A cor púrpura no Brasil: a violação dos direitos humanos das mulheres negras e pardas e as heranças de opressão

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14/10/2024 às 18:01
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Resumo

Este artigo explora as múltiplas formas de violação dos direitos humanos das mulheres negras e pardas no Brasil, considerando o entrelaçamento entre racismo, sexismo e a histórica marginalização dessa população. A partir de uma análise interseccional, fundamentada em teóricas contemporâneas como Kimberlé Crenshaw, Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro, investiga-se a exclusão dessas mulheres em diversos âmbitos, com ênfase em questões como violência de gênero, racismo estrutural e barreiras no acesso à saúde e à justiça. O estudo também analisa os limites das políticas públicas atuais e sugere a necessidade de reformas profundas nas estruturas sociais e jurídicas para garantir efetivamente os direitos dessas mulheres. A metodologia aplicada baseia-se na pesquisa bibliográfica e documental, com enfoque em dados recentes de órgãos como o IBGE, IPEA e Ministério da Justiça.

Palavras-chave: Direitos Humanos, Mulheres Negras, Racismo, Interseccionalidade, Políticas Públicas, Violência de Gênero.


1. Introdução

A Constituição Federal de 1988 consagra a igualdade de todos perante a lei, assegurando direitos fundamentais sem distinção de qualquer natureza (BRASIL, 1988). No entanto, essa promessa constitucional de igualdade formal contrasta com a dura realidade vivida pelas mulheres negras e pardas no Brasil. Esse grupo, historicamente marginalizado, enfrenta não apenas as consequências do racismo estrutural, mas também as mazelas do sexismo, resultando em um conjunto complexo de opressões que afetam negativamente seu acesso aos direitos humanos mais básicos.

Este artigo tem como objetivo explorar as violações sistemáticas dos direitos humanos sofridas por mulheres negras e pardas no Brasil. Para tanto, adota-se uma perspectiva interseccional, conforme elaborada pela teórica Kimberlé Crenshaw (1989), que permite compreender como raça, gênero e classe social interagem para produzir formas de subordinação múltiplas e entrelaçadas. A interseccionalidade torna-se essencial para a análise da situação dessas mulheres, uma vez que suas experiências não podem ser adequadamente entendidas se os fatores de raça e gênero forem tratados de forma isolada.

A pesquisa que se segue está embasada em um estudo teórico e documental, com a utilização de fontes jurídicas, como a legislação brasileira e tratados internacionais de direitos humanos, bem como dados estatísticos atualizados que revelam a disparidade racial e de gênero no Brasil. Esse enfoque não se limita a uma revisão bibliográfica, mas visa contribuir para o avanço da doutrina jurídica e para o desenvolvimento de estratégias legais e políticas públicas mais eficazes na proteção dos direitos das mulheres negras e pardas.


2.1 Introdução ao Racismo Estrutural e Violência de Gênero no Contexto Brasileiro

O conceito de racismo estrutural, como amplamente discutido por Silvio Almeida (2019), ajuda a esclarecer o funcionamento de um sistema de opressão racial que vai além de manifestações individuais de preconceito. Esse tipo de racismo está presente nas instituições sociais, políticas e econômicas que organizam a sociedade brasileira e promovem a exclusão sistemática de grupos racializados, em particular das mulheres negras. Segundo Almeida, "o racismo estrutural é aquele que está enraizado nas engrenagens da sociedade, nas formas de pensar e de agir, e é mantido e reproduzido pelas instituições e pela prática cotidiana" (ALMEIDA, 2019, p. 25). Para as mulheres negras e pardas, essa forma de racismo é ainda mais devastadora, pois está intimamente conectada à violência de gênero, formando uma rede de opressões interligadas.

