Um inquérito acerca dos limites e relações entre o Direito e a Moral na reconstrução da Dogmática Penal alemã do pós-Guerra

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Sumário: 1. INTRODUÇÃO; 2. CONTEXTO HISTÓRICO A RESPEITO DOS LIMITES ENTRE O DIREITO E A MORAL 2.1. PARÂMETROS FILOSÓFICOS PARA UMA DEFINIÇÃO DE MORAL 2.2. O LEGADO DE IMMANUEL KANT; 3. AS REPERCUSSÕES DA DICOTOMIA DIREITO/MORAL NA TEORIA DO DIREITO; 4. OS LIMITES E RELAÇÔES ENTRE O DIREITO E A MORAL NA RECONSTRUÇÃO DA DOGMÁTICA PENAL ALEMÃ NO PÓS-GUERRA 4.1. CONTEXTO HISTÓRICO DA ALEMANHA NO PÓS-GUERRA 4.2. ASPECTOS DOGMÁTICOS: O DIREITO E A MORAL; 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

RESUMO:

O presente artigo visa reconstruir a dogmática penal alemã durante o período nazista e o pós-guerra tendo como parâmetro o Direito e a Moral, tema normalmente abordado na disciplina de Teoria Geral do Direito. Busca encontrar uma definição de moral que seja possível de abordagem através do espaço e tempo de acordo com os cânones da Filosofia Moral, tendo como referência o filósofo Immanuel Kant, conhecido por sua doutrina do conhecimento, doutrina moral e do direito. Retoma as abordagens tradicionais da Teoria do Direito enquanto escola positivista, buscando entender como os teóricos do Direito entendiam as relações e os limites entre o Direito e a Moral e como essa visão poderia influenciar na construção dessa dogmática penal, também ciência do Direito Penal. A seguir, situa o contexto histórico fazendo algumas abordagens trazidas de filmografia e trata dos aspectos dogmáticos em amostra, analisando de acordo com os parâmetros construídos na seção antecedente.

PALAVRAS CHAVE: DIREITO; MORAL; DOGMÁTICA; PENAL; KANT


1. INTRODUÇÃO

Tradicionalmente os livros de Teoria Geral do Direito costumam referenciar o Direito e a Moral como duas esferas éticas nas quais se destaca o atributo da coercibilidade como principal elemento diferenciador no qual se relacionam. Não obstante ser a coercibilidade um dos atributos pelos quais podem ser diferenciar as normas morais das normas jurídicas, tal divisão é abstrata e não compreende a profundidade das relações entre o mundo moral e o mundo jurídico como categorias da ética, autorreferida como domínio da liberdade, da possibilidade de escolha dos indivíduos.

Pode-se dizer que ao longo dos tempos essas esferas ora englobavam uma a outra, ora caminharam separadas e após a Segunda Guerra Mundial com os desastres humanitários ocorridos no centro do mundo europeu, passaram a se interconectar. Tal mudança não foi discreta, e demandou reformas em diversos ramos do mundo jurídico, inclusive de como ele mesmo se concebia, a partir da ideologia positivista.

Esse artigo pretende investigar quais são os limites e as relações entre o Direito e a Moral, principalmente no período do pós-guerra em que se julgou necessário estabelecer conexões entre essas duas esferas, a partir do âmbito prático da dogmática penal alemã, que atravessou o regime totalitário nazista com a subversão dos seus alicerces, e ainda assim marca o mundo da civil law como referência incontornável ao lado da dogmática de origem italiana.

Esse tema ganha relevância a partir do momento em que a ciência jurídica brasileira, principalmente a penalista, importa esses padrões europeus, com ênfase na Alemanha e na Itália e não há uma reflexão profunda entre os doutrinadores sobre como esse modelo alemão pode ser aceito após ter passado por uma experiência traumática especialmente no que se refere a dicotomia Direito/Moral que via de regra é tratado tão somente nos livros de Teoria do Direito. É socialmente relevante questionar esse modelo alemão, na medida em que ele não fora suficiente para impedir o desastre humanitário que devastou a Alemanha, e ao que tudo indica não é suficiente para impedir o desastre em que a utilização do modelo penal vigente não consegue inibir uma violência contínua, sistemática e obscura como ocorre em terras brasileiras.

