A cor púrpura no Brasil: a violação dos direitos humanos das mulheres negras e pardas e as heranças de opressão

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14/10/2024 às 18:01
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Capítulo IV: Reformas Estruturais Necessárias para a Garantia dos Direitos Humanos das Mulheres Negras e Pardas no Brasil

4.1 Introdução: A Urgência de Reformas Estruturais no Sistema de Proteção aos Direitos Humanos

O Brasil possui um arcabouço legislativo robusto para a proteção dos direitos humanos, que inclui a Constituição Federal de 1988, a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) e a ratificação de tratados internacionais, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW) e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará). Contudo, como discutido ao longo deste trabalho, o impacto dessas normas sobre a realidade das mulheres negras e pardas tem sido limitado. A marginalização racial e de gênero, aliada às falhas na implementação de políticas públicas, exige não apenas ajustes pontuais, mas uma reformulação mais profunda das estruturas institucionais e sociais que perpetuam essas desigualdades.

Este capítulo examina as reformas estruturais que são indispensáveis para garantir a plena efetivação dos direitos humanos das mulheres negras e pardas no Brasil. Tais reformas devem abordar as diversas facetas da discriminação e exclusão social, econômica e política que afetam essas mulheres, assegurando a criação de um ambiente no qual elas possam exercer plenamente seus direitos. A proposta aqui não se limita à criação de novas leis, mas envolve a reestruturação do funcionamento do Estado, das instituições de justiça, do sistema de educação e do mercado de trabalho, levando em consideração as interseccionalidades de raça, gênero e classe.

Para embasar essa análise, utilizam-se dados de pesquisas acadêmicas, relatórios de organismos internacionais, como a ONU Mulheres e a Organização dos Estados Americanos (OEA), e estudos de ciências sociais. Argumenta-se que, sem uma reforma estrutural efetiva e uma abordagem interseccional, os direitos das mulheres negras continuarão a ser violados, mesmo em face de avanços legislativos.

4.2 Educação Antirracista e Igualdade de Oportunidades: A Base para Superar o Racismo Estrutural

A educação é uma das principais ferramentas para a transformação social e a erradicação do racismo estrutural. Embora o Brasil tenha implementado algumas iniciativas voltadas para a inclusão racial no ambiente educacional, como a Lei de Cotas (Lei 12.711/2012) e a Lei 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas, a aplicação dessas políticas tem sido fragmentada e insuficiente para desconstruir o racismo no sistema educacional. De acordo com Sueli Carneiro (2003), "a educação é o espaço privilegiado de reprodução e combate das desigualdades raciais. Sem uma educação verdadeiramente antirracista, a discriminação continuará a ser reproduzida em todas as esferas da sociedade" (CARNEIRO, 2003, p. 105).

A inclusão de conteúdos que abordem a história e a cultura negra de maneira crítica e transformadora é essencial para romper com as estruturas de exclusão que têm historicamente marginalizado as mulheres negras no Brasil. No entanto, a simples existência de uma legislação que imponha a obrigatoriedade desse ensino não é suficiente para produzir mudanças concretas. Estudos como o de Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (2011) indicam que, nas escolas, a abordagem da história afro-brasileira e africana ainda é superficial e insuficientemente aplicada, perpetuando visões eurocêntricas e marginalizando as contribuições negras na formação do país. Para que essas leis sejam eficazes, é necessária uma maior capacitação de professores e uma reformulação dos currículos escolares, com o objetivo de promover uma educação antirracista que valorize as experiências e narrativas de mulheres negras.

Além disso, a Lei de Cotas, embora tenha ampliado o acesso ao ensino superior para estudantes negros, precisa ser acompanhada de políticas de permanência que assegurem a conclusão dos cursos por essas alunas. Dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP, 2021) mostram que a evasão escolar entre estudantes cotistas negros é maior do que entre estudantes não cotistas. Isso se deve à combinação de fatores como a falta de recursos financeiros, discriminação racial e a ausência de programas de apoio pedagógico e psicológico. Para lidar com essa realidade, é urgente que sejam implementadas políticas de permanência mais robustas, que incluam auxílio financeiro, programas de tutoria e mentorias acadêmicas, além de espaços seguros para que as mulheres negras possam discutir suas experiências de racismo e violência de gênero dentro do ambiente universitário.