Ao examinarmos a situação das mulheres negras e pardas no Brasil sob a ótica da interseccionalidade — conceito desenvolvido por Kimberlé Crenshaw (1989) —, percebemos que a combinação de raça e gênero potencializa as formas de opressão que estas mulheres enfrentam. A interseccionalidade demonstra como as opressões não atuam de maneira isolada, mas de forma entrelaçada, criando um ambiente de vulnerabilidade que coloca as mulheres negras em desvantagem tanto em termos de oportunidades econômicas quanto de acesso à justiça e à proteção social. A interseccionalidade é, assim, crucial para entender como as mulheres negras no Brasil sofrem formas agravadas de violência e exclusão em comparação a outros grupos, inclusive outras mulheres.

O racismo estrutural no Brasil, aliado à violência de gênero, estabelece um ciclo de violação dos direitos humanos dessas mulheres, que se manifesta em múltiplos níveis — da violência física à violência simbólica e psicológica, passando pela exclusão econômica e social. De acordo com dados recentes, fornecidos pelo Atlas da Violência 2022 (IPEA, 2022), a taxa de homicídios de mulheres negras continua significativamente superior à de mulheres brancas. Em 2021, 68,7% das mulheres assassinadas no Brasil eram negras (IPEA, 2022). Esses números evidenciam que o racismo, combinado com o sexismo, configura um sistema de opressão que coloca as mulheres negras em uma situação de maior vulnerabilidade em todos os aspectos da vida social e privada.

2.2 A Violência de Gênero e a Vulnerabilidade Racial: Intersecções que Potencializam Opressões

O conceito de violência de gênero abrange uma gama de práticas que vão desde a violência física e psicológica até a violência sexual e a violência institucional. No Brasil, as mulheres negras são desproporcionalmente impactadas por todas essas formas de violência, um reflexo da histórica marginalização racial e da persistência de uma cultura patriarcal que subordina as mulheres, especialmente aquelas pertencentes a minorias étnicas.

De acordo com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022, as mulheres negras são as maiores vítimas de violência doméstica e feminicídio no país. Em 2021, aproximadamente 61% dos casos de feminicídio envolviam mulheres negras (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2022). Esses números são representativos da realidade brasileira, onde as mulheres negras estão mais expostas à violência física e à letalidade, e menos protegidas pelo sistema de justiça, o que se traduz em uma violação sistemática dos direitos humanos.

Além disso, o estigma racial agrava ainda mais a situação de vulnerabilidade dessas mulheres. A socióloga brasileira Lélia Gonzalez (1984) argumenta que a sociedade brasileira atribui às mulheres negras papéis subalternos, perpetuando imagens estereotipadas e desumanizantes que reforçam sua exclusão. Segundo Gonzalez, "o racismo e o sexismo no Brasil combinam-se para colocar a mulher negra em uma posição de extrema vulnerabilidade, tanto na esfera pública quanto na esfera privada" (GONZALEZ, 1984, p. 83).

Esse processo de estigmatização também se reflete no mercado de trabalho, onde as mulheres negras e pardas são frequentemente relegadas a empregos precarizados e mal remunerados. De acordo com dados do IBGE (2022), as mulheres negras ganham, em média, 44% do salário de um homem branco no Brasil. Essa desigualdade salarial se agrava pela falta de políticas públicas que promovam a inclusão efetiva dessas mulheres no mercado de trabalho, perpetuando um ciclo de pobreza que aumenta sua exposição à violência e à vulnerabilidade social.

2.3 Racismo Institucional e a Falta de Acesso à Justiça

O racismo institucional é uma das formas mais perniciosas de exclusão enfrentadas pelas mulheres negras no Brasil. Esse conceito refere-se à maneira como as instituições do Estado, incluindo o sistema judiciário e as forças de segurança pública, reproduzem e legitimam práticas discriminatórias que afetam negativamente os grupos racializados. No caso das mulheres negras, o racismo institucional se manifesta em uma série de práticas, desde a falta de proteção policial até a dificuldade de acesso a serviços de saúde e justiça.