O problema ao qual se refere o artigo se dá em torno da seguinte questão: “Quais são as relações e os limites entre o Direito e a Moral no âmbito da dogmática penal alemã do pós-guerra?”. Trabalha-se por meio de uma abordagem qualitativa, utilizando-se do método dedutivo a partir de pesquisa bibliográfica. Tem como objetivo investigar a partir de pressupostos filosóficos, históricos e dogmáticos como se reconstruiu a dogmática penal que mesmo após a Alemanha de 1945, foi universalizada como modelo ideal. Este artigo está subdivido em cinco sessões entre as quais a segunda seção estabelece parâmetros filosóficos para essa investigação partindo de uma definição mais ampla de Moral, tendo como referência Immanuel Kant; na terceira seção estuda a dicotomia Direito/Moral no âmbito da Teoria do Direito com base em Hans Kelsen, Miguel Reale e Tércio Sampaio Ferraz Júnior; e na quarta seção traz reflexões históricas e jurídicas sobre como essa dogmática penal se reformulou no pós-guerra.


2.1. PARÂMETROS FILOSÓFICOS A RESPEITO DE UMA DEFINIÇÃO DE MORAL

Partindo do objetivo pressuposto por este artigo de estudar a dicotomia entre o direito e a moral, cabe aqui remeter ao que seria uma definição de moral na atualidade. É certo que uma definição de moral já possuiu diferentes configurações através dos tempos, muitas vezes passando por culturas distintas e em certa medida até mesmo países diferentes, mas nunca deixou de ser uma configuração marcada pela cultura ocidental, o que nos parece de bom tamanho, visto que o Brasil é repositório dessas contribuições enquanto país originado de uma colônia europeia. Essa cultura ocidental pode ser considerada a partir da Antiguidade Clássica (Grécia Antiga e o Império Romano), da Idade Média (que abrangeu a Europa Ocidental, influenciada pelo Império Sacro Romano Germânico), a Idade Moderna (entre Franceses, Italianos e Germânicos, sendo possível que estes últimos ainda não tivessem se constituído como Estados) e a Idade Contemporânea (a consolidação da cultura europeia a partir das revoluções burguesas, passando a ser acompanhada de perto pelos Estados Unidos, assim como o Brasil, originalmente uma colônia).

Não nos cabe aqui fazer uma definição do Direito por demais conhecida e não por isso para os acadêmicos de direito acessível em qualquer obra referente a Teoria Geral do Direito, que geralmente é estudada nos primeiros semestres dos cursos jurídicos país afora. O Direito será tratado aqui sempre em contraposição a Moral, na medida em que se possa constatar quais as relações, influências e limites que este possa ter naquele, especialmente no âmbito da Dogmática Penal enquanto Ciência do Direito.

Como referido acima não se é possível falar de uma definição fechada da moral sabendo-se que o seu conteúdo varia no tempo e no espaço. Alguns filósofos tentaram produzir uma moral formal que seria capaz de servir a qualquer conteúdo apresentado, mas ainda como uma forma ocidental. Parte-se então de um conceito construído no devir que busca nos mais significativos representantes da filosofia moral ocidental, a sua formulação. Alguns livros didáticos de Filosofia Geral nos servem de apoio na medida em que tratam de temas filosóficos que sempre persistiram no tempo, entre os quais cabe compartilhar as observações de Marilena Chauí:

Toda cultura e cada sociedade institui uma moral, isto é, valores concernentes ao bem e ao mal, ao permitido e ao proibido e à conduta correta e à incorreta, válidos para todos os seus membros. Culturas e sociedade fortemente hierarquizadas e com diferenças de castas ou de classes muito profundas podem até mesmo possuir várias morais, cada uma delas referida aos valores de uma casta ou de uma classe social. (CHAUÍ; 2010; p. 386)

(...) De fato, os costumes são anteriores ao nosso nascimento e formam o tecido da sociedade em que vivemos, de modo que acabam sendo considerados inquestionáveis e as sociedades tendem a naturalizá-los (isto é, a toma-los como fatos naturais existentes por si mesmos). Não só isso. Para assegurar seu aspecto obrigatório que não pode ser transgredido, muitas sociedades tendem a sacraliza-los, ou seja, as religiões os concebem ordenados pelos deuses, na origem dos tempos. (CHAUÍ; 2010; p.386)

E Gilberto Cotrim e Mirna Fernandes:

Assim, o ser humano age no mundo de acordo com valores, isto é, a partir daquilo que tem maior importância ou é prioridade para ele segundo certos códigos morais. Isso significa que as coisas e as ações que um indivíduo realiza podem ser hierarquizadas conforme as noções de bem e de justo compartilhadas por um grupo de pessoas, em um determinado momento. Em outras palavras, o ser humano é um ser moral: um ser capaz de avaliar sua conduta a partir de valores morais. (COTRIM; FERNANDES; 2010; p. 291)

Por suposto, entendendo que o indivíduo, enquanto ser humano nasce em condições materiais e sociais já estabelecidas de acordo com o tempo e local do seu nascimento ele tende a absorver os valores da cultura da sociedade que o rodeia. O mundo contemporâneo é um sistema internacional de países, cada qual composto por diferentes sociedades e por consequência por diferentes culturas, mas mesmo entre sociedades é possível existir grupos sociais das mais diversas matizes e que se influenciam reciprocamente, apesar de em certos casos haver um maior antagonismo entre esses grupos, gerando separações. Um indivíduo pode pertencer ao longo de sua vida a diversos grupos, e como a moral não é coercitiva (se verá mais adiante) ele poderá ter pertencido ou pertencerá a outros grupos durante a sua vida ou poderá escolher permanecer nos grupos com os quais teve contato e com os quais se identificou.

Pode parecer por isso que a moral é um fenômeno muito variável, mas historicamente, existem certas estruturas sociais que permanecem e que possuem uma hierarquia mais rígida de valores e de crenças, sendo mais difícil para os indivíduos se separarem desse conjunto de valores dos quais vieram de sua infância, de seu convívio familiar, inconsciente ou conscientemente.

Na cultura ocidental alguns filósofos começaram a inquirir a origem dos valores pelos quais orientamos determinadas ações, e através da observação e do diálogo descobriram que há muitas ações semelhantes entre si, como fora o caso de Sócrates na Grécia Antiga. Esses filósofos começaram a colocar balizas na forma como se procurava entender os valores morais, diferenciando o fenômeno da causalidade do fenômeno da imputação (similar, este último ao fenômeno jurídico):

(...), devemos a Aristóteles uma distinção que será central em todas as formulações da ética, qual seja, a diferença entre o que é por natureza (ou conforme à physis) e o que é por vontade (ou conforme à liberdade). O necessário é por natureza; o possível, por vontade. Eis por que, desde Aristóteles, afirma-se que a ética (e a política) se refere às coisas e às ações que estão em nosso poder. (CHAUÍ; 2010; p.388) *Marcações da autora

Determinaram a amplitude do fenômeno moral de forma que atinja não somente as ações como também as omissões, sendo fundamental que a moral chegue ao nível dos pensamentos invisíveis aos olhos do público, mas perceptíveis pelo indivíduo em sua subjetividade:

Juntamente com a ideia de dever, a moral cristã introduziu uma outra, também decisiva na constituição da moralidade ocidental: a ideia de intenção.

Até o cristianismo, a filosofia moral localizava a conduta ética nas ações e nas atitudes visíveis do agente moral, ainda que tivessem como pressuposto algo que se realizava no interior do agente, em sua vontade racional ou consciente. Eram as condutas visíveis que eram julgadas virtuosas ou viciosas. (...)

Como consequência, passou-se a considerar como submetido ao julgamento ético tudo quanto, invisível aos olhos humanos, é visível ao espírito de Deus, portanto, tudo quanto acontece em nosso interior, em nosso coração. (...) (CHAUÍ; 2010; p. 392)

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No entanto, considerar a moral apenas do ponto de vista do indivíduo não permite analisar a moral como um fator que influencia o todo, o coletivo, a sociedade. Não é possível falar em sociedade sem considerar o tempo e o espaço no qual ela está inserida, disso se tem a afirmação de Friedrich Hegel de que somos seres históricos e culturais (HEGEL apud CHAUÍ; 2010; p. 396) em que ele considera não só as relações entre indivíduos, intersubjetivas, mas as influências de uma vontade objetiva formada pelas instituições:

A moralidade é uma totalidade formada pelas instituições (família, religião, artes, técnicas, ciências, relações de trabalho, organização política, etc.), que obedecem, todas, aos mesmos valores e aos mesmos costumes, educando os indivíduos para interiorizarem a vontade objetiva de sua sociedade e de sua cultura. (HEGEL apud CHAUÍ; 2010; p. 396)

