendidos.

Cada instituição policial, de seu turno, está incumbida de regular suas condutas e seus procedimentos. O Manual Técnico-Profissional nº 3.04.01/2020-CG, da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais (2020, p. 32), por exemplo, fornece o seguinte conceito de abordagem policial:

Trata-se de um conjunto de ações policiais militares ordenadas e qualificadas para que o policial militar possa se aproximar de pessoas, veículos ou edificações com o intuito de orientar, identificar, advertir, realizar buscas e efetuar detenções. Para tanto, utiliza-se de técnicas, táticas e meios apropriados que irão variar de acordo com as circunstâncias e com a avaliação de risco.

Em recente decisão monocrática do Ministro Cristiano Zanin, do STF, (RE 1.511.104/RS, julgado em 05 set. 2024), reiterou-se que “a abordagem realizada pelos agentes decorre da própria função de patrulhamento e policiamento ostensivo atribuídos aos policiais militares, não havendo falar-se, portanto, em conduta desprovida de previsão legal e em desacordo com a Constituição de 1988”. Confirma, portanto, que a abordagem decorre da própria função e, sendo assim, não há razões para exigir grandes requisitos aptos a justificar o emprego desse instrumento/instituto, diferentemente da busca pessoal processual, que a própria lei determina que seja amparada na fundada suspeita.

Porém, é inegável que a abordagem é um ato administrativo e que exige motivação para sua execução. Ocorre que a motivação se dá a partir da abordagem preventiva, essa que, de acordo com Marcelo Lessa (2022), pode ser entendida como:

[...] uma interpelação excepcional decorrente do poder de polícia e do poder-dever de vigilância do Estado, e que objetiva, com razoabilidade e prévia suspeita perceptiva objetiva (note-se, e não mera suposição para fins de invasão sumária de privacidade), preservar a ordem pública, prevenir delitos e atos antissociais ou atender as conveniências e necessidades coletivas.

Nesse sentido, é a nova recomendação da Polícia Civil do Estado de São Paulo (DGP nº 01, de 11 de julho de 2024), que trata acerca dos parâmetros de interpretação das expressões “justa causa”, “fundadas razões” e “fundada suspeita”. A recomendação trouxe em seu item 2, pioneiro esclarecimento sobre a abordagem preventiva e seus fundamentos: a abordagem preventiva tem fundamento no direito administrativo e pode ser discricionária, desde que respeite os princípios da administração pública, sem qualquer espécie de discriminação.

O mesmo item ensina que a abordagem preventiva é genérica e por amostragem, derruindo a alegação de fundada suspeita para a sua aplicação:

A abordagem preventiva tem fundamento no direito administrativo, motivo pelo qual poderá ser discricionária; contudo, deverá seguir os princípios da legalidade, moralidade, impessoalidade, entre outros, de modo que não pode ser determinada por motivos de cor, origem, classe social, ou sem qualquer motivação razoável, sob pena de o agente responder por abuso de autoridade. [...] A abordagem veicular pode resultar de uma situação de fiscalização de trânsito (bloqueio ou blitz), ocasião em que a abordagem preventiva é genérica e por amostragem, ou decorrente de situação de policiamento, caso em que o motivo determinante deve ser explicitado, com fim de demonstrar que a diligência era lícita na origem, legitimando eventual busca que se seguir.

