TEMAS ATUAIS ENVOLVENDO ANIMAIS DE ESTIMAÇAO E FAMÍLIA MULTIESPECIE.
Resumo: A doutrina e a jurisprudência têm atuado proativamente no sentido de reconhecimento de um tema atual que é o da proteção da afetividade que se estabelece entre membros humanos de uma família e os seres sencientes enquanto a legislação não evolui.
JÚLIO CÉSAR BALLERINI SILVA, ADVOGADO DO ESCRITÓRIO BALLERINI ASSOCIADOS MAGISTRADO APOSENTADO E PROFESSOR DA FAJ DO GRUPO UNIEDUK DE UNITÁ FACULDADE - COORDENADOR NACIONAL DOS CURSOS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO CIVIL E PROCESSO CIVIL, DIREITO IMOBILIÁRIO E DIREITO CONTRATUAL DA ESCOLA SUPERIOR DE DIREITO – ESD PROORDEM CAMPINAS E DA PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO MÉDICO DA VIDA MARKETING FORMAÇÃO EM SAÚDE. EMBAIXADOR DO DIREITO À SAÚDE DA AGETS – LIDE.
O Código Civil está em fase de mudanças e uma delas cria uma quarta categoria na parte geral (hoje temos das pessoas, dos bens e dos negócios jurídicos) passaremos a ter os seres sencientes (aí se inserirão os pets, sem sombra de dúvidas), já havendo, há muito tempo, uma tendência de serem assim considerados.
Pela tradição do direito civil herdada do Código Civil de 1.916 e do direito romano que muito o inspirava, os animais seriam bens semoventes, parte do patrimônio de seu titular1, o que numa visão fria, longe da concretude, foi mantida pelo Código Civil vigente que, neste aspecto, em sua forma original, ainda estava mais próximo da visão patrimonialista, com pouca atenção a aspectos como este da afetividade em torno dos “não humanos” que rodeavam as famílias (inequívoco que o Código Civil vigente foi avançado em adaptar valores de personalidade – mas não ao ponto de passar a prever este viés no trato de que animais despertariam sentimentos a serem igualmente tutelados pela ordem jurídica, na mesma medida – situações que se espera, passem pelo crivo legislativo na publicação de um novo código).
No entanto, com a evolução dos valores sociais e a dinâmica do conceito de família, que passou a ser modificada pelos costumes – admitindo proteção a famílias informais, homoafetivas, monoparentais e não conjugais e sem laços de consanguinidade (v.g. família anaparental) – observando-se uma mudança paradigmática estatisticamente relevante, detectada pela sociologia, que seria a de que um grande número de famílias com pets, muitas vezes com mais pets que filhos e até mesmo sem filhos, mas com pets.
Assim, na prática, muito antes de se cogitar de alteração legislativa ou normativa, inúmeras ações passaram a tramitar nos Tribunais, e não raro, se tem disputado a guarda de animais de estimação em ações de direito de família. Num primeiro momento, a proteção de que aqui se trata se daria no âmbito dos animais de estimação – que nos despertam a afetividade num sentido apto a merecer o status de membro da família.
Obviamente que existem animais que se destinam a atividades disciplinadas pelo agronegócio, que também não podem ser tratados como simples coisas – mas se partilham de outro modo – sem custódia ou tutor ou visitação – caso, por exemplo, de rebanhos que ainda se dividem – em casos de rupturas familiares, como bens dotados de valor econômico e que não necessariamente despertam a afetividade pelos membros da família. Nesse sentido:
TJ-MT - 10014155220188110013 MT Acórdão publicado em 18/02/2022 Ementa APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL C/C DIVÓRCIO E PARTILHA DE BENS – DIVISÃO DE SEMOVENTES –EVOLUÇÃO DO REBANHO – POSSIBILIDADE – LIQUIDAÇÃO DE SENTENÇA – PRETENSÃO DE INCLUSÃO DE IMÓVEIS RURAIS CUJA PROPRIEDADE NÃO RESTOU MINIMAMENTE COMPROVADA NOS AUTOS – INVIBILIDADE DE COMUNICAÇÃO – SENTENÇA REFORMADA EM PARTE – RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. Comprovada a união estável no período reconhecido na sentença, devem ser partilhados de forma igualitária todos os bens adquiridos a título oneroso na constância da vida em comum, pouco importando qual tenha sido a colaboração prestada individualmente pelos conviventes. Inteligência do art. 1.725 do CC . A verificação da divisão patrimonial dos semoventes deve ser apresentada pela evolução do rebanho, por se tratar de acréscimo financeiro ao patrimônio das partes, a ser apurado mediante liquidação de sentença. É inviável a partilha de bem imóvel na ação de dissolução de união estável quando ausente prova de direito sobre o bem2.
