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Justa causa para abordagem policial e busca pessoal

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11/09/2024 às 11:49

Resumo:


  • A abordagem policial e a busca pessoal são institutos distintos, sendo a abordagem o ponto de partida para a busca pessoal, mas não se confundem.

  • O Superior Tribunal de Justiça tem se manifestado sobre a necessidade de fundada suspeita para abordagem policial, o que pode gerar confusão entre os requisitos para cada instituto.

  • A correta diferenciação entre abordagem policial e busca pessoal é essencial para garantir a segurança jurídica na atuação policial e evitar prejuízos práticos decorrentes de interpretações equivocadas.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

3. O STJ E A CONFUSA DIFERENCIAÇÃO

A abordagem policial é instrumento primordial para as polícias e a atividade preventiva, a busca pessoal, por sua vez, pode ser empregada como desdobramento da abordagem, mas ambos os institutos não guardam os mesmos requisitos para o seu emprego. Enquanto a abordagem policial, por si só, está amparada pelo poder de polícia administrativa e decorre das missões constitucionais de cada instituição, a aplicação da busca pessoal de natureza processual penal exige a fundada suspeita, pautada em elementos objetivos. O STJ, enquanto Corte máxima na interpretação da lei infraconstitucional e gerador de precedentes qualificados, têm se manifestado semanalmente acerca dos limites das abordagens com emprego de busca pessoal.

Ao longo da leitura de julgados da sexta turma do Superior Tribunal de Justiça, percebe-se que há confusão entre os dois institutos, seus pressupostos e requisitos autorizadores. Por vezes, um julgado afirma que determinada conduta não caracteriza fundada suspeita apta a justificar a abordagem policial:

[...] Após a abordagem, um dos guardas promoveu buscas na área e encontrou pequenas porções de drogas que teriam sido dispensadas pelo suspeito durante a fuga. Portanto, não se vislumbra sequer a presença de fundada suspeita a ensejar eventual abordagem policial, tampouco situação absolutamente excepcional a legitimar a atuação dos guardas municipais, porquanto não demonstrada concretamente a existência de relação clara, direta e imediata com a proteção do patrimônio municipal. [...]

(REsp n. 2.108.264, Ministro Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado do TJDFT), DJe de 29/05/2024).

Em outros julgamentos, porém, reforçam que a limitação da norma é apenas relacionada à busca pessoal:

AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. BUSCA PESSOAL. AUSÊNCIA DE FUNDADA SUSPEITA DA POSSE DE CORPO DE DELITO. ILICITUDE DAS PROVAS OBTIDAS. ABSOLVIÇÃO. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.

1. Por ocasião do julgamento do RHC n. 158.580/BA (Rel. Ministro Rogerio Schietti, 6ª T, DJe 25/4/2022), a Sexta Turma desta Corte Superior de Justiça, à unanimidade, propôs criteriosa análise sobre a realização de buscas pessoais e apresentou as seguintes conclusões: "a) Exige-se, em termos de standard probatório para busca pessoal ou veicular sem mandado judicial, a existência de fundada suspeita (justa causa) - baseada em um juízo de probabilidade, descrita com a maior precisão possível, aferida de modo objetivo e devidamente justificada pelos indícios e circunstâncias do caso concreto - de que o indivíduo esteja na posse de drogas, armas ou de outros objetos ou papéis que constituam corpo de delito, evidenciando-se a urgência de se executar a diligência. b) Entretanto, a normativa constante do art. 244 do CPP não se limita a exigir que a suspeita seja fundada. É preciso, também, que esteja relacionada à "posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito". Vale dizer, há uma necessária referibilidade da medida, vinculada à sua finalidade legal probatória, a fim de que não se converta em salvo-conduto para abordagens e revistas exploratórias (fishing expeditions), baseadas em suspeição genérica existente sobre indivíduos, atitudes ou situações, sem relação específica com a posse de arma proibida ou objeto que constitua corpo de delito de uma infração penal. O art. 244 do CPP não autoriza buscas pessoais praticadas como "rotina" ou "praxe" do policiamento ostensivo, com finalidade preventiva e motivação exploratória, mas apenas buscas pessoais com finalidade probatória e motivação correlata. c) Não satisfazem a exigência legal, por si sós, meras informações de fonte não identificada (e.g.denúncias anônimas) ou intuições/impressões subjetivas, intangíveis e não demonstráveis de maneira clara e concreta, baseadas, por exemplo, exclusivamente, no tirocínio policial. Ante a ausência de descrição concreta e precisa, pautada em elementos objetivos, a classificação subjetiva de determinada atitude ou aparência como suspeita, ou de certa reação ou expressão corporal como nervosa, não preenche o standard probatório de "fundada suspeita" exigido pelo art. 244 do CPP. d) O fato de haverem sido encontrados objetos ilícitos - independentemente da quantidade - após a revista não convalida a ilegalidade prévia, pois é necessário que o elemento "fundada suspeita" seja aferido com base no que se tinha antes da diligência. Se não havia fundada suspeita de que a pessoa estava na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, não há como se admitir que a mera descoberta casual de situação de flagrância, posterior à revista do indivíduo, justifique a medida. e) A violação dessas regras e condições legais para busca pessoal resulta na ilicitude das provas obtidas em decorrência da medida, bem como das demais provas que dela decorrerem em relação de causalidade, sem prejuízo de eventual responsabilização penal do(s) agente(s) público(s) que tenha(m) realizado a diligência".

2. Na espécie, a busca pessoal realizada no réu foi justificada com base apenas em denúncias anônimas de populares que estavam pelo local dos fatos e na alegação vaga de que ele estava em atitude suspeita - haja vista que estava em uma praça pública cheia de crianças, sentado sozinho, com um urso de pelúcia na mão -, circunstâncias que, no entanto, não configuram, por si sós, fundada suspeita de posse de corpo de delito apta a validar a revista.

