Resumo: do artigo
O objetivo deste artigo é descrever as origens da dicotomia entre direito público e direito privado e o estado atual de enfraquecimento de tal perspectiva, inerente ao fenômeno da constitucionalização do direito e do paradigma do Estado Democrático de Direito. O presente estudo identifica a existência de um direito privado administrativo na perspectiva do marco regulatório das estatais, tendo em vista a mudança de paradigma do Direito Administrativo e a necessidade de transplantar/espelhar o instituto da governança das empresas privadas às empresas estatais.
Palavras-chave: : Dicotomia; direito público; direito privado administrativo; constitucionalização; superação.
Sumário: : 1. Introdução. 2. Considerações históricas sobre a dicotomia direito público vs. direito privado e a sua superação no estado constitucional. 3. Permanece válida a distinção entre direito público e direito privado no direito administrativo contemporâneo? 3.1 O paradigma publicista: a publicização do direito privado. 3.2. O paradigma privatista: a privatização do direito público. 4. Considerações finais. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Porque um olhar histórico? Como nos lembra Lima Lopes (2014, p. 13), a história não é mero “verniz de erudição”: ela possui um “papel intelectual insubstituível”. Por óbvio, não é o caso de fazermos aqui uma defesa geral do estudo da história do direito. É nossa obrigação, no entanto, inquirir de modo mais específico que “papel intelectual insubstituível” teria a história para o nosso objeto de estudo – a distinção entre direito público e direito privado no direito administrativo contemporâneo – que se move num ponto de entrecruzamento entre o regime público e o privado.
Por meio de metáfora interessante, nos diz Pierre Legendre (1992, p. 43) que “[a] História é a geologia da Ciência Administrativa”. “Sem a análise dos estratos inferiores”, continua ele, “a solidez do terreno não é jamais uma certeza”. Isso vai direto ao coração daquilo que buscamos, pois traz a ideia (um tanto óbvia, mas fundamental) de que
[o] poder administrativo está profundamente imbricado […] em instituições concretas, bem como em sua evolução ao longo do tempo; ele não vive somente em uma dimensão jurídica, conceitual ou constitucional. Precisamente por essa razão, ele se presta a diversidade substancial e se abre a caminhos divergentes de desenvolvimento. (SORDI, 2011, p. 25)
Neste momento de transição e de autêntica associação entre o direito público e o direito privado, emerge o desafio da definição do regime jurídico – publicista e/ou privatista – aplicável às empresas estatais prestadoras de serviços públicos e as prestadoras de atividades econômicas em sentido estrito.
Diante disso, nas palavras de Legendre (1992, p. 43-44), “sem a análise do passado institucional, não é possível pretender apreciar os anacronismos do presente, nem, com mais razão ainda, estabelecer as bases de uma eficácia prospectiva”. A história é indispensável porque ela visa desempenhar “o papel da desmistificação do eterno” e “compreender que vivemos no tempo da ação” (LOPES, 2014, p. 13).
Portanto, estudam-se as origens da dicotomia para refletir a respeito de um problema específico: Permanece válida a distinção entre direito público e direito privado no direito administrativo contemporâneo?
O que se propõe no presente estudo é apresentar a evolução histórica, a origem da dicotomia e os reflexos operacionais na configuração de um novo direito privado administrativo (DI PIETRO, 2013), mais dinâmico, flexível e eficiente.
Um exemplo recente dessa mudança de paradigma é a edição do marco regulatório das estatais (Lei nº 13.303/2016), que dispõe sobre o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, cujo regime jurídico estabelecido é híbrido, ora submete as estatais ao direito público, ora ao direito privado, conforme o bem jurídico tutelado.
Assim, sem esgotar as incidências históricas em cada período abordado, uma espécie de linha do tempo serve como pano de fundo à comprovação das origens da dicotomia entre direito público vs. direito privado, passando pela ampliação da atuação estatal (fuga para o direito privado/privatização do direito público e publicização do direito privado) e alcança os nossos dias, com a constitucionalização do direito público e do direito privado.
2. CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS SOBRE A DICOTOMIA DIREITO PÚBLICO VS. DIREITO PRIVADO E A SUA SUPERAÇÃO NO ESTADO CONSTITUCIONAL
Historicamente as relações de direito público, relações de direito privado e relações público-privadas são divididas em dois grandes grupos: o direito público e o direito privado.
Segundo Sundfeld (2017, p. 24), (a) “O direito privado é formado pelo conjunto de normas regendo as relações dos indivíduos entre si, dentro do Estado-sociedade (relações de família, relações dos comerciantes entre si e entre comerciantes e seus clientes, relações entre locador e inquilino, e outras mais)”; (b) “O direito público é formado pelo conjunto de normas que regulam as relações entre Estado e indivíduos (relações Estado-servidor, Estado-empresa, etc).”
Portanto, as normas de direito privado disciplinam as relações entre privados, sem a participação do poder político, enquanto que as normas de público regulam as relações entre o Estado e os administrados (servidores, empresas, particulares em geral).
O direito público regula as atividades estatais, o regime jurídico administrativo e a chamada função administrativa. A organização do Estado e o exercício de suas funções (produzir leis, julgar acusados e prestar serviços públicos) são estabelecidos por normas de direito público, inclusive a relação com outros Estados. Em resumo, o direito público é o direito do Estado, isto é, ele constitui a autoridade; enquanto que o direito privado é o direito do particular (não-público), isto é, ele é constituído pela autoridade (CAENEGEM, 1995, p. 5).
Como acentua Caenegem (1995, p. 6), a partir do surgimento do Estado moderno, inicia um movimento de consolidação do direito público. De fato, na Idade Contemporânea verifica-se a construção da ciência do direito público, sendo as Revoluções Americana e Francesa (e as Constituições delas resultantes) seus marcos históricos mais notáveis.
Como se sabe, os sujeitos incumbidos de exercer o poder político podem impor normas, mas também possuem o dever de obediência a certas normas jurídicas na sua atuação, “cuja finalidade é impor limites ao poder e permitir, em consequência, o controle do poder pelos seus destinatários.” (SUNDFELD, 2017, p. 35-36).
Forma-se, a partir de então, o conceito de Estado de Direito, isto é, um Estado que realiza suas atividades debaixo da ordem jurídica, “contrapondo-se ao superado Estado-Polícia, onde o poder político era exercido sem limitações jurídicas, apenas se valendo de normas jurídicas para se impor aos cidadãos.” (SUNDFELD, 2017, p. 138)
Quanto à origem da distinção entre Direito Público e Direito Privado, e a respectiva ligação entre o mundo antigo e o mundo contemporâneo, foi o legado do Direito Romano que exerceu papel importante na formação de diversos ramos do direito privado de numerosos sistemas jurídicos ocidentais, embora as bases iniciais tenham sido fixadas pelo direito canônico medieval (COUTO E SILVA, 2015, p. 501).
“Ulpiano, em Roma, referiu pela primeira vez a distinção, ao apontar a existência de duas perspectivas possíveis para o estudo do direito: a primeira concernente ao modo de ser do Estado romano (normas sobre a organização política e religiosa do Estado); a segunda, relativa aos interesses privados” (SUNDFELD, 2017, p. 139).
Naquela época, falar na distinção entre direito público e direito privado “remonta ao direito romano clássico, que atribuía ao primeiro as coisas do Estado e ao segundo, os interesses individuais” (BARROSO, 2009, p. 52).
No entanto, os antigos não possuíam direito público, pois a “concepção grega de lei – que vigorará por longos séculos – difere substancialmente da atual. A lei para os antigos era sagrada e imutável, sendo atribuída a um poder divino, e, desse modo, integrando a religião” (SUNDFELD, 2017, p. 30).
Não obstante havia autoridades para resolver conflitos entre indivíduos. Porém, “isso não levou à identificação da atividade de julgar como regulada por um direito público, diverso do direito privado que se visava aplicar. As normas regendo a atividade de julgar (que hoje incluímos no direito processual, um dos ramos do direito público) eram entendidas como parte do direito civil (ramo do direito privado)” (SUNDFELD, 2017, p. 31).
A par das divergências, sustenta Sundfeld (2017, p. 32) que a “distinção teórica entre direito público e privado foi formulada pelos romanos, que desenvolveram intensamente a doutrina privatista. Entretanto, inexistia uma consciência clara, à época, da diferença entre poder político e outras espécies de poderes [...]”.
O professor Caenegem (1995, p. 1), com apoio nas Institutas de Justiniano, assevera que o direito romano distinguia ius privatum e ius publicum. Quer dizer, como bem adverte Facchini (2012), a distinção entre direito público e direito privado ingressou “na história do pensamento político e social do ocidente através de duas passagens do Corpus Juris Civilis [Institutiones, I, I, 4; Digesto, I, 1, 1, 2], onde se refere ao público como quod ad statum rei romanae spectat, e ao privado como quod ad singulorum utilitatem.”
Por volta do final do século XVII e início do século XIII o Corpus Iuris Civilis foi redescoberto por juristas, que reelaboraram a distinção entre público e privado presente nos romanos. Porém, “a elaboração teórica dessa dicotomia em séculos subsequentes não teve impacto imediato na prática jurídica, deixando mesmo alguns países intactos. […]. Não é surpreendente, portanto, que o ensino de direito público em universidades francesas só tenha começado na segunda metade do século XVIII.” (CAENEGEM, 1995, p. 2)
As razões para a vitória dessa distinção em vários países foram razões políticas ligadas ao conflito entre autoridades estatais centrais absolutas e uma resistência liberal baseada em direitos. A ideia absolutista de que assuntos de direito público deveriam ser removidos da jurisdição de tribunais comuns foi expressada da maneira mais forte em 1653, na Prússia, onde foi dito que “Regierungssachen sind keine Justizsachen” (“os assuntos do governo não são assuntos de justiça”). (CAENEGEM, 1995, p. 2-3)
Por outro lado, Caenegem (1995, p. 3) identifica que havia razões igualmente políticas, porém, mais “liberais”, para se apoiar uma delimitação clara entre esses dois “ramos” de direito. A definição do direito público como um campo separado era, por outro lado, sustentado também pela luta pela autonomia do direito privado como uma esfera que fosse imune da onipotência do Estado. Se o direito público devia ser deixado ao Estado, o mínimo que se poderia fazer era salvaguardar a esfera do indivíduo livre, i.e., o direito privado. Quanto mais nítidos fossem traçados os limites do direito público, mais seguro estaria o cidadão frente ao poder político.
Nos séculos XVII e XVIII há uma distinção embrionária entre direito público e direito privado em razão da separação entre justiça e administração. Tal separação não era fruto de uma distinção teórica anterior, mas o mero resultado de equilíbrios políticos (o interesse principal era coletar impostos e dar provisões ao exército – o resto ficava – quando ficava – muitas vezes a cargo dos “velhos magistrados” ou de forças locais). Dessa forma, é importante distinguir direito público de “não-direito” público também sob o enfoque do controle dos poderes especiais reservados aos governantes.
É possível perceber a aproximação da ideia de um regime jurídico destinado ao conceito de coroa, enquanto diferente da pessoa física do rei, cuja origem fornece a base para distinguir entre público e privado (LOUGHLIN, 2004, p. 21). Nesse período, o direito público era visto como um direito técnico, ao passo que o direito privado era formado por regras gerais de conduta. De fato, o direito público também deveria ser prático, pois se relacionava a atividade de governar, sendo concebido como um conjunto de regras, princípios, costumes, usos e precedentes que condicionam e sustentam o exercício da função administrativa.
Não houve, no entanto, um interesse na formulação dessa distinção, tendo em vista a evolução constante do direito privado. Ao Estado, tudo era reduzido à regra de que o poder era ilimitado e dever ser acatado. Por sua vez, o motor do direito privado foi a sociedade civil, e não o Estado.
Somente a partir da noção de Estado de Direito e da Codificação, o Estado passa a intervir, passando a doutrina a propor diversos critérios de distinção.
Desde já, consigne-se que o direito público é distinto do direito privado, não implicando, necessariamente, oposição. Como se sabe, o uso do direito privado pela Administração Pública via empresas estatais não é mais exceção, ou seja, trata-se de um regime jurídico próprio, uma opção do legislador.
Quer dizer, poderia haver uma utilidade para a distinção direito público versus direito privado caso houvesse uma Justiça Administrativa ou um direito processual específico do contencioso administrativo no Brasil. Mas, não há isso no nosso sistema jurídico. Nos países em que há essa divisão, a utilidade da distinção persiste.
As razões para essa dicotomia, segundo Sundfeld (2017, p. 140), é a equivocada importação de doutrinas francesas e componentes estatistas e antiliberais. Aponta o autor que um dos principais problemas é que a dicotomia é de oposição e não de mera separação.
Com efeito, em 1789, com a Revolução Francesa, eclode a fundação da administração moderna (MANNORI; SORDI, 2009, p. 235). A tomada de poder por Napoleão trouxe a seguinte mensagem: A administração não poderia estar diluída na sociedade, mas separada dela e com grandes poderes de intervenção.
Na mesma linha de pensamento, Mannori e Sordi (2009, p. 236) mencionam que a atividade administrativa devia ser confiada a uma única cadeia de comando, formada por funcionários profissionais e ministros, governadores, subgovernadores e prefeitos, claramente superordenados em relação a simples cidadãos privados, e responsáveis apenas perante seus superiores hierárquicos.
Como registrou agudamente Sundfeld (2017, p. 36), ao examinar o surgimento do Estado moderno, houve uma transformação radical, eis que
Até então, em todas as épocas anteriores, destinavam-se a impor – praticamente sem limites e sem controles – a obediência das pessoas às determinações do poder político. Agora, cuidarão ainda de fazer prevalecer o poder político sobre os indivíduos (que pagarão impostos ao Estado, submeter-se-ão ao seu julgamento, obedecerão às leis por ele produzidas); mas também – e sobretudo – de organizar o Estado para limitar e controlar seu poder (os cidadãos escolhem em eleições os parlamentares, o Parlamento faz normas para regular a cobrança de impostos pelo Executivo, um Tribunal pode anular a lei feita pelo Parlamento, o indivíduo pode mover uma ação judicial para se furtar da cobrança ilegal de impostos…). Cunha-se, a partir de então, o conceito de Estado de Direito, isto é, de um Estado que realiza suas atividades debaixo da ordem jurídica, contrapondo-se ao superado Estado-Polícia, onde o poder político era exercido sem limitações jurídicas, apenas se valendo de normas jurídicas para se impor aos cidadãos.
É dessa época também que a imunidade da Administração frente ao Judiciário surge. Falando da separação entre administração e judiciário no período napoleônico, Mannori e Sordi (2009, p. 237), afirmaram que
[...] todos os casos administrativos foram excluídos da competência judiciária e reservados primeiros à própria administração, e depois a juízes administrativos especiais que eram em todo caso instituídos no interior do poder executivo (o principal desses era o Conseil d’État […]. Esse sucesso sancionou a equalização completa das funções administrativas e judiciárias. A administração havia se tornado um poder perfeitamente autônomo, e seus atos carregavam a mesma força de ‘verdade jurídica’ que as sentenças de juízes.
Com a queda de Napoleão, os atos administrativos passam a ser considerados como expressão de soberania – o poder público não é mais expresso apenas por leis e sentenças, mas também por atos administrativos. Assim, nasce o Direito Administrativo, na família romano-germânica, do Conselho de Estado francês, o qual produz jurisprudência que se torna fonte do Direito Administrativo.
No caso específico, embora o Direito Administrativo tenha suas origens no Direito Civil, cuida-se de especializar o tratamento da Administração Pública. De um lado, essa especialização ocorre para fins de proteger o interesse público e outorgar prerrogativas especiais à Administração, prestadora de serviços essenciais e munida dos chamados atos de império. De outro lado, a especialização proporcionou um controle técnico do que seriam as manifestações de arbítrio da Administração Pública.
Não por outro motivo que as teorias do desvio de poder, desvio de finalidade e, sobretudo, imoralidade administrativa nasceram no Direito Administrativo francês. A propósito, veja-se os trabalhos históricos de Maurice Hauriou (1938, p. 232. e ss.) e Fernando Rodriguez (2002).
Com pequenas divergências, Di Pietro (2016, p. 1-2) aponta que “o Direito Administrativo, como ramo autônomo, nasceu em fins do século XVIII e início do século XIX, o que não significa que inexistissem anteriormente normas administrativas, pois onde quer que exista o Estado existem órgãos encarregados do exercício de funções administrativas”, desenvolvendo-se juntamente com o direito constitucional e outros ramos do direito público, a partir do conceito de Estado de Direito, estruturado sobre o princípio da legalidade e sobre o princípio da separação dos poderes.
Em síntese, a Administração é agora um sujeito que persegue seus fins de interesse público da mesma maneira que cidadãos privados perseguem seus interesses individuais. Contudo, como bem explicita Mannori e Sordi (2009, p. 240),
É certamente diferente do direito privado, porque a administração é a detentora de poderes, competências e privilégios que não podem pertencer a cidadãos comuns e que não são fornecidos pelo Code Civil; mas ainda é um direito que regula uma relação bilateral, tal como a entre dois indivíduos. Uma enorme distância evidentemente separa esse direito do antigo “droit de police”, a quem faltava totalmente esse caráter bilateral e era indicado tão somente por sua finalidade genérica de “bem público”.
Conclui-se, assim, que os órgãos governamentais possuem, e se veem como possuindo, preocupações que são usualmente diferentes daquelas de pessoas ordinárias. Quer dizer, seria um erro tentar colocar direitos individuais no centro do “direito público” e seus procedimentos. Há um espaço para direitos no “direito público”, mas somente como, primeiro, um reflexo de uma visão de que ajuda a construir uma boa sociedade, e, segundo, como uma limitação nítida aos meios que órgãos públicos podem empregar na busca de interesses públicos, de modo que não debilite as liberdades que são necessárias para aquela concepção de uma boa sociedade (FELDMAN, 2015, p. 34-35).
Assentadas tais noções preliminares, verifica-se que o direito começa a assumir uma concepção pública de justiça. Para corroborar e distinguir direito público e direito privado, adotamos os seguintes critérios propostos por Sundfeld (2017, p. 139-141):
(i) Sujeito (no direito público o sujeito é o Estado, no direito privado o sujeito é o particular);
(ii) Interesse (são públicas as normas que tutelam interesses públicos, e privadas as normas que regulam interesses privados);
(iii) Personalidade (o Estado é pessoa jurídica de direito público, enquanto a sociedade comercial, por exemplo, é pessoa jurídica de direito privado. A diferença reside nas normas de organização e de relação com terceiros, isto é, a pessoa de direito público é regida por normas de direito público e a pessoa de direito privado é regida por normas de direito privado);
(iv) Atividade (o que define a incidência de um ou outro ramo jurídico é a atividade, e não a pessoa envolvida. O público é o direito das atividades estatais, enquanto o privado é o direito das atividades dos particulares. Contudo, tanto o Estado como os particulares podem atuar sob o regime de direito público quanto de direito privado). Nessa linha de entendimento, se o Estado presta serviço público (educação, saúde, etc.) sujeita-se ao direito público; se explora atividade econômica sujeita-se ao regime privado, embora deve observar algumas normas típicas do direito público (licitação, concurso, controle do Tribunal de Contas, entre outras). Se o Estado delega a particulares a realização de atividades estatais, sujeitam-se ao regime de direito público. Agora, se a empresa particular explora atividade econômica submete-se ao regime privado.
Por outro lado, outra distinção entre direito público e direito privado, pode se dar através do regime jurídico, porquanto não há um critério único para diferenciar, havendo a necessidade de se conhecer os vários usos da dicotomia dentro da ciência jurídica, bem como identificar os princípios (gerais) de direito público (autoridade pública, submissão do Estado à ordem jurídica-legalidade, função, igualdade dos particulares perante o Estado, devido processo, publicidade, responsabilidade objetiva, igualdade das pessoas políticas) e os princípios de direito privado (códigos civil, comercial, trabalhista).
Nessa ordem de ideias, Sundfeld (2017, p. 41) aponta as seguintes categorias: bem público x bem privado, relação de direito público x relação de direito privado, norma de direito público x norma de direito privado, pessoa de direito público x pessoa de direito privado, interesse público x interesse privado, obrigação de direito público x obrigação de direito privado.
Dessa forma, é possível sintetizar que o direito público tutela o interesse coletivo (público), ao passo que o direito privado tutela o interesse individual (privado). Sempre para ilustrar, ao Estado é reservado o exercício de uma autoridade pública através de uma relação vertical. Diversamente, entre os particulares os interesses são iguais, de mesma estatura (igualdade) e protegidos de modo equivalente, tratando-se de uma relação horizontal (igualdade).
Sobressai que as normas de direito público outorgam ao Estado posição de autoridade nas relações jurídicas, expressando-se no poder de impor deveres ao outro sujeito, independentemente da concordância deste. A relação de direito público é vertical: o Estado se situa em posição mais elevada que o particular. A essa espécie de poder, consistente na possibilidade de obrigar unilateralmente a terceiros, chamados de poder extroverso.
Já as normas de direito privado regulam as relações jurídicas em termos de igualdade, pois entre particulares os interesses individuais e os respectivos deveres nascem pelo consentimento, é dizer, pela concordância de ambas as partes envolvidas na relação. A relação jurídica de direito privado é horizontal, situando-se os sujeitos no mesmo plano, sem poder para, unilateralmente, impor obrigações, na medida em que somente possuem poder interno, que é o poder para constranger sua própria esfera jurídica, e não a alheia.
Tais diferenças podem ser facilmente verificadas nas seguintes oposições: interesses públicos x interesses individuais; autoridade x igualdade; relação vertical x relação horizontal; poder extroverso x poder interno; ato unilateral x ato bilateral; em suma, direito público x direito privado (SUNDFELD, 2017, p. 69).
Quanto ao poder, o Estado exerce um poder extroverso ao editar provimentos e constituir unilateralmente obrigações (ato unilateral), ao passo que os particulares exercem um poder interno, que limita apenas a sua própria esfera jurídica (ato bilateral).
A ideia de submissão do Estado à ordem jurídica (legalidade), aplicável ao direito público, opõe-se o princípio da liberdade dos indivíduos (liberdade), que está na base do direito privado. O Estado somente pode fazer o que a lei permite ou autoriza, ao passo que o particular pode fazer tudo o que a Constituição e as leis não proíbem.
A atividade pública constitui uma função, que é o poder de agir, cujo exercício traduz um dever jurídico dirigido para uma finalidade que gerou a atribuição ao agente. Ao princípio da função (ato vinculado a um fim), próprio do direito público, opõe-se o da autonomia da vontade, vigente no direito privado, cujo ato é produzido nos termos da vontade livre dos particulares.
Outra distinção diz respeito à igualdade dos particulares perante o Estado. O Estado deve editar leis gerais e abstratas, não existindo um direito do particular à igualdade nas relações privadas.
Outra distinção refere-se ao devido processo. A realização do processo é indispensável à produção ou execução dos atos estatais. É uma garantia do particular frente ao Estado (processo legislativo, judicial e administrativo). Ao princípio-garantia do devido processo (formalismo), típico do direito público, contrapõe-se, no direito privado, a faculdade de os sujeitos determinarem livremente o iter formativo de suas vontades, sem vinculação a qualquer processo juridicamente regulado (informalismo).
Ainda, existem distinções quanto à publicidade, à responsabilidade objetiva e à igualdade das pessoas políticas. O Estado tem o dever de publicidade, e o inverso ocorre com o indivíduo em que a atividade é livre com a realização de valores íntimos (intimidade/privacidade). A responsabilidade do Estado é objetiva, independe de culpa. No direito privado a responsabilidade se liga à ideia de culpa (subjetiva). Por último, a relação entre União, Estados e Municípios é de igualdade (isonomia) em termos de organização espacial da estrutura de poder, não havendo, no mundo privado, essa simetria.
Portanto, o Estado tem o poder de mandar, de dar ordens e de impor obrigações. Contudo, tais poderes não são ilimitados. Ao contrário, é limitado, condicionado e controlado por normas jurídicas que concederam o poder ao Estado, sendo que o “estudo desses limites, condições e controles é um dos tópicos mais importantes da ciência do direito público.” (SUNDFELD, 2017, p. 70).
Entre os limites do direito público e do direito privado podem ser inseridos: a possibilidade de intervenção do Estado na economia, o ciclo intervencionista e as atividades não imperativas e não funcionais que passaram a ser conduzidas pelo Estado em competição com os sujeitos privados, o que revela o início em direção ao direito privado por parte da Administração Pública.
A centralidade do direito administrativo no final do século XIX dependeu amplamente da transformação da própria tipologia do Estado, de uma verdadeira explosão de tarefas públicas como uma questão social, cuja necessidade era responder ao fenômeno da industrialização.
Do Estado providência, que não se resume apenas um aumento de funções de vigilância e defesa, passa a ser traduzido para um Estado gerencial, confundindo-se os limites entre direito público e direito privado.
O “Estado se torna um fator ativo e influente na economia; se torna uma empresa, uma corporação de negócios; de um corpo político, se torna um corpo econômico. Paralelamente, o regime administrativo começa a perder sua unidade” (MANNORI; SORDI, 2009, p. 258-259), cujos traços essenciais deste modelo são o esvaziamento da distinção entre o Direito Público e o Direito Privado, a restrição gradual da autonomia da vontade privada em detrimento do interesse público, bem como o destaque do papel exercido pela norma jurídica na conformação da vida econômica e social. São essas as reflexões que serão desenvolvidas no próximo tópico.