No caso dos animais de estimação, tais questões se tornaram tão frequentes, que atingiram a seriedade necessária para envolverem a propositura de proposta legislativa.
Em primeiro lugar se destaca o Projeto de Lei que tramitava pelo Senado Federal de autoria do Senador Antônio Anastasia do PSDB/MG que visava criar uma categoria diferenciada na parte geral do Código Civil (hoje temos três categorias disciplinadas: das pessoas, dos bens e dos fatos jurídicos) que inicialmente buscaria adequar nosso ordenamento ao tratamento normativo mais atual (direito europeu) e tendem a fazer com que os animais constituam uma categoria nova, diversa de coisa (bem exclusivamente patrimonial).
Pode parecer uma norma aparentemente inócua, mas não é. Ao asseverar que animais não são coisas, mas bens móveis, abre-se oportunidade para a exegese no sentido de que seriam bens diferenciados, ou seja, não mais objetos ou coisas que possam ser submetidas a quaisquer condições a que seu dono possa pretender submetê-los.
Isso pontua que estaria sendo reconhecido que animais seriam categoria diferente dentro das dos demais bens – afinal, não podem ser tratados com crueldade, em antítese à visão patrimonialista do direito civil do Estado Liberal que conferia ao jus utendi decorrente da propriedade dos demais bens inanimados, um caráter absoluto.
Vale ainda pontuar o sentido de que o meio ambiente seja voltado para a satisfação das necessidades humanas. Todavia, de forma alguma impede que ele proteja a vida em todas as suas formas, conforme determina o artigo 3º da Política Nacional do Meio Ambiente Lei n. 6.938/81.
Se a Política Nacional do Meio Ambiente protege a vida em todas as suas formas, e não é só o homem que possui vida, então todos que a possuem e podem sofrer devem ser tutelados e protegidos pelo direito ambiental, na medida em que são essenciais à sadia qualidade do Planeta, em face do que determina o artigo 225 e seus consectários CF.
Nesse sentido ainda seria relevante apontar que a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto Lei 27/2018, que confere aos animais não humanos a natureza jurídica “sui generis”, sendo sujeitos de direitos despersonificados, reconhecendo também que os animais não humanos possuem natureza biológica e emocional e são seres sencientes, passíveis de sofrimento. O projeto foi ao Senado, onde sofreu emenda e retornou à Câmara. Ainda aguarda votação em plenário.
Outro movimento legislativo que merece destaque é o Projeto de Lei 145/21 altera o Código de Processo Civil, para permitir que animais não-humanos possam ser, individualmente, parte em processos judiciais, sendo representados pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública, por associações de proteção dos animais ou por quem detenha sua tutela ou guarda. tramita na Câmara dos Deputados.
Ele destaca que a presença de animais não-humanos no polo ativo de demandas judiciais, reivindicando em juízo os seus direitos individuais, já é uma questão processual debatida em dezenas de países. No Brasil, segundo ele, esse fenômeno tem sido reconhecido pela doutrina como judicialização terciária do Direito Animal: “Exemplos como o da orangotango Sandra e o da chimpanzé Cecília na Argentina, o do urso Chucho na Colômbia, o dos chimpanzés Hiasl e Rosi na Áustria, Tommy e Kiko nos Estados Unidos, o dos chimpanzés brasileiros Suíça, Lili, Megh e Jimmy, entre tantos outros casos mundo afora, demonstram que existe uma omissão relevante em muitos ordenamentos jurídicos que dificultam a proteção individual de determinados seres vivos”3.