3. O acusado, em nenhum momento, dispensou algum objeto ou sacola no chão que, pudesse, de alguma forma, evidenciar, de modo mais concreto, que estivesse na posse de drogas, armas ou de outros objetos ou papéis que constituíssem corpo de delito, tampouco foi visto vendendo drogas ou mesmo praticando qualquer outro crime que justificasse a busca pessoal.

4. Agravo regimental não provido.

(AgRg no HC n. 875.720/SC, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 20/5/2024, DJe de 22/5/2024).

A Quinta Turma não fica para trás e coleciona julgados confundindo justa causa para abordagem policial e justa causa para busca pessoal. Ora menciona a necessidade de fundada suspeita para a abordagem policial, como no AgRg no HC nº. 778.432/GO em que afasta nulidade de abordagem utilizando elementos objetivos (fundadas suspeitas) e descrevendo uma busca pessoal. Em outras, mencionando, acertadamente, a necessidade de fundada suspeita para a busca pessoal, a exemplo do AgRg no HC nº 832.890/SP.

Como visto, há certa imprecisão quanto ao manuseio correto dos institutos, criando a exigência de fundada suspeita para a abordagem policial, o que na realidade deveria ser para a busca pessoal, que é o desdobramento da abordagem policial, mas conceitualmente com ela não se confunde.

Há prejuízos a longo prazo, pois inicia-se um efeito “bola de neve”, onde inúmeras decisões relatam a necessidade de fundada suspeita para a abordagem policial, acarretando na crença de que realmente tais institutos possuem o mesmo significado e, por consequência, exigem os mesmos requisitos para a aplicação.

Em um primeiro momento, a se atentar única e exclusivamente para o inteiro teor da decisão, poder-se-á chegar à conclusão de que a abordagem policial resultou em busca, e que esta necessita de fundada suspeita. Porém, há casos em que a infração penal é percebida, por exemplo, no uso de documento falso e na falsa identidade, crimes que podem ser flagrados durante a abordagem e não em eventual busca pessoal/veicular, ou seja, sem a obrigatoriedade da fundada suspeita como justa causa para a intervenção.

Quando a menção para suposta necessidade de fundada suspeita para a abordagem policial passa a constar na ementa da decisão, induz o aplicador do direito a qualificar toda a abordagem como de natureza exclusivamente processual penal. Isso porque, o precedente utilizado será a partir da ementa e, consequentemente, nem sempre o inteiro teor e contexto do caso concreto serão observados.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Toda busca pessoal decorre de uma abordagem policial, mas nem toda a abordagem policial resulta em busca pessoal.

Partindo dessa premissa mais do que verdadeira, constata-se que o Superior Tribunal de Justiça tem, por inúmeras vezes, assinalado em suas decisões que deveria haver eventual fundada suspeita para uma abordagem policial. Em um primeiro momento, poderíamos concluir que se trata, tão somente, de um erro conceitual, mas se a análise se aprofundar, perceber-se-á que a inobservância desses conceitos pode acarretar importante prejuízo prático policial.

Quando a decisão é publicada, as redes sociais e a imprensa em geral, recebem a informação e não se furtam em propagá-la. Não são raros os casos em que é divulgado ipsis literis as palavras conferidas na ementa da decisão e, nestas, também não são raros os casos em que a decisão denota que determinada conduta não caracteriza fundada suspeita para a abordagem policial.

A publicação, informada dessa forma, induz o leitor leigo a acreditar que toda e qualquer abordagem policial deve estar amparada sob a fundada suspeita. Com isso, muitas são as abordagens em verificação preventiva, sem o emprego da busca pessoal, em que o abordado inicia discussão com o agente estatal, exigindo que seja apontada qual seria a fundada suspeita para a realização daquela abordagem. Há, ainda, os casos de abordados que, firmes naquilo que leram em páginas de redes sociais ou sites de notícias, fazem denúncias às ouvidorias e órgãos de controle externo da atividade policial, alegando não haver a tal fundada suspeita para a abordagem, em casos claros de que o denunciante foi levado a erro por equívocos publicados pela mídia.

De modo ainda mais preocupante, é possível constatar o receio por parte dos agentes policiais, incumbidos na missão de preservar a ordem e atuar na prevenção, os quais também obtém acesso a determinadas decisões pelos mesmos meios que o cidadão comum e, ora por falta de conhecimento ou mesmo por má interpretação, ora por não buscar o inteiro teor da decisão, passam a deixar de realizar abordagens de fiscalização e no contexto de polícia preventiva, visando evitar responder administrativa e criminalmente, mesmo atuando no cumprimento do dever legal, culminando assim em natural aumento das infrações de trânsito e crimes diversos.

Em suma, e por derradeiro, se faz necessário a observância minuciosa quando da aplicação de tais institutos, pois os prejuízos são consideráveis, progressivos e silenciosos, o que atrapalha não somente o trabalho das polícias, que são prejudicadas pela cada vez mais presente insegurança jurídica, mas principalmente pela população, que vê o crime aumentar dia após dia e sofre diretamente o impacto de decisões que aniquilam a força policial na atuação preventiva.

Se, de um lado, os órgãos policiais precisam se adequar aos entendimentos da Corte Cidadã, de outro, determinados instrumentos/institutos utilizados pelas polícias precisam ser observados com cautela, sob pena de enfraquecê-los a ponto de impossibilitar, a longo prazo, qualquer atuação preventiva no país.

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REFERÊNCIAS

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Sobre o autor
Rafael Zanini

Bacharel em Direito. Universidade Comunitária da Região de Chapecó. Policial Militar (PMSC).︎

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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