4.3 Reformas no Sistema de Justiça: Combate ao Racismo Institucional e à Desigualdade de Gênero

O sistema de justiça brasileiro tem sido historicamente um dos principais espaços de reprodução do racismo institucional. Como mencionado anteriormente, as mulheres negras enfrentam maiores dificuldades para acessar a justiça, tanto em relação à violência de gênero quanto em outras áreas. Uma reforma estrutural no sistema de justiça é, portanto, essencial para que os direitos dessas mulheres sejam protegidos de maneira efetiva. Isso implica, entre outras coisas, em um combate sistemático ao racismo institucional presente nas delegacias, nos tribunais e nas demais instituições responsáveis pela aplicação da lei.

Segundo relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2021), o número de magistrados e promotores negros no Brasil é extremamente baixo, especialmente quando se trata de mulheres negras. Esse dado demonstra como o racismo estrutural também está presente no próprio sistema de justiça, que se configura majoritariamente como um espaço de privilégio branco. A ausência de representatividade negra nas instituições judiciais contribui para a perpetuação de decisões judiciais enviesadas, que não levam em consideração as particularidades das experiências de discriminação racial e de gênero vividas por mulheres negras.

Para enfrentar esse desafio, uma reforma estrutural no sistema de justiça deveria incluir a implementação de cotas raciais para o ingresso de juízes e promotores, a fim de garantir maior representatividade nas decisões judiciais. Além disso, é fundamental que todos os operadores do direito recebam capacitação sobre racismo institucional e interseccionalidade. A ausência de formação adequada sobre esses temas faz com que muitas decisões judiciais sejam tomadas sem considerar as dinâmicas de opressão que afetam de maneira desproporcional as mulheres negras. Essa formação deve ser permanente e deve incluir discussões sobre as desigualdades de gênero e raça, bem como sobre os impactos dessas desigualdades na aplicação da justiça.

Outra medida necessária é a criação de defensores públicos especializados em casos de discriminação racial e violência de gênero. Mulheres negras que buscam justiça para casos de violência, como o feminicídio ou violência doméstica, muitas vezes encontram barreiras econômicas e sociais que dificultam o acesso a advogados competentes. A Defensoria Pública tem um papel fundamental em garantir que essas mulheres tenham acesso ao sistema de justiça de maneira plena e que seus casos sejam tratados com a devida seriedade.

Por fim, deve-se fortalecer o papel da Justiça Restaurativa como uma forma alternativa de resolução de conflitos, especialmente nos casos que envolvem violência de gênero e racismo. A Justiça Restaurativa foca na reparação dos danos causados à vítima, envolvendo a comunidade no processo de cura e restauração. Essa abordagem tem mostrado resultados positivos em outros países na promoção da justiça para grupos marginalizados, como as mulheres negras, ao invés de focar unicamente na punição, que nem sempre aborda as causas estruturais da violência.

4.4 Políticas de Saúde Pública: Enfrentando a Violência Reprodutiva e a Desigualdade no Acesso à Saúde

A saúde pública é outra área em que as mulheres negras enfrentam discriminação sistemática e violência institucional. A violência obstétrica, que afeta desproporcionalmente as mulheres negras no Brasil, é um exemplo claro de como o racismo estrutural está presente nas instituições de saúde. De acordo com o Relatório sobre Racismo e Saúde (Ministério da Saúde, 2021), as mulheres negras têm maior probabilidade de sofrer complicações no parto, ser submetidas a procedimentos sem consentimento e receber tratamento desumanizador em comparação com as mulheres brancas. Esse tipo de violência reprodutiva é uma violação direta dos direitos humanos e dos direitos reprodutivos, conforme assegurados pela Constituição Federal e pelos tratados internacionais ratificados pelo Brasil.

Para enfrentar essa realidade, são necessárias reformas no sistema de saúde que garantam o acesso das mulheres negras a cuidados de saúde de qualidade, respeitando sua autonomia e dignidade. Em primeiro lugar, é preciso capacitar os profissionais de saúde sobre racismo institucional e a importância de um atendimento humanizado e livre de preconceitos. Muitas vezes, o tratamento desigual oferecido às mulheres negras é justificado pela suposta “resiliência” dessas mulheres à dor ou pelo estereótipo da “mãe forte e resistente”, o que legitima a negligência no atendimento.