Malgrado ainda existam Cortes no país que continuem tratando animais de estimação como meros bens semoventes ainda4 - malgrado há quase dez anos, no ano de 2015, uma Corte no Estado Americano do Oregon tenha decidido que senão humanos podem ser vítimas de crime (corporações etc) com maior razão animais também deveriam sê-lo eis que não seriam mais meros semoventes ou bens de propriedade privada5.
Pelo Projeto, os animais seriam, assim, destacados dos bens, constituindo categoria própria, diferenciada. Mas, até aí (antes da alteração legislativa) não haveria muita novidade, afinal de contas, desde há muito se tem entendido que toda propriedade deve atender a um fim social (princípio da socialidade como antevisto por Miguel Reale).
No caso do Projeto do Senado, não se parece querer fazer voltar aos tempos do direito romano clássico, jus quiritum, como se teria o célebre caso da biga de Alfenus, em que o praetor peregrino condenou o cavalo pelo acidente de bigas, como se no Digesto de Justiniano.
Não se cuida, aqui, de se deferir a personalidade ao animal (como se tem no direito argentino o conceito de pessoa não humana – aqui haveria um tertius genus – o ser senciente – que não tem capacidade jurídica própria – mas não é um objeto que possa ser destruído ou tratado com crueldade impunemente – como se teria em relação a coisas inanimadas.
A verdadeira novidade está em outro Projeto Legislativo que tramitou perante a Câmara dos Deputados (PL 1365/15) e se convolou em lei que foi além disso. Tal diploma se destina a disciplinar a questão da guarda dos animais em caso de disputa em ações de família como, ademais, já vinha sendo autorizado pelo STJ – no início, timidamente, com fincas em situações excepcionais6 e depois admitindo até mesmo o compartilhamento de tal guarda7 - não apenas entre cônjuges e companheiros, mas mesmo entre namorados (há situações mesmo de namoro qualificado), noivos e isso certamente alcançará famílias anaparentais em breve lapso de tempo.
Hoje tramitam na Casa Legislativa inclusive, medidas para que, em casos de Violência Doméstica, o agressor não fique como tutor do animal de estimação quando da ruptura.
Além de não serem mais bens, ao menos os animais de estimação estariam sujeitos à guarda e seus responsáveis são ditos tutores (até então prerrogativa de filhos menores – erra o legislador ao atribuir o nome de guarda ao instituto dos animais de estimação)8.
O conceito de familia multiespecie (humanos e outros nem tão ou talvez mais humanos) já vem sendo reconhecido para que o Estado pague tratamentos veterinários para animais que despertam em seus donos sentimentos de afetividade. Isso ganhará relevo num ambiente de novo Código Civil que está na linha de prestígio de conceito de admitir as sunset clauses (correntes na Common Law com ampla liberdade no que diz respeito ao modo de organizar uma família) se falando em famílias não conjugais que englobarão também os pets (alguns pretendem ir além - plantas, inteligência artificial e por aí vai - porque não manter um relacionamento sério com a Siri ou com a Alexa ?- em sede de afeto a tendência é admitir novas formas de arranjos – a Revista Galileu fez reportagem que relatam pessoas que se dizem em relacionamento sério com plantas – E por que não ?)
Em tese as pessoas devem ter liberdade no direcionamento de seus afetos e interesses pessoais – desde que não se vise fraudar a lei e usar essas situações como subterfúgios para lesarem a outrem (vale aqui observar que atos que fraudam normas imperativas se tem como absolutamente nulos – artigo 166, inciso VII CC – enquanto não se quiser casar com uma espada de São Jorge para esconder patrimônio partilhável ou blindagens indevidas aparentemente não haveria como se querer impedir a busca da felicidade pessoal que não viole direitos de outrem).
