Hermenêutica Jurídica e Desvios Cognitivos: controle judicial da (im)probidade administrativa

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18/09/2024 às 15:08

Resumo:


  • O estudo aborda os problemas interpretativos relacionados à ação de improbidade administrativa, destacando os vieses cognitivos no processo e julgamento dessas ações.

  • Apresenta a importância de aportes hermenêuticos para o controle jurisdicional da (im)probidade administrativa, ressaltando a necessidade de interpretação sistemática e crítica do direito.

  • Destaca a relevância de se compreender e lidar com os vieses cognitivos para evitar decisões judiciais equivocadas, inconsistentes e arbitrárias no contexto da (im)probidade administrativa.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Resumo do artigo

O presente estudo trata dos problemas interpretativos conexos à ação de improbidade administrativa. Para tanto, apresenta os vieses cognitivos no processo e julgamento da improbidade administrativa, na tentativa de resgatar as condições de possibilidade à luz da interpretação sistemática e da crítica hermenêutica do direito para o devido controle jurisdicional da (im)probidade administrativa.

Palavras-chave: Vieses cognitivos; controle judicial; (im) probidade administrativa; hermenêutica.

Sumário: 1. Introdução. 2. Vieses cognitivos no processo e julgamento da improbidade administrativa. 3. Conclusões. Referências.


1. INTRODUÇÃO

Em tempos de uma crescente atuação do Judiciário no controle da (im) probidade administrativa, seja preservando a moralidade administrativa na proteção do patrimônio público contra a prática de atos de improbidade por agentes públicos e privados, seja agravando o exercício da função administrativa e a própria prestação de serviços públicos por grupos econômicos e empresas contratadas ou conveniadas com a Administração Pública, percebe-se a importância de aportes hermenêuticos ao estudo dos vieses cognitivos no processo e julgamento das ações de improbidade administrativa, que são regidas pelo direito administrativo sancionador.

O Direito Administrativo Sancionador regula e delimita o poder punitivo da Administração Pública e do Poder Judiciário. Dessa forma, a improbidade administrativa contemplada no artigo 37, § 4º da Constituição Federal e regulada pela Lei nº 8.429/92, é disciplinada pelo direito administrativo sancionador, uma vez que a ação de improbidade administrativa, por integrar iniciativa de natureza sancionatória, tem o seu procedimento referenciado pelo rol de exigências que são próprias do Processo Penal contemporâneo, aplicável em todas as ações de Direito Sancionador.

Tal reconhecimento, em suma, significa a submissão, por força do devido processo legal, à garantia de interdição à arbitrariedade e da legalidade que embasam o Estado Democrático de Direito, aos direitos e garantias fundamentais assegurados aos acusados em geral e aos princípios e regras do Direito Administrativo Sancionador, em especial aos princípios da legalidade, da culpabilidade, da tipicidade, da especialidade, da subsidiariedade, da alternatividade, da consunção, da proporcionalidade, da isonomia, da razoabilidade, do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa, da individualização da pena, da presunção de inocência, do non bis in idem, da segurança jurídica e da boa fé objetiva.

Isso porque a Lei nº 8.429/92 atinge diretamente direitos fundamentais e liberdades públicas, cujo combate à improbidade administrativa tem envolvido acirradas polêmicas e divergências doutrinárias e jurisprudenciais.

Com efeito, a Lei nº 8.429/92 apresenta termos vagos e imprecisos, conceitos jurídicos indeterminados e tipos sancionadores em branco, o que gera, em consequência, falta de previsibilidade razoável e adequada das circunstâncias e particularidades da conduta ímproba diante da constante mutabilidade dos comportamentos sociais, e falta de segurança jurídica pela inserção da subjetividade do julgador na tomada de decisões.

Nessa perspectiva, transcendem e alcançam variadas espécies de comportamentos e arbitrárias margens de apreciação dos intérpretes e dos aplicadores das normas sancionadoras, que devem se movimentar, por óbvio, dentro da legalidade e de pautas razoáveis de escolhas, sempre a depender das circunstâncias do caso concreto, acentuando-se ainda mais em face da ausência de um efetivo controle hermenêutico dos chamados vieses cognitivos da fundamentação/motivação das decisões judiciais no Estado de Direito.