Nessa toada, o Superior Tribunal de Justiça (2024), em recente julgado, confirmou que a abordagem pontual de condutores decorre do poder de polícia administrativa, não dependendo de indícios de ilicitude:

[...] A realização de uma blitz de trânsito, assim como a de abordagens pontuais de condutores no trânsito (isto é, independentes da existência de uma blitz), têm amparo no poder de polícia administrativa para fiscalização do trânsito, conforme estabelecido especialmente nos arts. 19 a 25-A do CTB. Dessa forma, não dependem da existência de indícios da prática de algum ilícito, porque, diferentemente da livre circulação de pedestres no espaço público, a condução de veículos automotores é prática que exige o preenchimento de requisitos regulamentares prévios (por exemplo, a habilitação) e sujeita os motoristas à fiscalização rotineira quanto ao cumprimento dessas condições. Essas medidas, portanto, são diferentes das buscas veiculares ou buscas pessoais em condutores, que se destinam a apurar a eventual posse de corpo de delito e têm fundamento processual penal (art. 244 do CPP)

(AgRg no RHC n. 178.809/GO, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 20/5/2024, DJe de 22/5/2024).

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Em decisão anterior, inclusive, afastou a ilegalidade de abordagem policial fundamentada unicamente no poder fiscalizador e repressivo:

AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL CONTRA DECISÃO QUE CONCEDEU ORDEM. DIREITO PENAL. PROVAS LÍCITAS. BUSCA PESSOAL E DESDOBRAMENTOS FIRMADOS EM JUSTA CAUSA. AGRAVADO NO INTERIOR DE VEÍCULO NO QUAL O MOTORISTA DESRESPEITOU A ORDEM DE PARADA EM BARREIRA POLICIAL. ELEMENTOS CONCRETOS. AÇÃO PENAL INSTAURADA EM RAZÃO DAS PROVAS OBTIDAS EM ATO CONSIDERADO LEGAL. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. CASSAÇÃO DE DECISÃO MONOCRÁTICA.

1. A abordagem policial decorre do poder de polícia inerente à atividade do Poder Público que, calcada na lei, tem o dever de prevenir delitos e condutas ofensivas à ordem pública (HC n. 385.110/SC, Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, DJe 14/6/2017).

2. A busca veicular, in casu, fundamentou-se em efetiva suspeita (fuga de blitz policial), a configura justa causa para atuação policial, ou seja, quando os agentes empreendem fuga de blitz policial [...]. A resistência à abordagem policial demonstra a necessidade da prisão como forma de garantir a aplicação da lei penal (HC n. 454.752/SC, Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, DJe 15/8/2018).

3. Agravo regimental provido para, ao cassar o decisum de fls. 491/495, manter in totum o acórdão a quo, nos termos do voto.

(AgRg no HC n. 839.360/RS, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 27/2/2024, DJe de 1/3/2024).

Como se vê, o STJ reconhece a importância da abordagem policial no contexto de prevenção aos delitos e condutas ofensivas à ordem pública. Nessa toada, é notório que a abordagem policial não exige requisitos minuciosos para que haja justa causa para sua execução, pois decorre do poder de polícia administrativa, onde a fiscalização e ações preventivas são exigidas pelas normas e esperadas pela população, garantindo sensação de segurança para a comunidade e reduzindo a necessidade de adentrar nas vias sempre indesejadas da repressão.

Nesse ponto, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina já reconheceu a legalidade de abordagem policial exclusivamente pautada nos interesses coletivos da Segurança Pública:

A abordagem do agente ocorreu durante a realização de uma ronda ostensiva, ou seja, atividade típica da Polícia Militar. Por meio dela, identificaram de modo objetivo um comportamento suspeito por parte dos agentes delitivos, sendo que a suspeita resultou confirmada pela apreensão do material entorpecente. Frente a esse cenário, também é pertinente ponderar que, tratando-se de abordagem em via pública, de um lado há mera expectativa de privacidade do indivíduo que nela voluntariamente se expõe e, de outro lado, existem interesses coletivos no âmbito de incidência da Segurança Pública, objeto de tutela por agentes do Estado. À luz do Direito Administrativo que erige o princípio da supremacia do interesse público, esses agentes exercem poder de polícia a fim de assegurar a convivência pacífica em sociedade, razão pela qual legalmente se mitiga o direito individual em prol do coletivo. Ao estar a ação policial pautada em legitimidade e licitude, para derruí-la é indispensável a demonstração concreta do desvio de finalidade, abuso ou excesso, não se mostrando suficiente mera conjectura de ato discriminatório ou de excesso policial. Não obstante a existência de vozes dissonantes na jurisprudência pátria, inegável que a ação supostamente defensiva, adotada pelo agente, atrai para si condição atípica, que justifica a ação policial.
Pensar o contrário, em muitas hipóteses, poderia inclusive resultar no reconhecimento do crime de prevaricação do agente público. Afinal, impossível não imaginar que a adoção de conduta evasiva, em nítida reação à aproximação policial, revela elemento objetivo de situação de risco, perigo ou flagrância de ilícito. É pertinente lembrar que o Estado investe recursos na preparação dos policiais para o enfrentamento do crime e preservação da ordem pública justamente para melhor qualificar a percepção ou tirocínio do policial a respeito de determinada conduta ou circunstância, porém, decisões mais modernas tendem a equipará-lo ao cidadão comum que não detém determinados atributos, o que não se mostra razoável.

(TJSC, Apelação Criminal n. 0000094-16.2017.8.24.0031, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Carlos Alberto Civinski, Primeira Câmara Criminal, j. 11-04-2024).

Como se nota, a atividade de polícia administrativa é ampla, e diferente não poderia ser, afinal, o contrato social outorga ao Estado o poder/dever de restringir direitos individuais em prol do interesse comum e social (Rousseau, 1996). Para cumpri-lo, o soberano deve garantir ao cidadão circular pelas ruas sem o receio de um malfeitor estar caminhando ao seu lado ou, por exemplo, um indivíduo embriagado dirigir automóvel e colocar em risco a coletividade. São inúmeras as atribuições da polícia administrativa e a pronta atuação na prevenção e fiscalização, desde que pautado no interesse coletivo e sem desvio de finalidade, é o mínimo que o cidadão que paga seus altos impostos regularmente espera do Estado.

Por fim, é importante destacar que conforme entendimento pacificado do STF, é dever constitucional o policiamento preventivo e ostensivo, de modo que as forças policiais, ao realizarem policiamento, atuam em estrita observância à legalidade.

Com efeito, a Constituição que assegura o direito à intimidade, à ampla defesa, contraditório e inviolabilidade do domicílio é a mesma que determina punição a criminosos e o dever do Estado de zelar pela segurança pública. É dizer: o policiamento preventivo e ostensivo, próprio das Polícias Militares, a fim de salvaguardar a segurança pública, é um dever constitucional. Os suspeitos têm direito a um sistema penal democrático e a um processo penal justo, ao tempo em que a sociedade tem direito a viver com tranquilidade nas vias públicas.

(RHC 229514 AgR, Relator(a): GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 02-10-2023, PROCESSO ELETRÔNICO, DJe-s/n DIVULG 20-10-2023, PUBLIC 23-10-2023).

Há casos em que a intervenção do agente policial vai além, necessitando realizar a busca pessoal, em desdobramento da abordagem policial. Toda busca pessoal decorre de uma abordagem policial, mas nem sempre a abordagem policial (gênero) resulta em busca pessoal (espécie), e é por isso que tal diferenciação precisa ser observada e respeitada.

O procedimento de busca pessoal é naturalmente invasivo, impõe que o agente estatal toque no corpo e nos pertences do abordado, adentrando na esfera da privacidade, intimidade e limitando o direito de ir e vir, direitos previstos na Constituição Federal:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; [...]

XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;

A busca pessoal é dividida em duas subespécies, quais sejam: busca pessoal por razões de segurança/preventiva e a busca pessoal de natureza processual penal. A busca pessoal por razões de segurança não está regulamentada pelo Código de Processo Penal, possui natureza contratual e, em caso de recusa, apenas impede a pessoa de utilizar o serviço ou frequentar estabelecimento, é o caso de festas, aeroportos, rodoviárias, etc. (Renato Brasileiro de Lima, 2020, p. 806).