Evidente que o conteúdo da moral expresso em valores, finalidades e ações varia no tempo e pelo tempo, de forma com a qual valores que caracterizam a estrutura de uma sociedade podem torná-la tão rígida e hierárquica que impedem as relações entre indivíduos, tolhe e oblitera a criatividade e a inovação e dificultam a mobilidade social enquanto ascensão de classe. Quando os conflitos se generalizam a sociedade entra em crise e a moral antes dominante torna-se decadente e pronta para ser trocada por outra. Esse raciocínio está presente nos conceitos de moral aberta e moral fechada do filósofo francês Henri Bergson:

Hegel diria que a moral aberta bergsoniana só pode acontecer quando a moralidade vigente está em crise, prestes a terminar, porque um novo período histórico-cultural está para começar. A moral fechada quando sentida como repressora e opressora, e a totalidade ética, quando percebida como contrária à subjetividade individual, indicam aquele momento em que as normas e os valores morais são experimentados como violência (isto é, como imposição externa e autoritária) e não mais como realização ética, isto é, como expressões da liberdade. (CHAUÍ; 2010; p. 399)

Não obstante dentro de uma sociedade haver uma moral dominante, ou morais dominantes é preciso ter clareza que as visões contemporâneas da sociedade, e mesmo do Estado e do Direito, vislumbram uma sociedade multifacetária e plural, podendo reconhecer que diferentes grupos ou setores da sociedade podem produzir normas de conduta, sejam elas vistas como normas de Direito, ou normas morais. Sob o indivíduo pesam diversas influências, de variadas instituições socialmente presentes, esperando-se que a partir dessas influências este se mantenha íntegro e coerente através de suas virtudes:

Um pensador contemporâneo, Alasdair MacIntyre, numa obra intitulada Depois da virtude, procura redefinir a ideia de virtude na sociedade contemporânea, na qual a pluralidade e diversificação de instituições sociais impõem para um mesmo indivíduo uma grande variedade de condutas e comportamentos diferentes - há normas e valores na família, na escola, nos diferentes tipos de profissões e de trabalhos, nas diferentes formas políticas, etc. (CHAUÍ, 2010, p. 402).

Perante a multiplicidade de condutas e comportamentos exigidos por nossas sociedades, a unidade ética é alcançada quando somos capazes de avaliar os múltiplos bens ou valores de cada esfera de nossa existência à luz da unidade de nossa vida, isto é, de nosso desejo de uma vida coerente, inteira ou íntegra, de tal maneira que esse desejo de coerência de vida e de inteireza de caráter orienta cada uma de nossas condutas e cada um de nossos comportamentos. (MACINTYRE apud CHAUÍ; 2010; p. 403).

Na concepção contemporânea de moral a psicanálise traz novos elementos que sofisticam o entendimento do indivíduo em conflito com a moral, como a manifestação do inconsciente presente subjetivamente através da sua sexualidade. Quando os conflitos se agravam, essa manifestação pode se tornar violenta até tomar grandes proporções:

Quando uma sociedade reprime os desejos inconscientes de tal modo que não possam encontrar meios imaginários e simbólicos de expressão, quando os censura e condena de tal forma que nunca possam manifestar-se, prepara o caminho para duas alternativas igualmente distantes da ética: ou a transgressão violenta de seus valores pelos sujeitos reprimidos ou a resignação passiva de uma coletividade neurótica, que confunde neurose e moralidade.

Em suma, sem a repressão da sexualidade, não há sociedade nem ética, mas a excessiva repressão da sexualidade destrói, primeiro, a ética e, depois, a sociedade. (CHAUÍ; 2010; p 411)

2.2. O LEGADO DE IMMANUEL KANT

Immanuel, Manuel ou Emmanuel Kant foi um filósofo alemão que ao mesmo tempo em que representa uma grande virada no pensamento metafísico que lhe antecedera, pode-se dizer também que foi fruto do seu tempo, um representante seja dos movimentos europeus do Iluminismo, seja da filosofia da consciência, do intelectualismo, do idealismo alemão ou de um jusnaturalismo racionalista como alguns setores da filosofia do direito lhe atribuem. Foi um homem que apesar de nunca ter saído da província alemã de Königsberg se notabilizou pelo rigor dos seus sistemas que são atribuídos a razão humana. Essa razão, todavia, deve ser simples, passível de entendimento por qualquer cidadão, mesmo que com este autor não tenha se encontrado, divisível em poucas categorias e postulados, obedecendo a uma máxima fundamental: o imperativo categórico.

Por outro lado, é necessário registrar que, na sustentação desse imaginário jurídico prevalecente, encontra-se disseminado ainda o paradigma epistemológico da filosofia da consciência – calcada na lógica do sujeito cognoscente, onde as formas de vida e relacionamentos são reificadas e funcionalizadas, ficando tudo comprimido nas relações sujeito-objeto (como bem denuncia Habermas) – carente e/ou refratária a viragem linguística de cunho pragmatista-ontológico ocorrida contemporaneamente, onde a relação ou relações passa(m) a ser sujeito-sujeito. Ou seja, no interior do senso comum teórico dos juristas, consciente ou inconscientemente, o horizonte a partir de onde se pode e deve pensar a linguagem ainda é o do sujeito isolado (ou da consciência do indivíduo) – que tem diante de si o mundo dos objetos e dos outros sujeitos – característica principal e ponto de referência de toda a filosofia moderna da subjetividade. (STRECK; 1999; p. 44)

Pode se dividir sua filosofia crítica em dois grandes problemas: um problema gnosiológico, representado pela Crítica da Razão Pura (Kritik der reinen Vernunft – 1781); um problema ético no qual se aplica seu sistema de conhecimento, distinguindo entre a Moral e o Direito, representados pelas obras Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten – 1797), Crítica da Razão Prática (Kritik der praktischen Vernunft – 1788) e Metafísica dos Costumes (Der Metaphysik der Sitten, 1797). (SERRA; 1990; p. 359-361).

Emmanuel Kant (1724-1804) (I) inaugura uma nova época na história do pensamento filosófico europeu. Constitui nela um desses marcos miliários que faz que, a partir dele, essa história tenha de se dividir em dois períodos fundamentais: antes e depois de Kant. Por muito que seu pensamento e a sua filosofia tenham sido posteriormente ultrapassados, desenvolvidos e corrigidos, por muito que hoje nos afastemos dele, precisamente o melhor critério para avaliarmos o quanto progredimos está ainda em sabermos medir a distância a que nos achamos desse último marco miliário e o quanto nos evadimos já, como diz ORTEGA, da “prisão kantiana”. (MONCADA;1995; p. 249-250)

No entanto se trabalhará em Kant tão somente com as esferas éticas do Direito e da Moral, o que em verdade constitui a própria investigação ética que norteou o seu caminho desde o momento em que concluiu a crítica do conhecimento e cujo sistema aqui ele aplica, percebendo como esta sua representação formal ajuda entender como estes mundos se confluem na construção da dogmática penal de origem alemã. Evidentemente que o seu sistema de conhecimento é necessário para compreender sua investigação ética, e ainda mais compreender como se formula a Teoria do Direito e a Dogmática Jurídico-Penal ou Ciência do Direito Penal, em sua formulação moderna. Neste caso, os comentários citados ajudam através de mediações como melhor interpretar os sistemas kantianos, e como melhor aplica-los aos sistemas jurídicos, considerando o distanciamento existente no fator idioma e tempo/local de onde o autor produziu sua obra.

Convém enfatizar que sendo um produto do seu tempo Kant espelha o projeto da modernidade europeia e ocidental, que deseja se universalizar para o mundo e cuja influência atingiu e modulou a vida nos cinco continentes, através da colonização e do imperialismo dos países europeus. A própria noção de sistemas, de uma racionalidade, das construções jurídico-políticas a que essa modernidade legou são fruto de uma visão de homens superiores, brancos, puros e que exerciam seu poder sobre outros que não lhe eram semelhantes, mas com quem compartilhavam sua humanidade. O sistema penal, produto do sistema jurídico-político também pretende ser um modelo racional, lógico, sistemático e isso não se faz apenas com um conjunto de leis e instituições, mas de teorias, e fundamentos que podem vir de diversas dimensões.

A moral kantiana sustenta-se numa diferenciação já conhecida na filosofia moral entre o ser (sein) e o dever-ser (sollen), contrapondo-se aquele enquanto reino da natureza a um reino da liberdade, da escolha. Baseia-se numa visão de um indivíduo em relação aos outros. Coincide com o Direito, com postulações inclusive kelsenianas, quando estabelece entre uma ação e posterior consequência, um juízo de imputação, no qual os indivíduos se obrigam a agir de determinada forma, originalmente prescrita pela sociedade, ou grupo social, ou mesmo o Estado. Disso decorre uma das diferenças entre o mundo moral e o mundo jurídico, enquanto aquele provém de um relação autônoma do indivíduo consigo mesmo, este provém de um monopólio estatal que disciplina leis, na visão iluminista, em nome de uma vontade geral, de uma vontade do povo, portanto de uma relação heterônoma.

A razão prática empírica prescreve à vontade apenas leis pragmáticas condicionadas a posteriori pela inclinação à felicidade, com sua componente sensível expressa no desejo e no prazer. Nela, portanto, não se encontra a resposta acerca da existência dos objetos que constituem o “fim final” dos interesses mais altos da Razão pura. Resta, pois, o exame da Razão prática pura que, por sua própria natureza, prescreve à liberdade leis morais procedendo a priori da própria Razão e tem a forma de um mandamento absoluto, legislando sobre o que deve ser, em contraposição às leis da natureza que legislam sobre o que é (KrV, A, 803, B 831; Weischedel, II, p. 675). (VAZ; 2002; p. 334)

A moral kantiana possui o imperativo categórico como a fonte formal pela qual se praticam as condutas queridas pelo sujeito em sua relação com os outros. Kant aqui não faz nenhuma inovação nem introduz uma moral nova, por isso ele não estabelece conteúdos, ou elementos materiais, que também poderiam ser chamados de códigos de conduta. Ela expressa tão somente uma ideia de dever, de chegar ao bem pela razão, o que pode ser entendido também como uma preservação do indivíduo, de sua integridade física e moral perante outros indivíduos. Este imperativo categórico se exprime através de uma fórmula geral “Age em conformidade apenas com aquela máxima pela qual possas querer ao mesmo tempo que ela se torne uma lei universal”, mas esta não é passível de entendimento sem uma de suas máximas “Age de tal maneira que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de outrem, sempre como um fim e nunca como um meio” o que implica uma valorização do homem e da sua dignidade como fundamento ético de todo o sistema racional (CHAUÍ; 2010; p. 394-395).

Se a vontade não é, em si mesma, plenamente conforme à razão, suas ações de acordo com a lei serão objetivamente necessárias, mas subjetivamente contingentes e a relação das leis com tal vontade para que as suas ações se tornem subjetivamente necessárias deverá ser uma relação determinante que assuma a forma da obrigação (Notingung). (...). O imperativo categórico é, pois, a forma racional do dever-ser (Sollen) e determina uma vontade sujeita à obrigação, ou que não é idêntica ao bem, como é a vontade divina. É, pois, uma regra prática que impõe a uma vontade sujeita subjetivamente à contingência, os princípios necessários da Razão enquanto razão prática. (VAZ; 2002; p. 359)

Dever e vontade são elementos que importam dentro da lógica da ciência do direito penal, eles representam um corte epistemológico que serve para atribuir as condutas passíveis de sanção pelo Estado seus elementos essenciais enquanto pertencente a uma estrutura analítica do crime. Veja-se o caso da conduta típica que é representada por uma ação ou omissão os quais pressupõe a vontade ou a falta dela, ou do dolo representado como consciência e vontade. Isso retira de um primeiro plano a análise subjetiva sobre as intenções ou as razões que levam um indivíduo a praticar uma conduta típica, bem como passa pela subjetividade a análise da antijuridicidade e da culpabilidade.

Boa vontade, dever, respeito, lei: eis os conceitos que se encontram no conhecimento moral comum e que, por sua própria natureza, só podem ser atribuídos à razão pura prática, emergindo analiticamente como conceitos propriamente filosóficos na passagem do conhecimento moral comum ao conhecimento filosófico. (VAZ; 2002; p. 338)

Costuma se falar muito em autonomia da vontade enquanto princípio fundamental do direito privado, que hoje se aperfeiçoa com as demandas sociais para se tornar a autonomia privada. Isso não quer dizer que não haja autonomia da vontade também no direito penal, apenas essa autonomia da vontade é contrária a direito, uma conduta punível que atinge o Estado e o meio social sob o qual ele se situa.

A autonomia da vontade constitui, portanto, o princípio supremo da moralidade, ao passo que a heteronomia é a fonte de todos os princípios ilegítimos, qualquer que seja a forma, empírica ou racional com que se apresentem (GMS, II, Weischedel, IV, pp. 74-80). (VAZ; 2002; p 343)

A vontade é uma espécie de causalidade dos seres vivos na medida em que são racionais e a liberdade seria a propriedade dessa causalidade pela qual ela pode agir independentemente de causas externas que a determinem (KANT apud VAZ; 2002; p. 343)

Mas conforme se verá mais adiante o sistema penal é necessário, dentro desta visão, como um poder punitivo do Estado, com fins a proteção de seu sistema político e jurídico, motivo pelo qual se faz necessário entender o que é esse Estado burguês que surgiu no século XVII e XVIII, após séculos de aperfeiçoamentos e contribuições de diferentes períodos históricos. A contribuição de Kant vem no sentido de trazer uma nova perspectiva e aprofundamento dos marcos teóricos do Iluminismo europeu. A Dogmática Jurídica constitui senão a racionalidade que deriva da ideia essencial de proteção do Estado, e por consequência, de sua sociedade.