Nas relações familiares os pets já encontraram seu espaço, não são mais tratados com bens móveis sujeitos à partilha - ensejam tutores (não há mais a custódia latina mas a ideia de tutela própria dos menores de idade no ordenamento), ensejam direito de visitas - não se pode impedir de ingressarem em vôos se forem para fins terapêuticos e certamente não parará por aí (há caso nos Tribunais em que uma clínica entrou com pedido em nome de um shitzu vítima de maus tratos - haveria aí a ideia de criação de um custus animalis ? - Advogados podem aí descobrir novos nichos.
Há de ficar claro que se isso se tem dado, não porque estejamos concedendo algum privilégio ao animal de estimação, mas ao revés, estamos protegendo a afetividade que se agrega à personalidade de seu dono - e o texto constitucional, como sabemos, tutela a afetividade como valor do Estado Democrático de Direito - essa, aliás, a base do reconhecimento das uniões estáveis, anaparentais, homoafetivas, parentesco socioafetivo, etc. Então, por que não estabelecer o mesmo critério em relação aos animais de estimação?
Ter um animal de estimação é ato de grande responsabilidade – além deles terem sensibilidade aguçada, seus proprietários e demais membros da comunidade desenvolvem por eles laços de afetividade, o que justifica que o ordenamento jurídico passe a tutelar de modo mais efetivo a integridade dos animais e demais objeto de afeto.
Não se perca de vistas que não se cuida mais de uma questão jurídica sobre propriedade de um animal da família (o que não se confunde com os rebanhos, por exemplo, como se pontuou acima) – não há mais espaço para a ideia de se ter o animal apenas como bem semovente – tanto que, de modo mais ou menos uniforme se tem definido que a competência para tais discussões seria a das Varas de Família. Sobre o tema (e ainda se valendo do termo custódia – sobre o que se ponderou acima):
TJ-MG - Conflito de Competência 27112597420238130000 Acórdão publicado em 19/03/2024 Ementa: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA - AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO - ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO - FAMÍLIA MULTIESPÉCIE - COMPETÊNCIA DO JUÍZO DE FAMÍLIA - CONFLITO ACOLHIDO, PARA DAR PELA COMPETÊNCIA DO JUÍZO SUSCITADO. A ação destinada a determinar a custódia de animal de estimação é de competência do juízo da Família
Tais propostas legislativas que passaram a dar contornos claros a esse tipo de questão, cada vez mais frequente em demandas judiciais, não obstante o termo guarda revele falha de técnica legislativa a questão tem mesmo que ser disciplinada por lei, facilitando a vida dos donos em caso de dissolução de uma entidade familiar, mormente quando há filhos pequenos que agregam afeto ao seu pet.
Insisto, no entanto, num ponto que parece estar passando despercebido: O Juiz deve estar atento ao fato de deva existir evidência de afetividade do dono em relação ao animal. E isso porque não se pode admitir que a “guarda” do animal seja disputada por conta de abusos no direito de demandar. E atos abusivos (emulativos) são atos ilícitos (artigo 187 CC). É a teoria dos atos próprios.
Não raro a pessoa, numa situação de ruptura de relacionamento, movida por sentimentos como mágoa, tenda a buscar a guarda do animal apenas no intuito de atormentar a outra parte. Isso, inclusive, pode levar a situações aflitivas e angustiantes que possam gerar danos morais. Seria interessante que o legislador já cuidasse também desse tipo de questão, pacificando eventuais dissensos que a jurisprudência possa ter em relação a esse tipo de questão.
Por ora, se tem tido notícias de que juízes tem levado tais dados a perícia por equipe multidisciplinar. Isso porque, como igualmente sabido, a questão da culpa na ruptura do vínculo matrimonial se torna questão com reflexos cada vez menores no âmbito das relações familiares.
Mas ainda assim existe a corrente que defende como possível a imposição de indenizações por danos morais em caso de violação a deveres próprios da união familiar - autores como Maria Berenice Dias (Manual das Famílias), inclusive, defendem a ideia de acordo com a qual cada pessoa tenha uma função social dentro de uma união familiar, com um papel a se desempenhar, cuja ruptura possa gerar consequências jurídicas.