Os vieses cognitivos são falhas sistemáticas na capacidade de interpretação e de julgamento no momento da tomada de decisão. Pode-se dizer que a influência dos vieses cognitivos é um dos temas de grande relevância para o estudo do comportamento judicial e, por conseguinte, para o desenvolvimento de teorias normativas da decisão no Estado Constitucional contemporâneo.

Para o jusfilósofo Maccormick, o ideal político do Estado de Direito está associado a um regime de proteção contra o arbítrio, a um regime de decisões justificadas racionalmente, a garantia de certeza no Direito e a previsibilidade das decisões jurídicas.

Isso porque os ideais de liberdade e autonomia dependem da possibilidade de planejamento das ações futuras, além da segurança na aplicação do Direito – uma virtude do Estado de Direito. Explica o autor que “o ideal do Estado de Direito (Rule of Law) leva a sério a possibilidade de que o Direito, enquanto base de razão prática (practical reason), possa colocar limites reais sobre as atividades coercitivas do Estado” (Maccormick, 2009, p. 9-10). A racionalidade, portanto, “não é uma garantia de justiça perfeita, mas é certamente uma proteção contra as piores formas de injustiça” (Maccormick, 2009, p. 9-10).

Nesse sentido, argumenta o autor que as regras jurídicas “não propiciam certeza absoluta”, no entanto, “é possível minimizar a sua certeza e indeterminabilidade”, distinguindo-se “bons e maus argumentos”, “argumentos mais ou menos razoáveis”, argumentos jurídicos mais persuasivos e objetivos, deduções, silogismos e decisões consequencialistas (Maccormick, 2009, p. 19).

Desse modo, o autor de Retórica e o Estado de Direito sustenta que a qualidade da argumentação jurídica é um parâmetro avaliativo para mediar a qualidade do Estado de Direito, cujo dever dos juízes de mostrar fidelidade ao Direito e ao Estado de Direito é mais bem realizado “no contexto de justificações cuidadosamente construídas, fundamentando as decisões judiciais. Afirmações de razões superficiais, simplesmente recitando uma regra e imputando um significado a ela no contexto dos fatos de um caso, são insuficientes” (Maccormick, 2009, p. 371).

Portanto, defende Maccormick (2009) que os processos decisórios ou formadores do direito devem ser pautados na razão, para a busca da decisão mais justa possível, integrando os raciocínios dedutivo e argumentativo, competindo ao magistrado observar critérios de universalidade, consistência, coerência e consequência para a solução argumentativa.

No entanto, Marcelo Novelino observa que “para dizer como os juízes devem decidir, é necessário saber como eles são capazes de decidir, o que exige, em certa medida, o conhecimento das razões pelas quais determinados fatores extrajurídicos tendem a influenciar o comportamento deles e em que tipo de circunstâncias há maior probabilidade de que isso venha a ocorrer” (2015, p. 243-244).

A propósito do tema, Marcelo Novelino assevera que o comportamento judicial é influenciado indiretamente por predisposições (“fatores cognitivos”) e preferências políticas (“fatores ideológicos”) dos juízes, “as quais são conformadas pelo mesmo conjunto de eventos e forças que atingem os demais membros da sociedade” (2015, p. 256-257). Conforme anota Jorge Trindade, “as decisões humanas – como qualquer ato humano – estão impregnadas de elementos de natureza subjetiva”, sendo fundamental refletir sobre “as motivações oriundas do mundo interno, pois existe o risco de seu prevalecimento cego sobre a realidade externa” (2011, p. 60).

A esse respeito, Chapper, citando Juarez Freitas, refere que é imprescindível um maior controle da subjetividade do julgador, especialmente em razão dos estudos sobre o funcionamento do cérebro e “os pronunciados riscos de enviesamentos (“biases”) na interpretação do mundo, e nessa medida, na compreensão do Direito” (2015, p. 13-17).

Como consequência, a compreensão do fenômeno decisório não pode prescindir da escuta do não dito – os atalhos mentais e vieses cognitivos (vícios de julgamento) que influenciam e distorcem o processo e o julgamento na seara judicial.

É evidente que os automatismos mentais associados podem conduzir à tomada de decisões injustas. Nesse particular, a obediência automática aos códigos internos ou externos é suficiente para influenciar o processo de tomada de decisões judiciais. Daí porque somente estudos sistemáticos e com amostras ampliadas podem demonstrar a possibilidade de conhecer o processo da tomada de decisão.

