O ato de vontade do aplicador do Direito na interpretação autêntica de Hans Kelsen

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3. A INTERPRETAÇÃO JURÍDICA EM KELSEN

Para Kelsen o ato de aplicação do Direito é o elemento motivador da atividade interpretativa . Segundo a sua teoria “quando o Direito é aplicado por um órgão jurídico, este necessita de fixar o sentido das normas que vai aplicar, tem de interpretar estas normas” (KELSEN, 1998, p. 387). A interpretação deve evidenciar de maneira descritiva as possibilidades da norma, sendo a norma jurídica o objeto do ato interpretativo.

3.1. A interpretação autêntica e a interpretação não autêntica

Em sua teoria Kelsen defende que a atividade interpretativa no âmbito do Direito é realizada por dois grupos, que seriam: os órgãos competentes que aplicam o Direito através da interpretação autêntica e os particulares que compreende os indivíduos que são os destinatários das normas e a ciência jurídica através da interpretação não autêntica. Em convergência com a citada explanação, complementa Bittar e Almeida:

Quem aplica o Direito exerce a chamada interpretação autêntica do Direito. Autêntica aqui quer dizer que se trata do ato de interpretação copulado com o de aplicação; quando há esta fusão, então aquele que determina o sentido também decide, e aquele que decide também determina o sentido de forma concreta e final. E este ato e somente este ato que pode realmente pôr fim à cadeia das interpretações e discussões acerca do sentido de uma norma jurídica. Neste sentido, enquanto a Ciência do Direito polemiza (interpretação não autêntica), o aplicador do Direito define (interpretação autêntica). (BITTAR; ALMEIDA, 2015, p. 437)

Os órgãos aplicadores do Direito para Kelsen são: O legislador que cria o Direito através da produção de norma geral, o órgão judicial que aplica a norma geral com objetivo de determinar as normas individuais e os Tribunais pela criação do Direito novo.

Segundo o autor a aplicação da norma significa produção, quando se aplica uma norma é criada outra norma. O presente posicionamento é ilustrado através do processo de elaboração de lei que é aplicação da Constituição, ou, ainda, o prolatar de uma sentença que também é aplicação da norma geral que cria norma individual.

Quando o ato interpretativo autêntico é realizado pelo aplicador do Direito, decorrente de uma prestação jurisdicional é determinado o conteúdo da norma de maneira vinculante. No que concerne ao efeito vinculante da norma, Segundo Ferraz Júnior, Tem-se que:

Para Kelsen, quando um órgão se pronuncia sobre o conteúdo de uma norma, por exemplo, o juiz quando determina o sentido de uma lei no processo de aplicação, produz um enunciado normativo. Como qualquer norma, este enunciado é vinculante. Isto está na base de discussão da hermenêutica. Assim, a contrario sensu, todo ente que não é órgão, ao interpretar, ainda que diga qual deva ser o sentido de uma norma, não produz um enunciado vinculante, aquele dever-ser não tem, pois, caráter de norma. É o caso, por exemplo, de um parecer jurídico ou de uma opinião doutrinária exarada num livro. (FERRAZ JÚNIOR, 1988, p.237)

Para presente teoria a Ciência do Direito não cria Direito, pois tem a neutralidade como princípio, sendo o cientista do Direito indivíduo imparcial, cujo trabalho se atém a interpretar objetivamente a norma e suas possibilidades, norteado pela finalidade cognitiva6. “A interpretação cientifica é pura determinação cognoscitiva do sentido das normas jurídicas, diferentemente da interpretação feita pelos órgãos jurídicos, ela não é criação jurídica.” (Kelsen, 1998, p.395)

A interpretação não autêntica realizada pelos indivíduos que não possuem competência para criar normas, exalta a necessidade de que estes precisam observá-las para interpretar seus enunciados e pautar suas condutas evitando possíveis sanções. Nesta teoria a interpretação escolhida pelo indivíduo não tem poder vinculante, podendo tal interpretação ser considerada errada pelo aplicador do Direito. Afirma Kelsen:

Se um indivíduo quer observar uma norma que regula a sua conduta, quer dizer, pretende cumprir um dever jurídico que sobre ele impende realizando aquela conduta a cuja conduta oposta a norma jurídica liga uma sanção, esse indivíduo, quando tal conduta não se encontra univocamente determinada na norma que tem de observar, também tem de realizar uma escolha entre diferentes possibilidades. Porém, esta escolha não é autêntica. Ela não é vinculante para o órgão que aplica essa norma jurídica e, por isso, corre sempre o risco de ser considerada como errônea por este órgão, por forma a ser julgada como delito a conduta do indivíduo que nela se baseou. (KELSEN, 1998, p.395)

3.2. A indeterminação intencional e a indeterminação não intencional

Como visto, na produção normativa é efetiva a determinação entre a norma de escalão superior em relação norma de escalão inferior, entretanto esta determinação nunca é completa, haja vista a impossibilidade de exaustivamente se definir como essa norma será aplicada. Kelsen é taxativo ao reconhecer ser irrazoável pretender atingir esse nível de vinculação. Segue seu posicionamento:

A norma do escalão superior não pode vincular em todas as direções (sob todos os aspectos) o ato através do qual é aplicada. Tem sempre de ficar uma margem, ora maior ora menor, de livre apreciação, de tal forma que a norma do escalão superior tem sempre, em relação ao ato de produção normativa ou de execução que a aplica, o caráter de um quadro ou moldura a preencher por este ato. (KELSEN, 1998, p. 388, grifo nosso)

A indeterminação normativa segundo Kelsen pode ser intencional e não intencional. Na indeterminação intencional a norma geral produzida pelo legislador é em parte determinada e em parte indeterminada7. Em parte, o legislador deixa explícita sua vontade pelo seu comando, todavia em outra parte a norma jurídica é indeterminada dependente para sua aplicação da apreciação discricionária do aplicador.

Para ilustrar a indeterminação intencional do ato de aplicação do Direito, Kelsen utiliza o seguinte exemplo:

[…] A lei penal prevê, para a hipótese de um determinado delito, uma pena pecuniária (multa) ou uma pena de prisão, e deixa ao juiz a faculdade de, no caso concreto, se decidir por uma ou pela outra e determinar a medida das mesmas – podendo, para esta determinação, ser fixado na própria lei um limite máximo e um limite mínimo. (KELSEN, 1998, p.389)

A indeterminação não intencional é derivada de situações não almejadas pelo legislador, pois no processo de constituição da norma é realizada a pretensão de descrever situações fáticas das relações sociais o que acarreta a possibilidade de pluralidade de significações das palavras. Em relação aos motivos da indeterminação não intencional, pontua Sgarbi:

Com respeito à “indeterminação não intencional”, Kelsen se refere às situações “não buscadas pelo legislador”, de tal modo que se infere serem “defeitos técnicos” cometidos no processo de produção normativa. São três os defeitos que menciona: ambigüidade; discrepância de vontade; e as contradições normativas.

  1. “Ambigüidade”: ocorre quando há o defeito de falta de univocidade no sentido lingüístico, que tanto pode afetar uma palavra isolada como uma seqüência de palavras por meio das quais se expressa uma norma.

  2. “Discrepância normativa”: da mesma origem que o defeito anterior, a discrepância consiste no distanciamento da vontade do editor do comando de suas possibilidades semânticas. Esse distanciamento pode ser tanto “parcial” quanto “total”. Será parcial quando a discrepância se der em relação a apenas alguns dos possíveis significados da norma; será “total” quando alcançar todos os possíveis significados da norma;

  3. “Contradições normativas”: decorre do fato de duas normas, que pretendem valer simultaneamente, oporem-se total ou parcialmente. Esta é a situação clássica de antinomia jurídica.

Note-se que o defeito n° 1 amplia, sobremaneira, os significados possíveis da norma; o defeito n° 2 consiste na dissociação entre o pretendido e o efetivamente logrado (questão que se encontra no setor do que John L. Austin designou de “perlocutivo”); o defeito n° 3 gera instabilidade no conjunto normativo e dificuldades de intelecção da parte do destinatário, o que pode comprometer sua visão do que “é devido” e do que “não é”. (SGARBI, 2005, p. 287)

3.3. A moldura interpretativa

Para Kelsen por mais detalhada que seja a ordem é inafastável a ocorrência de indeterminações, logo são várias as possibilidades que surgem inerentes ao ato de aplicação do Direito. O autor não defende uma indeterminação completa do ato jurídico, como também não restringe a aplicação da norma em apenas uma única possibilidade, na verdade é estabelecido um marco delimitador através da moldura8.

A aplicação Direito dentro ou fora da moldura só pode ser realizada através da interpretação autêntica do direito, e, sendo ainda mais restritivo pelo aplicador do Direito, não sendo realizável pelos legisladores e nem pela interpretação não autêntica.

O autor reconhece como requisitos necessários para aplicação do Direito como moldura dois atos: ato cognoscitivo e ato de vontade. O ato cognoscitivo consiste no conhecer o Direito, identificando e acompanhando o processo de criação das normas. O ato cognoscitivo compreende não apenas o conhecimento das leis produzidas pelos legisladores, como das normas morais, da justiça e dos juízos de valores sociais. Contudo, as normas morais buscadas na atividade cognoscitiva do aplicador do Direito, não são consideradas parte do Direito positivo e em nada podem interferir na validade da ordem normativa. Preceitua Kelsen:

Na medida em que, na aplicação da lei, para além da necessária fixação da moldura dentro da qual se tem de manter o ato a pôr, possa ter ainda lugar uma atividade cognoscitiva do órgão aplicador do Direito, não se tratará de um conhecimento do Direito positivo, mas de outras normas que, aqui, no processo da criação jurídica, podem ter sua incidência: normas de Moral, normas de Justiça, juízos de valor sociais que costumamos designar por expressões correntes como bem comum, interesse do Estado, progresso, etc. Do ponto de vista do Direito positivo, nada se pode dizer sobre a sua validade e verificabilidade. Deste ponto de vista, todas as determinações desta espécie apenas podem ser caracterizadas negativamente: são determinações que não resultam do próprio Direito positivo. Relativamente a este, a produção do ato jurídico é livre, isto é, realiza-se segundo a livre apreciação do órgão chamado a produzir o ato. (KELSEN, 1998, p. 393)

O ato de vontade é o de livre apreciação do aplicador do Direito, ou seja, é a sua decisão, o seu poder de dizer o direito e o fixar da sua interpretação na norma jurídica. Para criar o Direito a partir da aplicação do próprio Direito, deve-se combinar o ato da cognição com o ato de vontade. Em sua teoria Kelsen defende que não se cria Direito apenas pelo conhecimento das possibilidades inerentes as normas no ato de sua aplicação, ou mesmo, apenas pelo ato de vontade do aplicador do Direito.

Sobre o ato de vontade implícito na decisão do aplicador do Direito, explana Sgarbi:

Todavia, sabe Kelsen que todo ato de decisão de um órgão aplicador é precedido por uma leitura das opções, pela formulação de um “quadro interpretativo”. Portanto, os órgãos aplicadores sempre desenvolvem uma interpretação científica como ato “preliminar” ao ato “decisório”: a atividade dos órgãos aplicadores é cognoscitivo-volitiva; primeiro há o desenho do quadro interpretativo que corresponde às possibilidades de sentido; depois, a escolha por uma delas. A teoria pura, quanto a isso, apenas afirma que, após a explicitação das possíveis significações, cabe a ela, tão-somente, confiar, às considerações políticas, a eleição definitiva entre as igualmente possíveis interpretações, tenham sido elas evidenciadas por ato puramente de conhecimento (interpretação científica) ou de conhecimento para posterior decisão (ato inicial e preliminar necessário de conhecimento de todo órgão de aplicação jurídica). (SGARBI, 2005, p. 289)

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Para Kelsen é através do ato cognoscitivo que as possibilidades são reveladas para aplicação do Direito e consequentemente são fixados os limites da moldura. Assim sendo, o Direito será aplicado dentro da moldura quando a norma individual produzida estiver de acordo com as possibilidades reveladas pelo ato de conhecimento. Sobre a importância do embasamento pelo ato cognoscitivo, ressalta Ferraz Júnior:

Kelsen, evidentemente, não desconhece e até reconhece que tais atos de vontade estejam baseados em atos cognitivos. Até por dever se ofício, um juiz por exemplo, tem de fundamentar sua sentença e dar à fundamentação uma coerência. Para isso certamente faz uso de seus conhecimentos doutrinários. (FERRAZ JÚNIOR, 1988, p. 237)

A aplicação do Direito fora da moldura acontece, segundo Kelsen, quando é realizada a interpretação autêntica e o Direito individual é criado combinando ato cognoscitivo e ato de vontade no caso concreto, entretanto a norma individual produzida está fora das possibilidades apresentadas pelo ato cognoscitivo.

Para o autor o Direito aplicado fora da moldura9 não é necessariamente ilegal, haja vista que o aplicador do Direito é competente e autorizado para criar normas individuais, logo seu ato jurídico é detentor de validade, não se submetendo a mensurações inerentes ao justo ou injusto e até mesmo as possibilidades apresentadas pelo ato de cognição da norma.

Frente a pluralidade de significações pertinentes a norma jurídica e a aplicação do Direito fora da moldura, anota Fábio Ulhoa Coelho:

Aliás, como se cuida de ato de vontade, o órgão aplicador do direito pode atribuir à norma até mesmo um sentido não compreendido na moldura delineada pela ciência jurídica; pode, com efeito, interpretar a norma de modo absolutamente rejeitado pelos cientistas do direito. A interpretação autêntica não está limitada pela cognoscitiva. (COELHO, 1996, p. 63)

Para Kelsen, as possibilidades para aplicação da norma jurídica alcançadas pelo ato de cognição e colocadas à disposição do aplicador do Direito, fundamentam a ideia de que não existe prevalência entre estas. Para o autor não existe método que possa garantir através da interpretação autêntica uma única reposta correta10, sendo coerente com o princípio da pureza, pois não considera como procedimento científico definir uma aplicação legalmente correta que expurga as outras possibilidades.

Conforme o autor a questão em definir qual dentre as possibilidades que se apresentam na moldura é a correta, não é sequer uma questão de conhecimento dirigido ao Direito positivo, nem mesmo é um problema da teoria do Direito, mas um problema de política do Direito. Em relação a escolha entre as possibilidades da moldura, se posiciona Kelsen:

A teoria usual da interpretação quer fazer crer que a lei, aplicada ao caso concreto, poderia fornecer, em todas hipóteses, apenas uma única solução correta (ajustada), e que a “justeza” (correção) jurídico-positiva desta decisão é fundada na própria lei.

Só que, de um ponto de vista orientado para o Direito positivo, não há qualquer critério como base no qual uma das possibilidades inscritas na moldura do direito a aplicar possa ser preferida à outra. Não há absolutamente qualquer método – capaz de classificado como de Direito Positivo - segundo o qual, das varias significações verbais de uma norma, apenas seja destacada como “correta” - desde que, naturalmente, se trate de várias significações possíveis: possíveis no confronto de todas as outras normas da lei ou da ordem jurídica. (KELSEN, 1998, p. 391, grifo do autor)

Kelsen critica a jurisprudência tradicional em que se pregava que em uma norma jurídica apenas se permitiria uma só correta interpretação para todos os casos. O autor se posiciona adversamente enunciando que a completude do sistema é uma ficção e que através da interpretação não é possível a resposta certa e sim a resposta possível. Seguindo a coerência dessa posição, também crítica a ideia de que a determinação do ato jurídico possa ser realizada através de algum conhecimento11. Para o autor, a interpretação não se resume apenas ao esforço lógico cognitivo.

Sobre o autor
Antonio Vital de Moraes Junior

Servidor Público. Mestrando em Estudos Jurídicos com Ênfase em Direito Internacional pela Must University. Especialista em Ciências Criminais pela Universidade Federal de Pernambuco. Especialista em Metodologia do Ensino da Filosofia pela Universidade Gama Filho. Especialista em Teoria e Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Direito Público Contemporâneo pela Faculdade São Vicente. MBA em Administração e Gestão Pública pelo Centro Universitário Maurício de Nassau. Graduado em Licenciatura em Filosofia e Bacharelado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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