Assim, abusos de direito (todo ato em abuso de direito é ilícito por expressa previsão legal – artigo 187 CC – em regime de apuração de responsabilidade civil objetiva – Enunciado 37 das Jornadas de Direito Civil) na hora de disciplinar com quem ficará o animal de estimação e como será eventual visitação, se for o caso, podem levar à caracterização de situações vulneradoras de direitos de personalidade, viabilizando até mesmo, indenizações se for o caso.
Tudo isso em tempos atuais deve ser analisado em julgamentos sob perspectiva de gênero, como vem sendo pontuado pelo Conselho Nacional de Justiça (em análise combinada, por exemplo, com as Jornadas da Lei Maria da Penha promovidas pelo STJ) inclusive.
Mais ainda existe para se refletir eis que existem pessoas vulneráveis no bojo de quaisquer relações, como por exemplo, pessoas idosas e pessoas com deficiências de quaisquer tipo – malgrado em casos de deficiência mental ou sensorial isso faça um sentido maior (não obstante agora sejam capazes ainda tem tutela jurídica diferenciada) sendo certo que seria razoável reconhecer que, entre um idoso e um não idoso, aquele tenha preferência para ficar com o animal - o risco de entrar em depressão, por exemplo, seria maior - justificativa para fator de discrimen legal (Celso Antônio Bandeira de Mello). O legislador poderia aproveitar a propícia oportunidade para disciplinar todos esses tipos de polêmicas. Fica a dica.
O tema pode até parecer banal, mas as implicações que dele se extraem podem ser graves, aliás, o universo daquele que visa prestar concurso público, deve-se estar preparado para tudo, já que, hoje, tudo se normatiza, autores como Edgar Morin tem discutido o desafio da complexidade enquanto novo paradigma a ser observado (tudo se relaciona em termos globais o que leva à interpenetração de campos e interdisciplinariedade, fazendo surgir a necessidade de que tudo seja disciplinado pelas normas jurídicas – a complexidade seria um conceito marginal que veio, pouco a pouco, ganhando espaço em discussões científicas).
Mas neste ambiente de complexidade, não se pode deixar correr à latere a discussão a respeito da existência de aspectos não patrimoniais envolvendo o tema proposto, eis que a par dessa patrimonialidade se agrega à questão, o aspecto da afetividade que se agrega, aos animais em geral, mormente aqueles ditos de estimação.
Estatisticamente há um número cada vez maior de pessoas que opta por adotar um animal ao invés de ter filhos, animais de estimação são objeto de afeição de crianças, adultos e idosos, muitas vezes sendo utilizados para o tratamento de doenças com o mal de Alzheimer, na diversidade devemos respeitar até mesmo convicções filosóficas daqueles que, por razões religiosas, por exemplo, comunidade Kardecista ou filosóficas como os veganos e vegetarianos devem ser tidas em conta em questões deste jaez – afinal, desde tempos imemoriáveis, antes mesmo do surgimento da escrita, animais integram o ideário da família do homo sapiens.
E, afinal de contas, desde há muito, tem-se entendido que o direito civil deve ser repersonalizado (decorrência da constitucionalização do direito civil) toda propriedade deve atender a um fim social (princípio da socialidade. Antevê-se, aí, a gênese de uma função social da propriedade do animal de estimação (revela-se que há interesses sociais relevantes que devem ser tomados em consideração ao se avaliar o tratamento que possa ser conferido a um animal).
Em nome dos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade social, valores de nossa ordem constitucional, de se proteger a afetividade que as pessoas agregam aos animais (valores humanos) diretrizes contra os maus tratos. Até então nos resumíamos, nos estudos universitários, ao exame da Lei das Contravencoes Penais, no que tange à vedação de crueldade contra animais.