De acordo com Jorge Trindade,

"é importante estar atento, com certa vigilância epistemológica, aos perigos que uma reflexão do universo jurídico engendra a partir das cognições relativistas, que não poderão ser negligenciadas nem pelo estudioso do direito, nem pelo perito do comportamento humano. Não paira dúvida sobre a importância de discutir e de descobrir – no sentido de desvelar – as ilusões individuais e coletivas, as crenças e os mecanismos inconscientes que podem presidir as tomadas de decisões, embora a questão fundamental do direito, e principalmente da justiça, como fenômeno humano universal, transcenda os aspectos de uma motivação particular de ordem apenas emocional" (2011, p. 62).

Favorável ao estudo proposto, a melhor alternativa para que não ocorra um alargamento em demasia do conceito de probidade reside na aplicação do princípio da proporcionalidade (nas dimensões adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito) em relação às condutas desonestas ou ineficientes. Embora, do ponto de vista doutrinário, se considere relevante a dificuldade em se obter uma definição precisa de probidade administrativa, tanto pelas divergências da doutrina, quanto pela íntima ligação entre os conceitos probidade e moralidade administrativa, fundamental reconhecer que se tratam de institutos autônomos à luz do texto constitucional e da legislação infraconstitucional (Clementel, 2017; Zimmer, 2019).

Para além do debate acadêmico, o certo é que a proteção à probidade administrativa sempre foi uma preocupação do legislador brasileiro (dada a diversidade de normas jurídicas que foram editadas ao longo dos anos) e dos tribunais da república no enfrentamento da improbidade administrativa.

Nesse contexto, o presente trabalho objetiva analisar importante questão para o controle judicial da (im) probidade administrativa: os vieses cognitivos no processo e julgamento da improbidade administrativa em razão da existência de conceitos jurídicos indeterminados na Lei nº 8.429/92 que formam a pré-compreensão dos atores judiciários.

É preciso compreender que a influência de vieses cognitivos determina a qualidade do processo e do julgamento na tomada da decisão judicial. Importa advertir, no entanto, que está na natureza dos vieses a dúvida sobre como eles influenciam e como é possível reconhecer seus sinais no processo e no julgamento de ações civis públicas por ato de improbidade administrativa.

Assim, a partir do paradigma hermenêutico constitucional e para os limites do presente estudo, trata-se de defender a tese da necessidade de valoração racional da fundamentação da decisão judicial no âmbito da improbidade administrativa, em especial para a correção de falhas interpretativas na caracterização da legitimidade passiva do agente público e do particular, da tipicidade do ato de improbidade, da culpabilidade do agente (responsabilidade subjetiva), e do ônus da prova e de seus modelos de constatação, sendo estes o objeto de preocupação desta pesquisa.

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Esse é o problema hermenêutico a ser desenviesado e enfrentado no presente artigo.

Formula-se, ao final, uma proposta material-reflexiva para a questão.


2. VIESES COGNITIVOS NO PROCESSO E JULGAMENTO DA IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

A atividade jurisdicional constitui-se na permanente avaliação cognitiva de pessoas, argumentos, provas, costumes, precedentes, leis e sanções, com o objeto de interpretar, justificar e aplicar o Direito, sendo certo que “toda e qualquer interpretação tem lugar de algum modo no cérebro do intérprete” (Fernandez, 2017).

Nas iniciais das ações de improbidade administrativa é muito comum a ancoragem, fenômeno cognitivo o qual consiste em se basear em valores contratados entre os poderes públicos e empresas para a prestação de serviços públicos.

Por exemplo, o Ministério Público pede a devolução ao erário pelo valor do contrato firmado pelos agentes públicos e pelas empresas, quando, na grande maioria dos casos, os serviços foram regularmente prestados. Esse valor tomado como referência pelo Ministério Público para o ressarcimento ao erário não tem fundamento – v.g., não foram mensurados e calculados eventuais desvios de valores, indícios de superfaturamento ou falta de prestação de serviços – sendo muitas vezes utilizados como âncoras para influenciar negativamente na opinião pública e, especialmente no processo e no julgamento das ações de improbidade administrativa.

Além disso, outra tendência nas iniciais das ações de improbidade é ancorar contra todos os agentes públicos da administração pública (por exemplo: Prefeito, Secretário, Presidente de Comissão de Licitações e Procurador Municipal) e contra todos os particulares, sejam eles grupos econômicos, empresas ou sócios, sem individualizar a conduta de cada um dos agentes públicos e das pessoas jurídicas e físicas, no intuito de equiparar os conceitos de responsabilidade, culpabilidade, causalidade e imputação, e, assim, conduzir o magistrado a erros cognitivos de julgamento.