Um estudo publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2021) revela que as mulheres negras têm menos probabilidade de denunciar crimes de violência doméstica, em grande parte devido à falta de confiança nas instituições policiais e judiciais. Isso se deve ao fato de que, historicamente, essas instituições têm demonstrado um tratamento diferenciado e discriminatório em relação às mulheres negras. Muitas vezes, essas mulheres enfrentam descrença ou desvalorização de seus relatos quando buscam proteção ou assistência legal. Essa descrença é fruto de uma estrutura racista que não apenas desumaniza as mulheres negras, mas também legitima a violência contra elas como algo "naturalizado".

As falhas do sistema de justiça também são evidenciadas na forma como o encarceramento em massa afeta as mulheres negras. Dados do Infopen Mulheres (2021), um relatório do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), apontam que a maioria das mulheres encarceradas no Brasil são negras, representando cerca de 62% da população prisional feminina. Muitas dessas mulheres são presas por crimes de baixo impacto, como tráfico de drogas, e raramente têm acesso a uma defesa legal adequada. Isso demonstra que o racismo institucional não apenas falha em proteger as mulheres negras, mas também as coloca em risco adicional de criminalização e encarceramento.

Angela Davis (2016) afirma que o encarceramento de mulheres negras é uma extensão das formas históricas de controle social impostas à população negra desde o período colonial. Para ela, "a prisão se tornou a nova forma de manter o controle sobre as mulheres negras, da mesma forma que o patriarcado e o racismo as controlaram no passado" (DAVIS, 2016, p. 123). Essa perspectiva é corroborada por estudiosas brasileiras como Sueli Carneiro, que aponta que o Estado brasileiro historicamente tem sido um dos principais agentes de violência contra as mulheres negras, seja pela omissão ou pela ação repressiva.

2.4 Violência Reprodutiva e Desigualdades na Saúde Pública

Um dos aspectos mais cruéis da violação dos direitos das mulheres negras e pardas no Brasil é a violência reprodutiva, que se manifesta na falta de acesso a serviços de saúde de qualidade e no tratamento desumanizante recebido por essas mulheres nos hospitais e centros de saúde. De acordo com o Relatório sobre Racismo Institucional na Saúde (Ministério da Saúde, 2021), as mulheres negras são as maiores vítimas de mortalidade materna no Brasil, com uma taxa de mortalidade que é quase três vezes maior do que a de mulheres brancas.

O racismo na saúde pública se manifesta não apenas na falta de acesso a cuidados médicos, mas também no tratamento desigual durante o parto e o pré-natal. Pesquisas indicam que as mulheres negras são mais propensas a sofrer violência obstétrica, que pode incluir o desrespeito, a recusa de anestesia ou a realização de procedimentos médicos sem consentimento. Esse tipo de violência é mais uma forma de racismo institucional, que não reconhece as mulheres negras como sujeitos plenos de direitos e dignos de tratamento humano.

A antropóloga brasileira Rosana Heringer (2003) afirma que "a violência reprodutiva contra as mulheres negras é uma manifestação da naturalização do racismo nas instituições de saúde, que tratam essas mulheres como inferiores e menos dignas de cuidados" (HERINGER, 2003, p. 45). Essa discriminação no sistema de saúde é uma violação direta dos direitos reprodutivos, que são garantidos por tratados internacionais de direitos humanos, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), ratificada pelo Brasil.

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2.5 Impactos da Exclusão Econômica e Social: A Perpetuação da Pobreza e Vulnerabilidade

O impacto do racismo estrutural e da violência de gênero não se limita ao âmbito privado; ele também perpetua a exclusão econômica e social das mulheres negras e pardas. De acordo com o IBGE (2022), as mulheres negras são as que mais sofrem com o desemprego e o subemprego no Brasil, o que as coloca em uma posição de extrema vulnerabilidade econômica. Isso é agravado pela falta de políticas públicas que promovam a inclusão social e econômica dessas mulheres, perpetuando um ciclo de pobreza que afeta gerações inteiras.