Mas o fato é que a questão é cada vez mais complexa. Há resoluções do Conselho Federal de Medicina Veterinária que tem trazido normatização aos cuidados mínimos que se deva ter em relação a qualquer animal (a par de ser uma questão de saúde pública, observa-se a preocupação com condições dignas de tratamento a ser reservado aos mesmos). Em vários Municípios e Estados da Federação tem se constatado iniciativas legislativas que cuidam da questão do tratamento mínimo a ser conferido a animais, inclusive os de estimação (há detalhes como espaço mínimo para criação e manutenção de animais, vedação de situações como falta de comida ou água e vedação de mantença de animais em presença de elementos ambientais que possam prejudicá-los – falta de aeração, luminosidade, alimentação, água etc.).
Quanto aos animais silvestres, diga-se, apenas en passant eis que este não é o objetivo do presente artigo, não se esqueça de inúmeras restrições penais no que tange à caça ou cativeiro dos mesmos, sem prejuízo de aplicação de multas administrativas (pelo IBAMA).
Vale lembrar, em decisão do TJ-GO – Ap. 104598-27.2012.8.09.0044, uma mulher foi condenada a pagar danos morais coletivos por ter espancado um cão até à morte, sem prejuízo de sua condenação pela contravenção penal (como cediço, em regra geral – artigo 955 CC – a responsabilidade civil é independente da responsabilidade penal).
Muito há que ser discutido ainda – há muitas questões que dividem a população – como dito animais não detém personalidade, mas seriam um quarto gênero (seres sencientes) na teoria geral do direito civil - mas observe-se, por exemplo, discussões culturais em torno do tema: Animais podem abatidos para fins de consumo? Em fatores culturais os orientais têm hábitos culinários que envolvem cachorros. Como resolver a tudo isso?
Há que se falar em jornada mínima para animais de trabalho (por exemplo, animais de carga, cães guia, animais terapêuticos, cães farejadores etc)? Quem deteria legitimidade para a fiscalização e defesa desses interesses? Haveria legitimidade em encarcerar quem abusa de um animal para lançá-lo num ambiente carcerário cruel e sem o mínimo de condições de dignidade? O uso de penalidades administrativas e danos morais coletivos seria suficiente?
Não se anteveem propostas legislativas para a solução destes dilemas a curto prazo – mas certamente a jurisprudência já começará a trilhar na solução desses desafios. Testamentos poderão (já se tem notícias de alguns firmados e em cumprimento) disciplinar sobre o encargo de cuidar de um animal em caso de falecimento do dono e até mesmo impondo encargos para tais tutores, estabelecimento de rendas para tal finalidade, critérios com cuidado etc.
Seria conveniente apontar outros aspectos sobre os quais o legislador deva se manifestar evitando discussões em Tribunais, eis que, por exemplo, existem animais de estimação de alto valor patrimonial (como se observa em consulta a sites de gatis e canis do país há animais que custam o equivalente a veículos), o que resta como aspecto patrimonial para efeito de partilha (o que talvez não aflija os proprietários dos conhecidos animais SRD – sem raça definida – vulgarmente “vira-latas”, o que não afasta o valor agregado pelo afeto).
Novamente, aqui, seria conveniente analisar questões como avaliar a boa ou má-fé daquele que induza ou não o outro a um gasto de grande magnitude por exemplo, já pensando em se separar.
Vale ainda apontar no sentido de que, se ambos tiverem afetividade pelo animal e se a lei estabelece direito de visitas, pela perspectiva da simples incidência do vetusto brocardo ubi commoda ibi incommoda – que em tradução literal e livre implica na ideia de acordo com a qual quem aufere as vantagens deve se encarregar dos ônus de determinada situação – não se podem esquecer as despesas de manutenção de um animal de estimação (veterinário, vacinas, ração, banho e tosa etc.).
Não se trata, obviamente da busca de alimentos para o pet, eis que alimentos, em termos técnicos são reconhecidamente um conceito humano que se fixa em torno de um regime jurídico gravoso (como por exemplo na exceção de garantias constitucionais como a de não ser preso por dívidas – com regramento para além da Constituição Federal – ou supraconstitucional tal como se observa por prelados do Pacto de San Jose).