Neste domínio, o filósofo de Königsberg é, no seu ponto de partida, pelo menos, tributário, em muito mais larga escala, do seu século, e pertence ainda amplamente ao Iluminismo. Os mesmos conceitos primordiais, que dão o travejamento das grandes concepções da época a que ele pertence, aparecem ainda nele. Exemplos: o conceito de um direito natural (Naturrecht), com o seu primado sobre o direito positivo e o Estado; o da iminente dignidade do indivíduo como pessoa e fim-de-si mesma (Selbstzweck); o de um “estado de natureza” (Naturzustand) anterior à sociedade civil; o de “contrato social” (ursprünglicher Vertrag); e enfim o de uma “vontade geral” (allgeimener Wille), na base de todo o governo legítimo. E não obstante, Kant comunicou a todos estes conceitos significados em grande parte diversos os quais, integrados por sua vez noutras perspectivas, lhe permitiram também nestas matérias ir para muito além do seu século. (MONCADA; 1995; p. 255)

Para Kant o Estado tem como função proteger o Direito, e proteger o Direito significa proteger a liberdade dos indivíduos, a esfera em que possa ser exercida essa autonomia da vontade, para consigo mesmo e para que possa agir na garantia daquilo que é bom para si e para a sua dignidade. Ocorre que se todos são livres para buscar sua dignidade por meio da liberdade, nasce para o Estado à necessidade de impor limites à liberdade de cada um, para no final, garantir a liberdade de todos. Ou seja, está se falando de uma lógica contratualista em que cada um cede um pouco da liberdade para que o Estado possa garantir a liberdade de todos.

Ao lado da moral, o direito é uma normatividade que só pode definir-se como critério de liberdade, ou seja, como meio de permitir a realização da liberdade do homem em si e nas suas relações com a liberdade dos outros. A única diferença está em que a moral exige, por parte do homem, uma adesão íntima e convicta aos motivos éticos do obrar (Moralität), enquanto que o direito dispensa essa adesão interna da consciência e contenta-se com a conformidade externa entre a ação e o preceito (Legalität) (I). A primeira pressupõe afecto (Gesinnung); a segunda, pura observância exterior (Pfichtmässigkeit). Na primeira, a ação é incoercível; na segunda coercível; uma visa na sua valoração as intenções, a outra nos atos humanos externos (2). (MONCADA; 1995; p.257)

Kant distinguia entre liberdade (Freiheit) e arbítrio (Willkür). Só a primeira tem valor racional e moral; o segundo é mero facto empírico destituído de valor: o fazer cada um aquilo que lhe apetece. O direito existe justamente como norma reguladora da convivência das diferentes liberdades no primeiro sentido, e não no segundo; o seu fim é o de permitir uma sempre maior liberdade de cada um e de todos, à custa da esfera do seu arbítrio (2). As limitações que cada homem, no estado civil, sofre na sua esfera de acção particular, são portanto restrição do seu arbítrio, mas não da sua liberdade. E, dada esta noção, nem mesmo a coercibilidade, característica das normas jurídicas, é inconciliável com ela, mas, ao contrário, meio para a sua efetivação (3), excluída ficando assim toda a nota eudemonista ou de felicidade como fim último do homem. (MONCADA; 1995; p 260)

A parte da doutrina do Direito de Kant mais conhecida entre os penalistas é a sua teoria da pena, vista como uma teoria retributiva. Nela o sujeito que comete um crime está lesando o Estado e por isso, para preservar o Estado, como a ordem que o Direito enseja ele comina uma pena para aquele em indivíduo em resposta ao crime cometido. A pena é um imperativo categórico, feita em nome da razão com vistas a um bem maior que o bem do indivíduo, o bem da sociedade, também chamada por Kant de “vontade geral”.