Outro problema nas ações de improbidade diz respeito às alegações de órgãos acusadores de tentarem confirmar suas alegações com base em citações de “jurisprudência dominante” (viés da confirmação), ignorando elementos probatórios trazidos pela defesa, o que pode provocar decisões equivocadas, em razão da forte tendência da mente humana de tentar identificar padrões naquilo que é aleatório.

É recomendável ao juiz examinar as fontes disponíveis e a qualidade das informações recebidas, certificando-se de que dispõe de todos os dados necessários e suficientes para a tomada de decisão.

Assim, como “os desvios cognitivos estão presentes em toda atividade cerebral” (Freitas, 2013a), trata-se de delimitar o presente problema investigativo no contexto do processo e julgamento de ações de improbidade administrativa, especialmente a respeito das hipóteses de configuração da legitimidade passiva do agente público e do particular, da tipicidade do ato de improbidade, da culpabilidade do agente (responsabilidade subjetiva), do ônus da prova e de seus modelos de constatação, que devem ser, todos, justificados, motivados e fundamentados racionalmente nas ações civis públicas por ato de improbidade administrativa à luz da Constituição Federal e da Lei nº 8.429/92.

Nesse sentido, passe-se ao exame dos elementos abaixo, comuns a todas as ações de improbidade administrativa, que podem ser manipulados por vieses, “com os seus erros grosseiros, ou sutis de avaliação e atribuição causal” (Freitas, 2013a), que comprometem a interpretação, a compreensão e o controle racional da atividade jurisdicional em matéria de (im) probidade administrativa:

(a) Legitimidade passiva : o agente público será o autor do ato lesivo ao ordenamento jurídico, pois as três espécies de atos de improbidade previstas na Lei nº 8.429/92 (arts. 9º, 10 e 11) exigem sua conduta (improbidade própria); enquanto o particular/terceiro – pessoa física ou jurídica – que induzir, concorrer ou se beneficiar do ato de improbidade praticado pelo agente público, será o partícipe (improbidade imprópria).

O primeiro estágio de incidência do viés de confirmação corresponde, na esfera do processo judicial, àquela postura em que o órgão acusador desconsidera determinadas regras e elementos importantes relacionados à legitimidade passiva do agente responsável pela prática do ato de improbidade, deixando-se guiar apenas por sua vontade e consciência, imerso na própria subjetividade, no intuito de apenas confirmar seus desejos e crenças preconceituosas, a fim de atribuir a novos agentes, públicos ou privados, idêntica responsabilidade.

São comuns, nas ações de improbidade julgadas pelo Judiciário em face de grupos econômicos, as frequentes armadilhas mentais para que empresas e sócios respondam conjuntamente por atos de improbidade. A Lei de Improbidade, contudo, aplica-se somente ao beneficiário direto do ato ímprobo, mormente em face do comprovado dano ao erário público, nos termos do artigo 3º da Lei nº 8.429/92 e da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, por indução, concurso ou benefício que ultrapasse a esfera patrimonial da pessoa jurídica, bem como quando configurado abuso da personalidade jurídica da empresa, desvio de finalidade ou confusão patrimonial, a teor do artigo 50 do Código Civil.

Assim, se determinada sócio não obteve qualquer acréscimo patrimonial ou mesmo se determinada empresa não se locupletou de verba pública sem a devida contraprestação contratual, deverão ser excluídas do polo passivo, conforme já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, em acórdão assim ementado:

[...] 5. A lei de improbidade administrativa aplica-se ao beneficiário direto do ato ímprobo, mormente em face do comprovado dano ao erário público. Inteligência do art. 3º da Lei de Improbidade Administrativa . No caso, também está claro que a pessoa jurídica foi beneficiada com a prática infrativa, na medida em que se locupletou de verba pública sem a devida contraprestação contratual. Por outro lado, em relação ao seu responsável legal, os elementos coligidos na origem não lhe apontaram a percepção de benefícios que ultrapassem a esfera patrimonial da sociedade empresária, nem individualizaram sua conduta no fato imputável, razão pela qual não deve ser condenado pelo ato de improbidade. 6. Recurso especial provido em parte. ( REsp 1127143/RS , Relator Ministro Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 22/06/2010, DJe 03/08/2010)

Nesse sentido, como enfrentar o problema dos vieses cognitivos no exame da legitimidade passiva de grupos econômicos, empresas e sócios, se, legal e jurisprudencialmente, não há como responsabilizar conjuntamente particulares que não induziram, concorreram ou se beneficiaram, eis que impossível é a responsabilização de diferentes grupos econômicos, empresas e sócios à luz do mesmo ato de improbidade. Isso porque a responsabilidade por ato de improbidade administrativa é sempre individual e, portanto, subjetiva.

Assim, não havendo (comprovado) desvio de finalidade de cada uma das pessoas jurídicas que fazem parte do grupo econômico ou de confusão patrimonial com seus representantes legais ou sócios, não se pune, de forma automática e sob o viés de equivocada atribuição causal. Nesses casos, compete ao intérprete ou ao juiz o devido controle jurisdicional na tomada de decisão, a partir de um filtro rigoroso e reflexivo do material probatório trazido aos autos pelo órgão acusador, justificando racional e sistematicamente a tomada de decisão.

(b) tipicidade : muito comum nas ações de improbidade é a tentativa dos órgãos acusados enquadrarem a improbidade administrativa como mera irregularidade ou mesmo ilegalidade (viés do enquadramento), a fim de influenciar a tomada de decisão, o que tem gerado uma profusão de ações de improbidade em tramitação no país que, por ausência de um efetivo controle das decisões que recebem as petições iniciais das ações civis públicas por ato de improbidade administrativa, tem se observado o uso político da Lei nº 8.429/92.

Tal enquadramento visa prejudicar a capacidade de decidir, pois, como se sabe, as ações são recebidas sob o genérico argumento de proteção do interesse público. O juiz por vezes acaba meramente homologando o recebimento da petição inicial da ação de improbidade, aceitando, passivamente, essa “escolha prévia” do órgão acusador, obnubilado pelos vieses do enquadramento e do status quo .

Ora, para fins de enquadramento da conduta de agentes públicos e particulares nas figuras típicas previstas na Lei de Improbidade, e o respectivo exame judicial da improbidade, não podem divorciar-se de premissa ontológica relativa ao próprio conceito de improbidade administrativa.

Uma infração à legalidade (ilegalidade) não se constitui tout court em improbidade administrativa. É noção assente na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça que “não se pode confundir ilegalidade com improbidade. A improbidade é ilegalidade tipificada e qualificada pelo elemento subjetivo da conduta do agente.” (STJ, REsp 827.445/SP, Relator Ministro Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, DJe 08/03/2010; AgRg no REsp 1352541/MG, Relator Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 14.02.13). Daí se afirmar que “a improbidade administrativa, mais que um ato ilegal, deve traduzir, necessariamente, a falta de boa-fé, a desonestidade” ( REsp 807.551/MG, Relator Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, DJe 05.11.07).

Contudo, cotidianamente, são distribuídas, recebidas e sancionadas pelo Judiciário, à luz dos vieses do enquadramento e da confirmação, ações de improbidade baseadas, fundamentalmente, em condutas meramente irregulares ou mesmo ilegais de agentes públicos no desempenho da função administrativa.

Diversamente, a doutrina e a jurisprudência têm reiteradamente exaltado à impropriedade da equiparação, para fins de sancionamento, de uma mera ilegalidade ao conceito de improbidade administrativa. Não basta, para a configuração da improbidade administrativa haver uma mera violação à ordem jurídica.

É preciso que o ato impugnado, além de ilegal, seja (i) qualificado pelo elemento subjetivo da conduta do agente, (ii) comprovadamente praticado com má-fé, desonestidade ou dolo, de forma consciente e proposital, para cometer ilicitude com o objetivo de obter para si enriquecimento ilícito à custa do erário ou proporcionar vantagem indevida a quem queira favorecer, e, por fim, (iii) demonstrado que o acusado pretendeu violar o Direito e alcançar resultados proibidos, comprometendo, dessa forma, a moralidade administrativa.

Dessa forma, um segundo estágio na vida judiciária encontra correspondência no viés do enquadramento ditado pelo órgão acusador nas ações de improbidade, em especial na equivocada predisposição de equiparar ato irregular ou ilegal com ato ímprobo no afã de buscar uma condenação a qualquer custo, competindo ao juiz realizar correções normativas e adotar contramedidas técnico-processuais aos vieses cognitivos, impedindo leituras enviesadas e ampla margem de discricionariedade no ato decisório.

(c) culpabilidade (responsabilidade subjetiva): é comum a tentativa do Ministério Público pretender imputar a agentes públicos responsabilidade objetiva, inadmissível na seara da improbidade administrativa, sem demonstrar muitas vezes a existência individual do ato praticado, muito menos a comprovação de elemento subjetivo, ou seja, culpa grave (no caso do artigo 10 da Lei nº 8.429/92) e/ou dolo (no caso dos artigos 9º e 11 da Lei nº 8.429/92) na conduta de gestores e servidores públicos, buscando através dos vieses da falsa coerência e do otimismo excessivo, influenciar no juízo cognitivo do julgador que, lamentavelmente, poderá gerar novos vieses (confirmação e/ou enquadramento).

No entanto, corretamente, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem barrado essas distorções:

[...] 1. O STJ ostenta entendimento uníssono segundo o qual, para que seja reconhecida a tipificação da conduta do réu como incurso nas previsões da Lei de Improbidade Administrativa , é necessária a demonstração do elemento subjetivo, consubstanciado pelo dolo para os tipos previstos nos artigos 9º e 11 e, ao menos, pela culpa, nas hipóteses do artigo 10 . Precedentes: AgRg no AREsp 20.747/SP , Relator Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe 23/11/2011 REsp 1.130.198/RR , Relator Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, DJe 15/12/2010; EREsp 479.812/SP, Relator Ministro Teori Albino Zavascki, Primeira Seção, DJe 27/9/2010; REsp 1.149.427/SC , Relator Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, DJe 9/9/2010; EREsp 875.163/RS, Relator Ministro Mauro Campbell Marques, Primeira Seção, DJe 30/6/2010. 2. In casu, pretende-se a condenação dos réus, ora recorrentes, por suposto desrespeito aos princípios da Administração Pública (art. 11 da Lei de improbidade Administrativa ). Sucede que a Corte de apelação não indicou nenhum elemento de prova direto que evidenciasse o agir doloso do administrador, baseando-se o juízo de valor em presunção de dolo, de modo que é mister a reforma do acórdão recorrido. 3. Recursos especiais providos, divergindo do relator, Sr. Ministro Teori Albino Zavaski. ( REsp 1192056/DF , Relator Ministro Teori Albino Zavascki, Relator p/ Acórdão Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, julgado em 17/04/2012, DJe 26/09/2012)

Vale lembrar que o Superior Tribunal de Justiça já firmou o entendimento de que “é inadmissível a responsabilidade objetiva na aplicação da Lei 8.429 /1992, exigindo-se a presença de dolo nos casos dos artigos 9º e 11 (que coíbem o enriquecimento ilícito e o atentado aos princípios administrativos, respectivamente) e ao menos de culpa nos termos do artigo 10 , que censura os atos de improbidade por dano ao Erário.”

Isso porque qualquer imposição de sanção está condicionada à prévia aferição da conduta dolosa ou culposa de agentes públicos e privados. Deve-se ter em vista que ninguém pode ser responsabilizado somente com base na natureza do ilícito em tese e/ou por fato cometido por outrem, cujas expectativas acusatórias são inseridas no processo, a partir da escolha estratégica de julgados que confirmem essas linhas acusatórias, reduzindo-se o alcance de uma decisão correta.

No entanto, o exercício do ius puniendi deve considerar os elementos subjetivos da conduta do agente, à luz dos princípios da culpabilidade e da proporcionalidade, fundamentos constitucionais do Estado Democrático de Direito (artigo 1º da CF) e da interpretação sistemática das garantias fundamentais (artigo 5º, incisos XLV, XLVI, LIV e LV), e que devem ser explicitados no processo e julgamento no campo do direito administrativo sancionador.

(d) Ônus da prova e modelos de constatação : Na fase preliminar da ação de improbidade, o artigo 17, §§ 6º e 8º da Lei nº 8.429/92 determina que o magistrado rejeite a ação civil pública quando ausentes elementos indiciários que configurem a existência de ato de improbidade.

No intuito de coibir o uso da ação para fins diversos dos que motivaram a sua criação, a Medida Provisória 2.225-45, de 04/09/2001, acrescentou ao artigo 17 da Lei nº 8.429/92, entre outros, o parágrafo sexto, por meio do qual se exige que a inicial seja “instruída com documentos ou justificação que contenham indícios suficientes da existência do ato de improbidade”.

Como se sabe tamanha são a seriedade e a gravidade das punições previstas na Lei de Improbidade Administrativa que a doutrina afirma que a petição inicial deve conter significativos elementos que efetivamente demonstrem, ao menos, alguma probabilidade de se imputar a agentes públicos a prática de atos de improbidade administrativa. Nesse sentido, é a posição da doutrina especializada sobre o tema:

A ‘legislação vigente’ referida pelo final do dispositivo é suficientemente clara, de qualquer sorte, quando à necessidade de as provas dos fatos alegados na petição inicial já acompanharem a prática daquele ato. Claros neste sentido não só o art. 283 do Código de Processo Civil mas também os arts. 396. e 397, que só admitem a juntada de documentos depois da petição inicial (e da contestação) quando forem novos, assim entendidos aqueles ‘[...] destinados a fazer prova de fatos ocorridos depois dos articulados, ou para contrapô-los aos que foram produzidos nos autos’ [...] Os documentos, as justificações, as escusas e a conduta de quem pretende tipificar ato (s) de improbidade administrativa serão analisados não só no decorrer do procedimento (mas aprofundadamente na fase instrutória), mas receberão um juízo de admissibilidade expresso e bastante profundo (até mesmo exauriente, quando a hipótese é de declaração da inexistência do ato de improbidade ou de improcedência da ação) logo após o estabelecimento do prévio contraditório, na forma como disciplinam os precitados § 7º e 8º. Daí que a petição inicial da ação de improbidade administrativa deve ser proporcionalmente mais substancial do que a das outras ações que não têm esta fase preliminar de admissibilidade da inicial em contraditório tão aguda. Nestas condições, a delimitação dos fatos, da causa de pedir, e a produção da correspondente prova (quando disponível de imediato) devem ser impecáveis, sob pena de comprometer, já de início, o seguimento da ação e, até mesmo, sua rejeição com apreciação de mérito. (Bueno; Porto Filho, 2001, p. 145)

No entanto, ações de improbidade têm sido sistematicamente recebidas pelos juízes de primeiro grau, a fim de oportunizar ao órgão acusador a possibilidade de comprovar na fase de instrução, por meio da produção de todas as espécies probatórias em direito admitidas, as premissas acusatórias, em franco desvirtuamento da fase preliminar da ação de improbidade, que é evitar o trâmite de ações temerárias.

Invariavelmente, os tribunais tem mantido (viés da confirmação) o recebimento dessas ações de improbidade, sem maiores reflexões, à luz da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (viés do status quo ).

Agora, para a condenação por ato de improbidade exige-se prova hábil e segura da conduta lesiva (enriquecimento ilícito), do prejuízo ao erário ou da violação aos princípios da administração pública.

Para tanto, incumbe ao autor da ação de improbidade o ônus da prova clara e convincente sobre os fatos imputados ao suposto agente ímprobo, trazendo aos autos os elementos necessários e suficientes a comprovar a má-fé como causa de origem da prática do ato de improbidade administrativa, o que tem sido motivo de constantes predisposições automáticas e juízos equivocados na seara probatória das ações de improbidade administrativa.

Com efeito, é na fase probatória das ações de improbidade que os chamados juízos de fato – a partir de uma dada reconstrução fática – divorciado das questões de direito, conduzem a desvios cognitivos e consequentes automatismos mentais conducentes a erros sistemáticos de julgamento.

Essa tendência dicotômica da atividade do juiz não se dá conta que toda prova é descritiva e compreensiva, uma vez que a pura faticidade não representa a fenomenologia do processo judicial, além da parcialidade dos interlocutores no domínio da teoria do discurso que poderá macular a imparcialidade do juiz.

Portanto, é preciso compreender que compete ao juiz examinar, de forma reflexiva, cada um dos modelos de constatação da prova – se se trata de prova meramente indiciária (incompatível com a condenação), de prova clara e convincente (standart intermediário das ações civis públicas de improbidade administrativa) e/ou de prova além da dúvida razoável e preponderante (ações penais) –, bem como questionar se outros juízes chegariam a mesma conclusão, a fim de mitigar os riscos dos vieses cognitivos que representam a sombra da arbitrariedade e da injustiça.

Sobre o autor
Fabiano Nobre Zimmer

Advogado, Mestre em Direito (PUCRS) e Especialista em Direito Penal Econômico (UCS-ESMAFERS). Sócio do escritório FNZ Advogados.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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