A socióloga Djamila Ribeiro (2019) argumenta que "a desigualdade econômica que afeta as mulheres negras é uma consequência direta da forma como o racismo e o sexismo se entrelaçam nas estruturas sociais e econômicas do Brasil" (RIBEIRO, 2019, p. 89). Ribeiro defende que a única forma de romper esse ciclo de pobreza é por meio de políticas interseccionais que considerem as necessidades específicas das mulheres negras e pardas, promovendo não apenas a igualdade formal, mas a justiça substancial.


Capítulo III: O Limite das Políticas Públicas e a Necessidade de Reformas Estruturais para a Proteção dos Direitos das Mulheres Negras e Pardas no Brasil

3.1 Introdução: A Importância de Políticas Públicas Interseccionais

No Brasil, as políticas públicas voltadas para a promoção dos direitos das mulheres e a eliminação das desigualdades raciais e de gênero têm se mostrado insuficientes, especialmente quando analisadas a partir da perspectiva das mulheres negras e pardas. Apesar de avanços significativos na legislação e na implementação de programas sociais, o impacto dessas medidas sobre a população feminina negra é limitado devido à falta de uma abordagem interseccional, que considere as particularidades de raça, gênero e classe. Este capítulo analisa os limites dessas políticas, destacando a necessidade de reformas estruturais e a adoção de políticas interseccionais para a efetiva proteção dos direitos humanos das mulheres negras e pardas.

A ausência de uma abordagem interseccional nas políticas públicas brasileiras resulta na perpetuação de desigualdades que afetam desproporcionalmente as mulheres negras. Conforme argumenta Kimberlé Crenshaw (1989), a interseccionalidade é uma ferramenta essencial para compreender como diferentes sistemas de opressão — como o racismo e o sexismo — interagem para criar experiências únicas de discriminação. No caso das mulheres negras, essas experiências são agravadas pela forma como as políticas públicas têm sido desenhadas de maneira fragmentada, incapazes de enfrentar as estruturas de exclusão que atravessam tanto o campo social quanto o econômico.

Neste capítulo, serão discutidas as falhas das principais políticas públicas e os desafios que elas enfrentam, como a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), a Lei de Cotas (Lei 12.711/2012) e programas de inclusão social. A partir da análise desses exemplos, argumenta-se que, sem reformas profundas nas estruturas institucionais e no desenho das políticas, o Brasil continuará a falhar na promoção dos direitos das mulheres negras, perpetuando, assim, a exclusão e a violação de seus direitos humanos.

3.2 A Lei Maria da Penha e suas Limitações para as Mulheres Negras

A Lei Maria da Penha, sancionada em 2006, é um marco no combate à violência doméstica no Brasil, tendo sido reconhecida internacionalmente por sua abrangência e eficácia potencial. A lei estabelece mecanismos importantes para proteger as mulheres vítimas de violência doméstica e punir seus agressores, oferecendo medidas protetivas de urgência e prevendo a criação de juizados especiais para lidar com os casos de violência doméstica e familiar. Contudo, mesmo sendo considerada um avanço importante, sua implementação tem se mostrado insuficiente para as mulheres negras, que continuam a enfrentar barreiras institucionais e sociais no acesso à justiça.

Estudos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2022) indicam que as mulheres negras são as maiores vítimas de feminicídio no Brasil, representando mais de 60% dos casos de violência letal contra mulheres. Entretanto, paradoxalmente, são também as que menos acessam os mecanismos de proteção previstos pela Lei Maria da Penha. Essa discrepância reflete uma falha estrutural na forma como a lei é implementada, já que o racismo institucional nas forças de segurança e no sistema de justiça limita o acesso dessas mulheres aos recursos que poderiam protegê-las da violência.

Sueli Carneiro (2003), uma das maiores pensadoras sobre feminismo negro no Brasil, argumenta que a Lei Maria da Penha não reconhece plenamente as especificidades da violência que atinge as mulheres negras, pois ignora as camadas de opressão racial e de classe que agravam suas situações de vulnerabilidade. Para Carneiro, a proteção contra a violência de gênero, tal como prevista na lei, não aborda adequadamente o impacto do racismo estrutural, que marginaliza essas mulheres e impede que elas busquem proteção de maneira eficaz: “A mulher negra vive uma situação de dupla marginalização, que muitas vezes não é reconhecida pelos sistemas de proteção estatais” (CARNEIRO, 2003, p. 85).