Em segundo lugar, deve-se garantir a ampliação do acesso das mulheres negras aos serviços de saúde sexual e reprodutiva, com foco na prevenção de doenças e na promoção do bem-estar. Políticas como a ampliação da cobertura do pré-natal e o aumento da oferta de consultas especializadas para gestantes negras são essenciais para reduzir a taxa de mortalidade materna entre essas mulheres, que ainda é alarmante. De acordo com a Organização Pan-Americana da Saúde (2022), a mortalidade materna entre mulheres negras no Brasil é quase três vezes maior do que entre mulheres brancas, um dado que reflete a urgência de reformas estruturais no sistema de saúde.

Além disso, é fundamental promover campanhas de conscientização sobre os direitos reprodutivos e os direitos das mulheres negras à saúde de qualidade. Muitas mulheres negras não estão plenamente cientes dos seus direitos no que diz respeito à saúde sexual e reprodutiva, o que contribui para que situações de violência obstétrica e outros abusos sejam subnotificadas. Campanhas educativas e o fortalecimento de grupos de apoio, como doulas comunitárias, são formas de ampliar o conhecimento e o empoderamento dessas mulheres, garantindo que elas tenham autonomia sobre seus corpos e suas decisões de saúde.

4.5 Reformas Econômicas e a Inclusão Sustentável no Mercado de Trabalho

A precarização do trabalho das mulheres negras é um dos maiores desafios para a garantia de seus direitos econômicos e sociais. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2022), as mulheres negras são as mais afetadas pelo desemprego, subemprego e informalidade no Brasil. Elas ocupam majoritariamente postos de trabalho informais e de baixa remuneração, como o trabalho doméstico, que historicamente é uma das principais ocupações das mulheres negras no país. Essa realidade reflete o legado da escravidão e a continuidade do racismo estrutural no mercado de trabalho.

Para garantir a inclusão sustentável das mulheres negras no mercado de trabalho, são necessárias reformas estruturais que promovam não apenas a inclusão formal, mas a valorização do trabalho dessas mulheres. A primeira medida necessária é a criação de políticas públicas que incentivem a formalização do trabalho informal, oferecendo benefícios sociais, como seguro-desemprego, previdência social e licença maternidade. Embora a Lei Complementar nº 150/2015 tenha estabelecido direitos trabalhistas para empregadas domésticas, muitas mulheres negras ainda trabalham sem contrato formal, o que as priva de direitos fundamentais.

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Outra reforma necessária é a criação de programas de qualificação profissional e empreendedorismo para mulheres negras, com foco em áreas de alta demanda no mercado de trabalho. Esses programas devem ser acompanhados de políticas de incentivo ao microcrédito, que permita às mulheres negras desenvolverem pequenos negócios e empreendimentos. Dessa forma, a inclusão no mercado de trabalho não será apenas formal, mas também econômica, permitindo que essas mulheres atinjam maior autonomia financeira e superem o ciclo de pobreza que afeta tantas famílias negras no Brasil.

4.6. O Caminho para a Justiça Social e Racial no Brasil

As reformas estruturais discutidas neste capítulo são fundamentais para a efetivação dos direitos humanos das mulheres negras e pardas no Brasil. Desde a educação e o sistema de justiça até a saúde pública e o mercado de trabalho, as mulheres negras continuam a enfrentar barreiras que limitam seu pleno desenvolvimento e violam seus direitos. A adoção de políticas interseccionais e a reestruturação das instituições brasileiras são passos essenciais para garantir que essas mulheres possam viver com dignidade, autonomia e segurança.

Somente com uma transformação profunda das estruturas de poder, que leve em consideração as particularidades das mulheres negras, será possível romper com o ciclo de marginalização e exclusão. Isso exige não apenas vontade política, mas um compromisso da sociedade brasileira como um todo com a justiça social e racial, reconhecendo o legado histórico do racismo e do patriarcado e adotando medidas concretas para sua erradicação.


Capítulo V: A Opressão das Mulheres Negras e Pardas nas Relações de Gênero com Homens Brancos e Negros no Brasil: Perspectiva Histórica, Sociológica e Jurídica

5.1 . A Complexidade das Relações de Gênero e Raça no Brasil

As mulheres negras e pardas no Brasil ocupam uma posição de subalternidade que é formada pela interseção entre racismo e sexismo, gerando uma dupla opressão. Esse contexto complexo afeta tanto suas interações com homens brancos quanto com homens negros. Historicamente, as relações de poder e gênero no Brasil foram moldadas pelo legado da colonização e da escravidão, resultando em um tratamento desigual dessas mulheres em várias esferas sociais, econômicas e políticas.