E é nesse sentido que o Superior Tribunal de Justiça, no HC nº 625274 / SP, entendeu que a vistoria em bagagens de passageiros de coletivos não necessita fundada suspeita, haja vista se tratar de busca pessoal preventiva e não de natureza processual penal:

[...] Assim, forçoso concluir que a inspeção de segurança nas bagagens dos passageiros do ônibus, em fiscalização de rotina realizada pela Polícia Rodoviária Federal, teve natureza administrativa, ou seja, não se deu como busca pessoal de natureza processual penal e, portanto, prescindiria de fundada suspeita. Dito de outro modo, se a bagagem dos passageiros poderia ser submetida à inspeção aleatória na rodoviária ou em um aeroporto, passando por um raio-X ou inspeção manual detalhada, sem qualquer prévia indicação de suspeita, por exemplo, não há razão para questionar a legalidade da vistoria feita pelos policiais rodoviários federais, que atuaram no contexto fático de típica inspeção de segurança em transporte coletivo.

(HC 625.274-SP, Rel. Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, por unanimidade, julgado em 17/10/2023, DJe 20/10/2023)

A busca pessoal de natureza processual penal, de seu turno, está disciplinada no Código de Processo Penal (Brasil, 1940):

Art. 240.  A busca será domiciliar ou pessoal.

§ 1o  Proceder-se-á à busca domiciliar, quando fundadas razões a autorizarem, para:

a) prender criminosos;

b) apreender coisas achadas ou obtidas por meios criminosos;

c) apreender instrumentos de falsificação ou de contrafação e objetos falsificados ou contrafeitos;

d) apreender armas e munições, instrumentos utilizados na prática de crime ou destinados a fim delituoso;

e) descobrir objetos necessários à prova de infração ou à defesa do réu;

f) apreender cartas, abertas ou não, destinadas ao acusado ou em seu poder, quando haja suspeita de que o conhecimento do seu conteúdo possa ser útil à elucidação do fato;

g) apreender pessoas vítimas de crimes;

h) colher qualquer elemento de convicção.

§ 2o  Proceder-se-á à busca pessoal quando houver fundada suspeita de que alguém oculte consigo arma proibida ou objetos mencionados nas letras b a f e letra h do parágrafo anterior.

Ainda, o art. 244 do mesmo diploma legal, prevê que:

A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar.

Em que pese certa obscuridade sobre o que seria a “fundada suspeita”, mencionada no art. 244, do CPP, o comportamento do indivíduo é, certamente, um dos principais fundamentos para ser realizar a busca pessoal. O nervosismo, a mudança de trajeto e a dispensa de objetos ao visualizar a viatura policial, correr da polícia, o cheiro de droga, a alta velocidade no trânsito em via de baixa velocidade e o fato de possuir qualquer sinal de anormalidade no local em que está, como objetos volumosos em partes do corpo, são fundamentos que caracterizam a fundada suspeita e legitima a abordagem policial (Rodrigo Foureaux, 2022).

O próprio STF já indicou que o fato de o indivíduo correr ao avistar a polícia, trata-se de elemento objetivo apto a justificar a abordagem e busca pessoal:

Entendo que, na situação descrita, houve fundadas razões para a busca pessoal, que foram devidamente justificadas a posteriori, indicando a situação de flagrante delito. No caso ora em análise, os agentes públicos receberam denúncia de um transeunte de que havia, em frente a local específico, um indivíduo, com determinadas características, vendendo drogas. Ao aproximarem-se do local, conhecido ponto de tráfico, encontraram o acusado, que tinha características similares às relatadas pelo denunciante. O réu tentou fugir, mas, após ser detido, foi revistado e com ele foram encontrados 80 microtubos/pinos contendo a droga cocaína e 45 pedregulhos da droga “crack” (cloridrato de cocaína).