A ausência de uma abordagem interseccional na aplicação da Lei Maria da Penha também se reflete no tratamento desigual dado às vítimas negras pela polícia e pelo judiciário. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022, muitas mulheres negras que tentam denunciar agressões relatam descrença por parte das autoridades policiais, que tendem a desvalorizar suas queixas ou retardar o encaminhamento de medidas protetivas. Esse problema é uma manifestação clara do racismo institucional, que afeta a eficácia da lei e coloca as mulheres negras em risco adicional de violência.

Além disso, o acesso geográfico e econômico às redes de proteção previstas pela Lei Maria da Penha é outro obstáculo para as mulheres negras, especialmente aquelas que vivem em áreas periféricas e rurais. A falta de infraestrutura adequada e de serviços especializados nesses locais dificulta a obtenção de ajuda, perpetuando a situação de vulnerabilidade dessas mulheres. Pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2022) mostram que as mulheres negras são as que mais residem em regiões marginalizadas e, consequentemente, têm menos acesso a serviços essenciais, como delegacias da mulher e centros de acolhimento.

Esses fatores demonstram que, apesar de seus méritos, a Lei Maria da Penha ainda não oferece uma proteção eficaz e equitativa para as mulheres negras. Sem uma reforma que considere as desigualdades estruturais de raça e classe, a violência contra essas mulheres continuará a ser negligenciada.

3.3 A Lei de Cotas e os Desafios da Inclusão Racial no Ensino Superior

Outro exemplo de uma política pública importante, mas limitada em sua capacidade de transformar a realidade das mulheres negras, é a Lei de Cotas (Lei 12.711/2012). A lei prevê a reserva de vagas em instituições federais de ensino superior para estudantes oriundos de escolas públicas, de baixa renda, negros, pardos e indígenas. Desde a sua promulgação, a Lei de Cotas tem sido fundamental para o aumento do número de estudantes negros nas universidades brasileiras. Segundo o Censo da Educação Superior de 2021, o número de estudantes negros matriculados em instituições de ensino superior públicas dobrou na última década (INEP, 2021).

No entanto, quando se observa a inserção das mulheres negras no contexto universitário, percebe-se que os desafios vão além do acesso à educação superior. Embora a Lei de Cotas tenha proporcionado maior inclusão, as mulheres negras ainda enfrentam dificuldades para permanecer e concluir seus estudos, muitas vezes devido à precariedade das condições econômicas e à falta de apoio acadêmico e psicológico nas universidades. Além disso, a discriminação racial e de gênero continua presente no ambiente acadêmico, o que impede essas estudantes de se sentirem plenamente integradas e seguras.

A filósofa e ativista Djamila Ribeiro (2019) argumenta que, para que a Lei de Cotas seja verdadeiramente eficaz, é necessário que ela seja acompanhada de políticas de permanência que garantam o sucesso acadêmico dos cotistas. "A permanência é tão importante quanto o acesso", afirma Ribeiro, destacando que as mulheres negras, em particular, precisam de suporte financeiro, psicológico e pedagógico para superar as barreiras estruturais que enfrentam (RIBEIRO, 2019, p. 92). Sem essas políticas complementares, a Lei de Cotas corre o risco de se tornar uma solução incompleta para a desigualdade racial no ensino superior.

Além disso, a inserção no mercado de trabalho após a graduação permanece um desafio para as mulheres negras, que continuam a enfrentar discriminação racial e de gênero. Segundo dados do IBGE (2022), mesmo após a conclusão do ensino superior, as mulheres negras têm menos chances de obter empregos formais e estão entre as mais afetadas pelo desemprego e subemprego. Isso demonstra que a Lei de Cotas, embora importante, não resolve por si só os problemas de desigualdade racial e de gênero, sendo necessário um esforço contínuo para combater o racismo estrutural no mercado de trabalho e promover oportunidades de inclusão social e econômica.