Neste capítulo, o objetivo é analisar como a opressão de gênero e raça se manifesta nas relações entre mulheres negras e pardas e homens brancos e negros, considerando as especificidades históricas, sociológicas e jurídicas. Esta análise permitirá compreender as múltiplas formas de violência e exclusão que essas mulheres enfrentam e as dinâmicas de poder que sustentam essas opressões nas relações de gênero.

5.2 O Legado Histórico da Escravidão e as Relações de Poder entre Mulheres Negras e Homens Brancos

A escravidão no Brasil foi um dos principais fatores que moldaram as relações raciais e de gênero no país. As mulheres negras e pardas foram submetidas a uma dupla exploração: enquanto trabalhavam como escravas, também eram sexualmente exploradas pelos senhores de engenho e outros homens brancos. Como argumenta a historiadora Maria Beatriz Nizza da Silva (1997), a sexualidade dessas mulheres foi cooptada pela lógica de dominação escravista, e elas foram objetificadas como propriedade sexual.

Além da violência física, essas mulheres eram frequentemente tratadas como "mucamas", desempenhando tanto o papel de trabalhadoras quanto de concubinas forçadas, sem qualquer proteção legal. Mesmo após a abolição da escravidão em 1888, essa dinâmica de exploração sexual continuou nas relações empregatícias, especialmente no trabalho doméstico. A falta de proteção jurídica e a desvalorização dessas mulheres continuaram a perpetuar a vulnerabilidade em suas interações com homens brancos.

Essa exploração sexual, marcada pelo racismo e pelo patriarcado, moldou as relações de gênero na sociedade brasileira, afetando profundamente a forma como as mulheres negras e pardas são vistas e tratadas até hoje. A fetichização de seus corpos continua sendo uma forma de violência simbólica, legitimada por um imaginário racial que reforça a objetificação dessas mulheres.

5.3 A Opressão nas Relações entre Mulheres Negras e Homens Negros: Patriarcado, Racismo e Tensionamentos

Nas relações entre homens e mulheres negros, as dinâmicas de opressão se manifestam de maneiras diferenciadas. Embora ambos os gêneros enfrentem a opressão racial, o patriarcado ainda estrutura as relações de gênero dentro da comunidade negra, resultando em tensões entre o desejo de resistência ao racismo e a reprodução de comportamentos patriarcais.

Lélia Gonzalez (1984) destaca que o patriarcado é uma das heranças coloniais que os homens negros, muitas vezes de maneira inconsciente, assimilam como uma forma de se afirmar em uma sociedade que os desumaniza. Esse comportamento resulta em uma reprodução da dominação masculina dentro das relações de gênero, exacerbando a opressão sofrida pelas mulheres negras, que já carregam o fardo do racismo estrutural.

A violência doméstica contra mulheres negras e pardas, por exemplo, é um reflexo direto dessa dinâmica, em que o racismo e o sexismo convergem para criar um ambiente de opressão constante. Estudos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2022) indicam que as mulheres negras são as principais vítimas de feminicídio no Brasil, muitas vezes em contextos de violência doméstica. A interseccionalidade entre raça e gênero torna essas mulheres mais vulneráveis, tanto em suas interações pessoais quanto nas relações com o sistema de justiça.

5.4 A Objetificação e Desumanização das Mulheres Negras e Pardas: Racismo e Sexismo no Imaginário Social

A objetificação das mulheres negras e pardas é uma das formas mais persistentes de opressão, tanto nas relações com homens brancos quanto com homens negros. A construção histórica da mulher negra como um "corpo disponível", hipersexualizado e desumanizado, remonta ao período colonial e se perpetua no imaginário social brasileiro.

Patricia Hill Collins (2000) destaca que a hipersexualização das mulheres negras reforça a sua desumanização, legitimando formas de exploração sexual e violência simbólica que afetam essas mulheres de maneira desproporcional. Essa representação é visível em diversos âmbitos, desde a cultura popular até as relações afetivas e sexuais, onde os corpos das mulheres negras e pardas são frequentemente fetichizados e tratados como meros objetos de prazer.

No contexto das relações com homens brancos, essa objetificação muitas vezes assume a forma de fetichismo racial, em que o corpo da mulher negra é visto como exótico e disponível. Já nas relações com homens negros, a dominação patriarcal também contribui para a desvalorização dessas mulheres, reforçando a ideia de que elas devem ser "fortes" e "resilientes", o que invisibiliza suas dores e suas vulnerabilidades.