(RE 1.511.104/RS, julgado em 05/09/2024).

Contudo, compreendendo o grau de invasividade de uma busca pessoal, o STJ têm restringido cada vez mais a interpretação do que seria a fundada suspeita, apta a caracterizar justa causa e autorizar a busca, exigindo elementos objetivos para este fim. A justificativa seria evitar revistas exploratórias (fishing expedition):

AGRAVO REGIMENTAL INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO DO RIO GRANDE DO SUL CONTRA DECISÃO QUE CONCEDEU A ORDEM. PROVAS ILÍCITAS. BUSCA DOMICILIAR COMO DESDOBRAMENTO DA BUSCA VEICULAR ILEGAL. TEORIA DOS FRUTOS DA ÁRVORE ENVENENADA. DENÚNCIA ANÔNIMA. AUSÊNCIA DE ELEMENTOS CONCRETOS. AÇÃO PENAL INSTAURADA EM RAZÃO DAS PROVAS OBTIDAS NO ATO CONSIDERADO ILEGAL. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. ABSOLVIÇÃO QUE SE IMPÕE.

1. A Sexta Turma deste Tribunal Superior, no julgamento do RHC n. 158.580/BA, assentou que a busca pessoal e veicular destituída de mandado judicial é possível apenas quando as circunstâncias do caso concreto, descritas de modo preciso e aferidas objetivamente, permitirem a conclusão de que o indivíduo esteja na posse de armas ou de outros objetos (droga, por exemplo) ou papéis que constituam corpo de delito, conforme estabelecido no art. 244 do CPP, não sendo admitidas abordagens e revistas exploratórias (fishing expeditions); informações de fonte não identificada; impressões subjetivas intangíveis, pautadas no tirocínio policial, de determinadas atitudes tidas como suspeitas ou certas reações ou expressões corporais que denotem nervosismo (RHC n. 158.580/BA, Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, DJe 25/4/2022).

2. Não há falar em supressão de instância, pois a busca veicular foi examinada pelas instâncias ordinárias, uma vez que a busca domiciliar constitui um desdobramento da revista veicular previamente executada pelos agentes policiais. Ora, pela aplicação da teoria dos frutos da árvore envenenada, ante a ilegalidade na busca veicular, tornaram-se nulas todas as demais provas dela decorrentes, inclusive as provas obtidas mediante o posterior ingresso no domicílio dos Acusados, já que evidente o nexo causal entre as diligências (AgRg no REsp n. 2.026.547/PR, Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, DJe 15/3/2023).

3. Da moldura fática delineada nas decisões das instâncias ordinárias, exsurge a ilegalidade da busca veicular realizada no carro do agravado, uma vez que fundada apenas em denúncia anônima, e, embora o acórdão hostilizado relate que os policiais montaram vigilância no local, não foi descrita qualquer conduta do agravado que indicasse portar algum dos objetos listados no art. 244 do CPP, de modo que não restou demonstrada a necessária justa causa apta a demonstrar a legalidade da abordagem perpetrada.

4. Evidenciada a manifesta ilegalidade no acórdão ora hostilizado, deve ser reconhecida a ilicitude das provas obtidas por meio da busca veicular indevida e ingresso no domicílio do agravado, tenha ele sido consentido ou não, por constituir prova ilícita por derivação.

5. Agravo regimental improvido.

(AgRg no HC n. 765.736/RS, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 13/5/2024, DJe de 15/5/2024.)

Percebe-se que abordagem policial e busca pessoal são institutos com conceitos diferentes e que reclamam requisitos distintos para a sua aplicação. Por isso, se faz necessária a correta diferenciação, a fim de se possa garantir maior segurança jurídica para aqueles que atuam na linha de frente na fiscalização preventiva e combate à criminalidade.

Sobre o autor
Rafael Zanini

Bacharel em Direito. Universidade Comunitária da Região de Chapecó. Policial Militar (PMSC).︎

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos