O ato de vontade do aplicador do Direito na interpretação autêntica de Hans Kelsen

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Resumo: Este estudo trata da teoria interpretativa desenvolvida por Hans Kelsen no livro Teoria Pura do Direito. Apesar da importância do tema, o seu desenvolvimento compreendeu apenas um capítulo da obra, em contrapartida para o seu entendimento se faz necessário como premissa o conhecimento de pontos basilares da sua Teoria Geral do Direito. A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica através do procedimento realizado pelo levantamento documental em livros e artigos referentes ao tema. A proposta do presente estudo busca demonstrar a relevância do ato de vontade do aplicador do Direito na interpretação autêntica. No desenvolvimento primeiramente para adequada compreensão foram expostos os principais pontos da teoria pura de Kelsen, haja vista a significativa influência destes na formação de sua concepção de interpretação jurídica. Em seguida foram analisados os sujeitos, o objeto e as funções da interpretação do direito, sendo destacada a ruptura com a corrente tradicional positivista de interpretação. Atingidos os objetivos de conhecer os fundamentos da teoria do Direito de Kelsen e as concepções de sua interpretação jurídica, foi possível constatar que segundo o autor o ato de vontade é o ato jurídico concreto, sendo necessário oportunizar ao aplicador do Direito a liberdade de valoração frente às possibilidades extraídas da norma.

Palavras-chave: Kelsen. Teoria Pura do Direito. Interpretação. Ato de vontade.


1. INTRODUÇÃO

Quando se faz referência à temática da interpretação, que é um dos assuntos mais discutidos e importantes na seara jurídica, surgem diversas contribuições dos vários estudiosos da interpretação jurídica. A significativa importância do pensamento de Hans Kelsen1 para o Direito é imensurável. Entre todas as respeitáveis teorias desenvolvidas pelo autor destacamos no presente trabalho a sua teoria interpretativa, mais especificamente, a relevância do ato de vontade para o aplicador do direito na interpretação autêntica.

A validade e a abrangência da obra de Kelsen são, por si só, um justo motivo para o seu estudo. A obra de Kelsen ainda o mantém em evidência dada a sua abrangência e densidade. A sua repercussão para a ciência jurídica, para a lógica da norma e para a aplicação do direito são tão fecundas que, por mais críticas que sejam direcionadas, não deixam de surgir e serem desvendados novos ângulos e encaminhamentos. (FERRAZ JÚNIOR apud COELHO, 1996, p.19)

A teoria interpretativa é desenvolvida por Kelsen no capítulo VIII da obra Teoria Pura do Direito (Reine Rechtslehre). Para muitos estudiosos, Kelsen foi bastante econômico ao tratar de tão importante assunto, entretanto, ao adentrarmos na leitura e profundidade dos conceitos abordados, compreendemos que seu pensamento está conectado com o contexto maior da sua Teoria Pura e os diversos conceitos de sua obra.

Antes de iniciarmos a análise da teoria interpretativa de Kelsen, apresentaremos necessariamente aspectos gerais da Teoria Pura, como o positivismo jurídico, o normativismo, o sistema estático e sistema dinâmico do ordenamento jurídico e a norma fundamental, tais concepções influenciam decisivamente sua interpretação jurídica.

Segundo Kelsen em sua Teoria Pura do Direito (1998, p.387), “a interpretação é uma operação mental que acompanha o processo da aplicação do direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior”, assim sendo é através do processo intelectivo que se define o sentido da norma. Entretanto, diante da impossibilidade da norma superior regular totalmente a norma inferior, Kelsen cria a moldura interpretativa para enfrentar essas indeterminações.

A ideia de uma interpretação puramente intelectiva, unívoca e imparcial defendida pela teoria tradicional da interpretação é superada quando na interpretação autêntica de Kelsen (1998, p. 394) se enaltece o ato de vontade do aplicador do direito.

A teoria da interpretação desenvolvida por Hans Kelsen representou um grande avanço frente às teorias tradicionais de sua época, haja vista que ao estabelecer a possibilidade da escolha pelo ato de vontade do aplicador do direito, culminou por criar um novo paradigma hermenêutico.


2. ASPECTOS DA TEORIA PURA DO DIREITO

Para adequada abordagem da teoria interpretativa de Kelsen é necessário pontuar os conceitos definidos na obra Teoria Pura do Direito, devido sua relevante influência sobre a concepção de interpretação.

2.1. O Positivismo Jurídico

A Teoria Pura de Kelsen é uma teoria do Direito positivo, em que é proposto um novo modelo epistemológico para Ciência do Direito. Para o autor a Ciência do Direito não pode ser uma ciência da natureza, que venha se ater a descrição de fatos e a investigação de suas causas, logo procurou estabelecer uma Ciência do Direito desvinculada de toda influência externa. Ressalta o autor que a aludida Teoria Pura é uma teoria do Direito em geral e não de um específico Direito positivo. No prefácio da sua obra Teoria Pura do Direito (1998, p. XI), o autor revela seu objetivo:

Há mais de duas décadas que empreendi desenvolver uma teoria jurídica pura, isto é, purificada de toda ideologia política e de todos os elementos da ciência natural, uma teoria jurídica consciente da sua especificidade porque consciente da legalidade específica do seu objeto. Logo desde o começo foi meu intento elevar a Jurisprudência, que – aberta ou veladamente – se esgotava quase por completo em raciocínios de política jurídica, à altura de uma genuína ciência, de uma ciência do espírito. Importava explicar não as suas tendências endereçadas à formação do Direito, mas as suas tendências exclusivamente dirigidas ao conhecimento do Direito, e aproximar tanto quanto possível os seus resultados do ideal de toda a ciência: objetividade e exatidão. (KELSEN, 1998, p. XI)

A citada obra foi alvo de inúmeras críticas tanto no campo político, como no campo religioso. Em resposta aos críticos Kelsen afirma que as críticas são direcionadas para a falsa imagem da Teoria Pura do Direito, as quais são criadas pelos próprios opositores. (KELSEN, 1998)

Ao propor a discussão sobre os princípios e os métodos da teoria jurídica, Kelsen já demonstrava preocupação com a segurança jurídica, pois a existência de várias tendências do positivismo jurídico, como também a interpretação livre do direito enfraqueceria a autonomia da ciência jurídica.

Frente às possibilidades delineadas para a metodologia vigente, que seria uma possível junção com outras ciências ou, ainda, a volta aos parâmetros do direito natural, Kelsen conferiu à Ciência Jurídica método e objetivo próprios através do princípio da pureza. Explica Ferraz Júnior:

[...] Kelsen propôs o que denominou princípio da pureza, segundo o qual o método e objeto da ciência jurídica deveriam ter, como premissa básica, o enfoque normativo. Ou seja, o direito, para o jurista, deveria ser encarado como norma (e não como fato social ou como valor transcendente). Isso valia tanto para o objeto como para o método. (FERRAZ JÚNIOR apud COELHO, 1996, p. 15, grifo nosso)

A teoria positivista defendida por Kelsen na qual o Direito liberta-se de análises e influências sociais ou valorativas, evitando uma possível confusão com a ética, a política ou a psicologia é um traço marcante da sua obra. O autor restringiu o campo da Ciência Jurídica separando-a de influências estranhas ao âmbito normativo.

Sobre a purificação da Ciência do Direito inerente a Teoria Pura de Kelsen discorre Miguel Reale:

É necessário, dizia Kelsen, conceber o Direito com olhos de jurista, sem procurar a todo instante elementos que a Psicologia elabora, a Economia desenvolve ou a Sociologia nos apresenta. Quando se trata, por exemplo, de estudar o problema da vontade jurídica nos contratos, eis que aparece a explicação psicológica como a única possível, quando, a seu ver, trata-se de uma categoria jurídica dotada de valor lógico próprio, irredutível ao problema do conteúdo psíquico ou do processo de aferição de interesses. A Psicologia mostra-nos como o ato volitivo tem sua gênese e desenvolvimento, marcando seus momentos e significados, mas a vontade de um contrato, vista sob o prisma jurídico, não é algo que se possa explicar segundo o processo empírico das volições dos interessados: - trata-se de um fato que deve ser compreendido em termos de normatividade, segundo esquemas interpretativos peculiares à experiência jurídica. (REALE, 1975, v.2, p. 401-402)

É primordial reconhecer que a pureza pretendida por Kelsen não é postulada em relação ao Direito, mas a ciência que o tem como objeto que é a Ciência do Direito. Para Kelsen em sua primeira afirmação na Teoria Pura a ciência jurídica tem natureza puramente normativa é uma ciência do dever ser. (Reale,1975, v.2, p. 404)

Apesar de reconhecer a necessária conexão entre o Direito e outros campos do conhecimento humano, Kelsen defende que para a Ciência alcançar seu objetivo em determinar o que o Direito é, tudo que não seja determinado como Direito deve ser afastado para o êxito do seu método.

2.2. O Normativismo

Para Kelsen (1998) a norma é a conduta prescrita através de um ato. Para o autor, em relação ao fato jurídico identifica-se o primeiro elemento que é a conduta humana por sua manifestação externa e o segundo elemento que é o significado deste ato a partir do Direito.

Para Kelsen as normas jurídicas são o objeto da Ciência Jurídica, pois na certeza da afirmação evidenciada de que o objeto da ciência jurídica é o Direito está também, de maneira menos evidente, contida a afirmação de que são as normas jurídicas o objeto da ciência jurídica (1998, p.79).

A relação entre o campo do Ser, onde se tem todos os atos da conduta humana, e o campo do Dever Ser, onde estão todos os fatos dotados de significação jurídica, é intermediada pela norma jurídica. O fato humano se torna fato jurídico através da norma jurídica. O autor assim explica:

O que transforma um fato num ato jurídico (lícito ou ilícito) não é a sua particularidade, não é o seu ser natural, isto é, o seu ser tal como determinado pela lei da causalidade e encerrado no sistema da natureza, mas o sentido objetivo que está ligado a esse ato, a significação que ele possui. O sentido jurídico específico, a sua particular significação jurídica, recebe-a o fato em questão por intermédio de uma norma que a ele refere-se com o seu conteúdo, que lhe empresta a significação jurídica, por forma que o ato pode ser interpretado segundo esta norma. A norma funciona como esquema de interpretação. (KELSEN, 1998, p.04)

O Direito é concebido como um conjunto de normas jurídicas dispostas hierarquicamente no sistema jurídico. A ordem normativa regula o comportamento humano2 através de enunciados de Dever Ser. As normas são produzidas através de atos de vontade da autoridade competente.

Apesar da relação entre a norma e o ato de vontade, a norma jurídica entendida como diretriz motivadora de condutas, em sentido objetivo, não se confunde com ato de vontade de quem a produziu. Sobre o sentido da norma em Kelsen, assim leciona Cademartori e Gomes:

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Por outro lado, o direito é uma ordem normativa da conduta humana, isto é, um sistema de normas que regulam o comportamento humano. A norma jurídica possui o sentido específico de um ato intencional dirigido à conduta de outrem (sentido objetivo de dever-ser). Kelsen considera a norma como técnica indireta de motivação das condutas humanas. Salienta, entretanto, que a norma não se confunde com a vontade que a produziu. A norma não é algo de psíquico real. A norma é um dever-ser, ao passo que o ato de vontade da qual ela é o sentido objetivo, constitui um ser. Donde se conclui a estreita vinculação entre norma e ato de vontade.

As normas jurídicas não são fatos, mas o sentido destes, ou seja, o sentido de atos de vontade direcionados para o comportamento humano. A validade de uma norma jurídica não resulta de seu conteúdo, mas apenas da sua criação por uma forma determinada, em última instância, por uma norma fundamental pressuposta (fonte comum de validade de todas as normas pertencentes ao sistema). A norma jurídica é, pois, materialmente vazia. A discussão acerca do conteúdo ou da materialidade da norma jurídica não é posta pela Teoria Pura do Direito, pois irrelevante do ponto de vista jurídico-científico. Efetivamente, para Kelsen, “todo e qualquer conteúdo pode ser direito”. (CADEMARTORI; GOMES, 2008, p. 100-101)

As normas jurídicas são produzidas pelos órgãos os quais a ordem jurídica confere competência para produção normativa. Sendo que é por essa função criadora do Direito, exercida pela autoridade competente que se enuncia a validade do Direito, não se amparando pelo fundamento acerca do justo ou do verídico.

A validade normativa não é lastreada por elementos de natureza ética ou metafísica, mas ao procedimento específico de produção normativa. O conceito de validade para Kelsen também apresenta o sentido de obrigatoriedade da norma, haja vista que a norma válida vincula a conduta humana. "Dizer que uma norma que se refere à conduta de um indivíduo 'vale', significa que ela é vinculativa, que o indivíduo se deve conduzir do modo prescrito pela norma." (KELSEN, 1998, p. 215)

Para Kelsen, afirmar que uma norma é vigente significa afirmar sua existência. A vigência estreita-se com ideia de validade, pois para a norma existir deve ser produzida por uma autoridade competente.

O conceito e o sentido do termo validade em Kelsen são explicados por Barzotto (2007, p. 34-35): “[...] o conceito de validade é empregado por Kelsen para descrever um sistema jurídico isolado das dimensões fática e moral”. Em relação aos sentidos do termo validade: “tem ao menos quatro sentidos que não se excluem, mas ao contrário, se implicam”. No que concerne aos sentidos do termo, observa-se que:

Inicialmente, validade é a qualidade que expressa a existência da norma: “definindo a existência específica de uma norma como a sua ‘validade’, se exprime o modo particular no qual essa vem dada, à diferença do existir dos fatos naturais”.

Kelsen também usa o termo “validade” para significar a pertinência a um ordenamento jurídico. Não existem normas isoladas. Toda norma existe enquanto elemento de um sistema normativo.

Outro significado de validade poderia ser parafraseado da seguinte maneira: “criada no modo previsto no sistema”. Uma norma é válida quando foi criada de acordo com outra norma.

Um último sentido de validade é aquele que o termo significa obrigatoriedade. [...] Assim, a ordem de um fiscal consiste em uma norma válida, porque ela verdadeiramente obriga seu destinatário, ao passo que a ordem de um ladrão não é norma válida, não vinculando, portanto, seu destinatário.

Estes vários sentidos de validade estão a exigir, contudo, um fundamento. Se uma norma existe, pertence a um ordenamento e é obrigatória, isso só ocorre porque foi produzida de acordo com uma outra norma. (BARZOTTO, 2007, p. 35-36-37)

A norma pode continuar vigente ainda que o ato de vontade que constituiu seu sentido tenha deixado de existir3, haja vista que a vontade da autoridade competente para produzir a norma dirigida à conduta de outrem se encontra na ordem do dever ser, diferentemente do ato do indivíduo que a constituiu que se encontra na ordem do ser.

A norma jurídica é um imperativo, uma determinação estabelecida inerente a uma ação produtora do Direito, tendo o sentido prescritivo. A proposição normativa pode ser reconhecida por um enunciado descritivo, cuja finalidade é o conhecimento do Direito4, tendo sentido eminentemente descritivo.

Segundo Cademartori e Gomes (2008, p. 101): “A distinção revela-se no fato das proposições jurídicas formuladas pela ciência do direito poderem ser verídicas ou inverídicas, enquanto as normas jurídicas podem ser válidas ou inválidas.”

2.3. O Sistema Estático e o Sistema Dinâmico

Para Kelsen os ordenamentos normativos poderiam ter dois tipos de sistemas: o estático e o dinâmico. O sistema estático é aquele em que as normas são interligadas por uma relação de derivação lógica, e, ainda, pelo conteúdo moralmente válido. O sistema dinâmico é aquele em que as normas estariam interligadas pelas sucessivas delegações de poder e autoridade, sendo este o sistema dos ordenamentos jurídicos.

Sobre os ordenamentos normativos concebidos pelo jusnaturalismo e pelo positivismo, didaticamente explica Bobbio:

Kelsen exprime essa diferença falando de dois tipos diversos de ordenamentos normativos: o ordenamento estático (ao qual pertencem a moral e o direito concebido jusnaturalisticamente) e o ordenamento dinâmico, que é o próprio do direito concebido positivisticamente. Segundo os jusnaturalistas, portanto o direito constitui um sistema unitário, porque todas suas normas podem ser deduzidas por um procedimento lógico uma da outra até que se chegue a uma norma totalmente geral, que é a base de todo o sistema e que constitui um postulado moral auto-evidente […]. Já segundo os juspositivistas, ao contrário, o direito constitui uma unidade num outro sentido: não porque as suas normas possam ser deduzidas logicamente uma da outra, mas porque elas são todas postas (diretamente ou indiretamente, isto é, mediante delegação a autoridades subordinadas) pela mesma autoridade, podendo assim todas serem reconduzidas à mesma fonte originária constituída pelo poder legitimado para criar direito. (BOBBIO, 1995, p.199-200, grifo do autor)

Para garantir a legitimidade da produção normativa, Kelsen define um processo autopoiético em que se firma em uma relação de supra-infra-ordenação: O fundamento de validade da norma será buscado em outra norma superior do sistema, que irá regular a criação e os métodos utilizados na norma inferior. Sobre a relação entre a norma superior e a norma inferior, assinala Sgarbi:

A relação normativa presente nos ordenamentos jurídicos, diz Kelsen, é dinâmica. “Dinâmica” porque as derivações normativas são procedidas a partir de autorizações iniciadas por uma norma base autorizadora. Não obstante, é possível que o poder instituído de um ordenamento institua outras autoridades; neste caso, terá ocorrido o fenômeno da “delegação”. Com isso, inclui em suas considerações a idéia segundo a qual o direito não apenas corresponde a um conjunto normativo de “índole dinâmica”, mas também dotado de “cadeias de autorização”.

Nesses termos, é exatamente pelo fato de cada norma encontrar sua validade na norma hierarquicamente superior que se forma a estrutura de pirâmide tão conhecida em sua obra. A essa relação entre o grau superior e o grau inferior Kelsen intitula de “concretização”, “determinação” ou “ligação”. (SGARBI, 2005, p. 285)

Kelsen afasta a possibilidade de que a validade da norma jurídica seja fundamentada em uma situação da realidade fática, devendo a validade ser sempre fundamentada em uma norma superior. Na produção do Direito a realidade fática tem participação meramente formal5.

2.4. A Norma Fundamental

Como fundamento dessa cadeia de validade está a Teoria da Norma Fundamental (grundnorm), que seria a norma que legitima o fundamento de existência de uma constituição. Neste sentido, Miguel Reale:

Até por volta de 1934 (período europeu) Kelsen concebe a norma jurídica como entidade lógico-hipotética, capaz de qualificar ou constituir juridicamente a experiência social, abrangendo desde normas fundamentais das Constituições até os preceitos dos contratos e das sentenças. O Direito é visto como um sistema escalonado e gradativo de normas, os quais atribuem sentido objetivo aos atos de vontade. Elas se apóiam umas nas outras, formando um todo coerente: recebem umas das outras a sua vigência (validade), todas dependendo de uma norma fundamental, suporte lógico da integralidade do sistema. (REALE, 1975, v.2, p. 403, grifo do autor)

A norma fundamental é pressuposta (originária), é conteúdo de ato de pensamento, entendida como figuração mental de um estado de coisas, que impõe que esse estado seja sempre hipotético. A figuração é relativa a um fato não necessariamente existente no plano da natureza dotado de concretude. Sobre a essência da Norma Fundamental, esclarece Bittar e Almeida:

Numa doutrina, onde as normas têm total preponderância, até mesmo o fundamento do ordenamento vem definido como sendo uma norma, a norma fundamental, aquela que não remete a nenhuma outra. Seu caráter é técnico-gnosiológico, e sua existência, puramente lógica. Assim, esta norma possui uma natureza puramente pensada, como forma de estancar o regresso ad infinitum do movimento cadenciado de busca do principium de validade de toda a estrutura piramidal do ordenamento jurídico; trata-se de uma ficção do pensamento, na busca de determinar logicamente um começo e um fim. (BITTAR; AMEIDA, 2015, p. 436)

A norma fundamental constitui unidade de pluralidade de normas, enquanto representa o fundamento de validade de todas as normas pertencentes à ordem normativa. Não tendo caráter axiológico, pretende ser uma resposta teorética para a validade das normas do sistema jurídico positivo, unificando a pluralidade de normas em um fundamento comum.

A norma fundamental além de identificar as normas que pertencem ou não ao ordenamento jurídico, também atribui força vinculante a Constituição e por consequência as normas produzidas em conformidade com esta. Kelsen apresenta uma pergunta da Teoria Pura do Direito sobre a possibilidade de se interpretar o sentido subjetivo de um sistema de normas jurídicas objetivamente válidas sem recorrer a autoridades metajurídicas. E como resposta explica:

A resposta epistemológica (teorético-gnoseológica) da Teoria Pura do Direito é: sob a condição de pressupormos a norma fundamental: devemos conduzir-nos como a Constituição prescreve, quer dizer, de harmonia com o sentido subjetivo do ato de vontade constituinte, de harmonia com as prescrições do autor da Constituição. A função desta norma fundamental é: fundamentar a validade objetiva de uma ordem jurídica positiva, isto é das normas, postas através de atos de vontade humanos, de uma ordem coerciva globalmente eficaz, quer dizer: interpretar o sentido subjetivo desses atos como seu sentido objetivo. (KELSEN, 1998, p. 225-226).

A compreensão dos preceitos apresentados, em linha gerais, da obra Teoria Pura do Direito é fundamental para evitar equívocos como a ideia de ser o Direito unicamente norma, ou, ainda, que esta teoria seja limitadora da atividade jurisdicional para discussões abstratas. Sobre a crítica e também acusação de ser a Teoria Pura do Direito uma teoria reducionista, esclarece Ferraz Jùnior:

A redução do objeto jurídico à norma causou inúmeras polêmicas. Kelsen foi continuamente acusado de reducionista, de esquecer as dimensões sociais e valorativas, de fazer do fenômeno jurídico uma mera forma normativa, despida de seus caracteres humanos. Sua intenção, no entanto, não foi jamais a de negar os aspectos multifaciais de um fenômeno complexo como é o direito, mas de escolher, dentre eles, um que coubesse autonomamente ao jurista. Sua idéia era a de que uma ciência que se ocupasse de tudo corria o risco de se perder em debates estéreis e, pior, de não se impor conforme os critérios de rigor inerentes a qualquer pensamento que se pretendesse científico. (FERRAZ JUNIOR apud COELHO 1996, p. 15-16, grifo do autor)

Sobre o autor
Antonio Vital de Moraes Junior

Servidor Público. Mestrando em Estudos Jurídicos com Ênfase em Direito Internacional pela Must University. Especialista em Ciências Criminais pela Universidade Federal de Pernambuco. Especialista em Metodologia do Ensino da Filosofia pela Universidade Gama Filho. Especialista em Teoria e Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Direito Público Contemporâneo pela Faculdade São Vicente. MBA em Administração e Gestão Pública pelo Centro Universitário Maurício de Nassau. Graduado em Licenciatura em Filosofia e Bacharelado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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