Nesse sentido, inclusive o STJ no julgamento do REsp 1.944.228, em julgamento da Terceira Turma abordou o tema ao analisar controvérsia sobre a divisão de despesas com os animais de estimação após o fim do relacionamento de um casal em caso em que, o Tribunal de origem (TJSP) reconheceu haver enriquecimento sem causa se na separação apenas um dos donos tiver que arcar com tais despesas.
No voto que foi acompanhado pela maioria do colegiado, o ministro Marco Aurélio Bellizze considerou ser necessário compatibilizar as regras sobre o regime de bens da união estável com a natureza particular dos animais de estimação, "concebidos que são como seres dotados de sensibilidade". Para ele, com base na atual legislação sobre o tema, não seria possível falar no custeio das despesas com os animais no contexto do instituto da pensão alimentícia – típico das relações de filiação e, portanto, regido pelo direito de família.
Segundo Bellizze, as despesas com o custeio da subsistência dos animais são obrigações inerentes à condição de dono, ainda mais relevantes no caso dos bichos de estimação, que dependem totalmente dos cuidados de seus donos. Essa característica, apontou, torna fundamental analisar como as partes definiram o destino dos animais ao término da relação.
"Se, em virtude do fim da união, as partes, ainda que verbalmente ou até implicitamente, convencionarem, de comum acordo, que o animal de estimação ficará com um deles, este passará a ser seu único dono, que terá o bônus – e a alegria, digo eu – de desfrutar de sua companhia, arcando, por outro lado, sozinho, com as correlatas despesas" – em solução que, ao que parece não admite a responsabilização automática pelas despesas sob o pálio da vedação de enriquecimento sem causa9.
Acresço aí, no entanto, que há que se ponderar o modo como, de modo continuado, o casal fazia isso – nem que seja para que se apliquem cláusulas como as da surrectio e suppresio, vedação de comportamentos contraditórios e tu quoque – dentro da ideia de função social, bem como que os pets dependam inteiramente seus donos para subsistirem. Acresço ainda no sentido de que assoberbar apenas um para que fique sem condições de cuidar do animal poderia gerar discussão em torno da ideia de solidariedade constitucional levando um, por exemplo, a um gueto de marginalização e exclusão social (em contrariedade com a orientação do artigo 3º e consectários CF).
Malgrado acenda a discussão em torno da constitucionalidade o fato de haver julgados do Superior Tribunal de Justiça que constitucionalizam a questão do animal de estimação a luz da proteção ao meio ambiente prevista no artigo 225 e consectários CF10.
Pelo óbvio que animais geram despesas perenes por longos anos, cujos proprietários devam estar convenientemente alertados e que devem orientar uma decisão responsável como a de ter um animal de estimação em casa – mas a partilha de despesas de seres sencientes não parece autorizar a flexibilização de garantias constitucionais – o que pareceria demandar análise em uma emenda constitucional ante todo o exposto.
E muitas outras questões podem ser antevistas ai e já poderiam ser resolvidas – não raro se discutem exigências de preenchimentos de dados cadastrais (alguns falam em RGA – registro geral de animal) para efeitos de vigilância e controle (o que não pode, obviamente, ser convertido, de modo oportunista numa fábrica de taxas para abastecer os cofres públicos – de modo a elitizar inconstitucionalmente a posse de animais de estimação).
Conveniente que o legislador passe a uma análise mais completa destas questões isso por que, rememorando-se: O conceito de família multiespecie (humanos e outros nem tão ou talvez mais humanos) já vem sendo reconhecido para que o Estado pague tratamentos veterinários para animais que despertam em seus donos sentimentos de afetividade.
Isso ganhará relevo num ambiente de novo Código Civil que está na linha de prestígio de conceito de admitir as sunset clauses (correntes na Common Law com ampla liberdade no que diz respeito ao modo de organizar uma família) se falando em famílias não conjugais que englobarão também os pets (alguns pretendem ir além - plantas, inteligência artificial e por aí vai).
Como também dito, não há mais a custódia latina, mas a ideia de tutela própria dos menores de idade no ordenamento, ensejam direito de visitas - não se pode impedir de ingressarem em vôos se forem para fins terapêuticos11 e certamente não parará por aí12.