A socióloga Sueli Carneiro (2003) argumenta que essa objetificação das mulheres negras é uma forma de controle social que perpetua sua subordinação. A reprodução desses estereótipos, tanto por homens brancos quanto por homens negros, legitima a violência e a marginalização dessas mulheres em diversas esferas da vida social.

5.5 A Resposta Jurídica à Desumanização das Mulheres Negras e Pardas: Avanços e Limitações

Do ponto de vista jurídico, o Brasil possui uma série de instrumentos legais que visam proteger os direitos das mulheres, como a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), a Lei do Feminicídio (Lei 13.104/2015) e a Lei de Injúria Racial (Lei 7.716/1989). No entanto, a aplicação dessas leis tem sido insuficiente para proteger efetivamente as mulheres negras e pardas, que enfrentam barreiras institucionais e culturais para acessar a justiça.

A falta de uma abordagem interseccional na aplicação dessas leis é uma das principais limitações do sistema jurídico brasileiro. Embora o racismo e o sexismo sejam reconhecidos como formas de discriminação, a interseção entre eles ainda é ignorada, o que resulta em uma proteção inadequada para as mulheres negras. De acordo com o Relatório Anual de Segurança Pública (2021), as mulheres negras são as que mais sofrem com a violência doméstica e o feminicídio, mas enfrentam maiores dificuldades para acessar os serviços de proteção.

Além disso, a desumanização simbólica e a objetificação sexual dessas mulheres são raramente reconhecidas como formas de violência no sistema jurídico. O racismo institucional presente nas delegacias e nos tribunais continua a perpetuar a exclusão dessas mulheres, que muitas vezes não têm suas denúncias levadas a sério ou são revitimizadas pelas autoridades. Isso demonstra a necessidade de uma reforma estrutural no sistema de justiça, que inclua a formação de operadores do direito sobre a interseccionalidade de raça e gênero.

5.6. A Complexidade das Opressões Múltiplas e o Caminho para a Transformação Social

As mulheres negras e pardas no Brasil enfrentam um nível de opressão único, marcado pela interseção entre racismo, patriarcado e classismo. Suas relações com homens brancos e negros são moldadas por dinâmicas históricas e sociais que reforçam a exploração, a objetificação e a violência. A desumanização dessas mulheres, tanto no âmbito das relações íntimas quanto no espaço público, reflete uma sociedade que ainda não superou suas raízes coloniais.

Embora o arcabouço jurídico brasileiro tenha avançado em termos de proteção dos direitos das mulheres e do combate ao racismo, a falta de uma abordagem interseccional impede que essas conquistas sejam plenamente eficazes para as mulheres negras e pardas. O caminho para a transformação social exige não apenas reformas jurídicas, mas também mudanças culturais profundas que desafiem os estereótipos raciais e de gênero que continuam a legitimar a opressão dessas mulheres.

A construção de um Brasil mais justo e igualitário passa pela desconstrução dessas formas de opressão múltipla, promovendo uma sociedade em que as mulheres negras e pardas possam exercer plenamente seus direitos e viver com dignidade, respeito e autonomia.


Considerações finais

Este artigo buscou evidenciar as múltiplas formas de violação dos direitos humanos das mulheres negras e pardas no Brasil, demonstrando como as interseções entre racismo e sexismo agravam a exclusão social e institucional dessas mulheres. Apesar dos avanços legislativos e das políticas públicas voltadas à promoção da igualdade, as mulheres negras continuam a enfrentar barreiras significativas em seu acesso à saúde, à justiça, à educação e ao trabalho.

A análise interseccional utilizada neste estudo permite compreender que as políticas públicas, quando desenhadas sem considerar as complexidades dessas interseções, tendem a falhar em garantir direitos substanciais. É necessário, portanto, repensar as estruturas jurídicas e sociais que sustentam essas desigualdades, promovendo reformas profundas que sejam capazes de enfrentar o racismo estrutural e a violência de gênero de maneira eficaz.

Somente com a adoção de políticas interseccionais e a redistribuição de recursos e poder será possível alcançar uma verdadeira igualdade de direitos e assegurar que as mulheres negras e pardas no Brasil sejam plenamente reconhecidas como sujeitos de direitos.


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Sobre a autora
Helena Figueiredo

Advogada (UCAM). Mestranda em Política Social (UFF). Especialização em Direito Previdenciário (CBPJUR/OAB). Sempre em busca do melhor benefício previdenciário. Contato: (021) 99794-2067

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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