3.4 Políticas de Inclusão Social e os Limites do Assistencialismo

Outro aspecto importante a ser analisado são as políticas de inclusão social voltadas para a população negra e parda. No Brasil, programas como o Bolsa Família, agora substituído pelo Auxílio Brasil, desempenham um papel crucial na redução da pobreza e da desigualdade social. No entanto, esses programas, embora essenciais, não são suficientes para combater as estruturas de opressão que perpetuam a exclusão das mulheres negras.

Sabe-se que a maioria dos beneficiários desses programas são mulheres, muitas delas negras e chefes de família, o que evidencia a importância dessas iniciativas na garantia de um mínimo de subsistência. De acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2021), mais de 68% dos lares chefiados por mulheres negras dependem de programas de transferência de renda. Apesar disso, a dependência de programas assistenciais não resolve as desigualdades estruturais e, muitas vezes, reforça a precariedade dessas mulheres ao não oferecer mecanismos de inserção sustentável no mercado de trabalho formal e de superação da pobreza.

Estudos em políticas públicas, como os de Heloísa Buarque de Almeida (2017), indicam que o assistencialismo, sem o devido suporte de políticas de desenvolvimento econômico e educação, perpetua a dependência e não cria condições para que essas mulheres superem o ciclo da pobreza. "As políticas assistenciais são paliativas e, muitas vezes, servem para maquiar a desigualdade, sem atacar diretamente suas causas estruturais" (ALMEIDA, 2017, p. 77). Para enfrentar verdadeiramente as desigualdades que afetam as mulheres negras, é necessária a criação de políticas públicas que combinem inclusão social com oportunidades de educação, emprego e empreendedorismo.

A falta de investimentos em políticas de capacitação e inclusão econômica das mulheres negras é uma das principais falhas das políticas públicas brasileiras. Como argumenta Sueli Carneiro (2003), "o Brasil continua a tratar a pobreza como uma questão de caridade e não como um problema estrutural de injustiça social e racial" (CARNEIRO, 2003, p. 99). Para que o país avance na promoção dos direitos humanos das mulheres negras, é essencial adotar políticas de longo prazo que visem não apenas a distribuição de renda, mas a criação de oportunidades econômicas e sociais que lhes permitam superar a marginalização histórica.

3.5. A Necessidade de Reformas Estruturais e Políticas Interseccionais

As análises das políticas públicas discutidas neste capítulo — a Lei Maria da Penha, a Lei de Cotas e os programas de inclusão social — evidenciam que, embora esses instrumentos tenham trazido avanços significativos, eles falham em responder de maneira plena às necessidades das mulheres negras e pardas. Sem uma abordagem interseccional que reconheça as particularidades das experiências dessas mulheres, o impacto dessas políticas continuará limitado, perpetuando a exclusão social, econômica e a violência estrutural.

A adoção de políticas públicas interseccionais, conforme defendido por teóricas como Kimberlé Crenshaw (1989) e Sueli Carneiro (2003), é essencial para a promoção de uma justiça substancial. Isso significa que o Estado deve não apenas implementar leis e programas, mas também garantir que essas políticas sejam adequadas às realidades das mulheres negras, levando em consideração as camadas de opressão racial, de gênero e de classe que afetam suas vidas. As reformas necessárias devem, portanto, incluir a ampliação do acesso à justiça, a criação de políticas de permanência no ensino superior, a promoção da inclusão econômica e a reestruturação das políticas assistenciais, garantindo que essas mulheres tenham oportunidades reais de autonomia e de exercício pleno de seus direitos humanos.

Sobre a autora
Helena Figueiredo

Advogada (UCAM). Mestranda em Política Social (UFF). Especialização em Direito Previdenciário (CBPJUR/OAB). Sempre em busca do melhor benefício previdenciário. Contato: (021) 99794-2067

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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