A doutrina de Kant acerca do direito de impor penas e o seu fundamento contrastam com a do jusnaturalismo iluminado. Para Kant, a pena impõe-se em virtude de um imperativo categórico: o réu de um delito deve ser castigado porque cometeu o delito e não por o castigo ser útil a sociedade ou ao próprio réu, o que seria contrário a sua dignidade de homem, que nunca pode servir de meio. Para determinar a natureza e o grau de pena, há que recorrer exclusivamente ao princípio de igualdade entre o prejuízo causado e o prejuízo a sofrer, ou seja, à pena de talião (Wiedervergeltungsrecht, ius talionis); mas bem entendida, isto é, “perante as normas do tribunal”. Daí que aquele que matou deva morrer. Em polêmica expressa com Beccaria e o seu “sentimentalismo de uma humanidade afectada (compassibilitas)”, Kant defende a pena de morte como exigência da justiça. (SERRA;1990; p. 371)

Essa teoria tem sido representada como uma visão arcaica sobre a pena e respectivamente sobre o Direito Penal e a Ciência do Direito Penal cuja função não está somente em compreender e organizar o Direito, mas servir como parâmetro para o legislador editar leis e o julgador julgar aqueles que cometem infrações a estas leis que protegem o Direito e o Estado. Faz-se caricatura ao relacionar a visão retributiva de Kant a “lei do Talião” (Jus Talionis”) própria das civilizações mesopotâmicas da Antiguidade, mas ela é produto de uma visão muito mais sofisticada do que faz parecer a doutrina penalista, que muitas vezes faz um corte epistemológico sobre as verdadeiras funções que o Direito Penal tem sobre a sociedade.

De acordo com as reflexões kantianas, quem não cumpre as disposições legais não é digno do direito de cidadania. Nesses termos, é obrigação do soberano castigar “impiedosamente” aquele que transgrediu a lei. Kant entendia a lei como um imperativo categórico, isto é, como aquele mandamento que “representasse uma ação em si mesma, sem referência a nenhum outro fim, como objetivamente necessária”.

Os imperativos encontram sua expressão no “dever-ser”, manifestando dessa forma essa relação de uma lei objetiva da razão com uma vontade que, por sua configuração subjetiva, não é determinada forçosamente por tal lei. Os imperativos, sejam categóricos ou hipotéticos, indicam aquilo que resulte bom fazer ou omitir, não obstante se diga “que nem sempre se faz algo só porque representar ser bom fazê-lo”. Seguindo o discurso kantiano, é bom “o que determina a vontade por meio de representações da razão e, consequentemente, não por causas subjetivas e sim objetivas, isto é, por fundamentos que são válidos para todo o ser racional enquanto tal” (BITTTENCOURT; 2018; p. 201-202)

Apesar dessa visão de que a pena, principalmente se for uma pena privativa de liberdade está em decadência, ainda resiste a ideia de que existem crimes que são cometidos dentro das sociedades que precisam ser restringidos ou suprimidos pelo Estado. Em sociedades como a brasileira não é raro haver uma visão geral de que existem pessoas que devem ser restringidas ou suprimidas do meio social, e a lógica kantiana de proteção do Estado e do Direito se encaixa nessas pretensões. Se crimes existem, o Direito resiste como fonte formal e material para julgar e responsabilizar aqueles são considerados culpados pelo sistema penal.

De certa forma, a concepção kantiana do Direito representa uma decadência ou deficiência em relação à moralidade, o que, de alguma forma, se assemelha a aspiração marxista de eliminação do Direito e do Estado, o que ocorreria “quando a educação do homem e as circunstâncias estivessem preparadas para isso”. Essa forma de entender o fenômeno decadente do Direito em relação à moral esclarece-se um pouco se não se esquece que o Estado, segundo a visão de Kant, educa concretamente para a moralidade, ou melhor, busca essa passagem da teoria do Direito à teoria da virtude. (BITTENCOURT; 2018; p. 203)

No entanto não se deve condicionar a contribuição de Kant para a dogmática penal apenas naquilo que está relacionado à teoria da Pena. Os elementos que compõem sua filosofia moral bem como sua anterior sistema do conhecimento são essenciais nesse processo de construção da ciência do direito penal.

Sobre o autor
Alexandre Pantoja Guimarães Imaguire Eugênio

Graduando em Direito no Sétimo Semestre pela Faculdade Baiana de Direito e Gestão Pesquisador e Escritor. Redes Sociais: @alexpantojaeugenio (Instagram) @alexpantoja2022 (X)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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