Um inquérito acerca dos limites e relações entre o Direito e a Moral na reconstrução da Dogmática Penal alemã do pós-Guerra

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3. AS REPERCUSSÕES DA DICOTOMIA DIREITO/MORAL NA TEORIA DO DIREITO

Nesta terceira parte da investigação sobre as relações e os limites entre o Direito e a Moral na construção da dogmática jurídico-penal se procederá a partir da entrada no âmbito mais geral do Direito, expresso pela Teoria do Direito, passando-se deste geral para o particular, ou seja, para a Ciência do Direito Penal. Está se tratando aqui de um diferente nível de linguagem, o da Ciência do Direito, também chamado de Doutrina ou Dogmática, cada qual com seu significado particular, em relação ao que seria a teoria geral, seu antecedente, que trata dos conceitos jurídicos fundamentais e o Direito em-si, seu consequente, que é expressa no conjunto de normas que formam o ordenamento jurídico. (DIDIER JR.; 2019; p. 40-43). É uma diferente forma de ver o fenômeno jurídico a partir de sua linguagem teórica e científica.

Só é possível tratar o Direito como ciência, quanto mais como uma teoria a partir do período histórico da Modernidade, situado entre os séculos XVII e XVIII, quando uma nova escola jurídica consolida o fenômeno jurídico e o qualifica sob a forma de um sistema racional, esta escola é o Positivismo Jurídico, que foi precedido pelo seu homônimo na sociologia. O Positivismo define como paradigma fundamental do conhecimento das coisas do mundo a ciência e só por meio dos seus métodos e operações lógicas é que seria possível chegar a um conhecimento verdadeiro. Com o Direito isso não foi diferente. Existiram diferentes linhas de pensamento na Europa destes séculos, com ênfase na França e na Alemanha, mas ele só atingiu seu grau máximo de sofisticação no século XX em que o jurista austríaco Hans Kelsen (1881-1973) concebeu sua obra Teoria Pura do Direito (Reine Rechtslehre -1934) que marcou todo o pensamento jurídico dali em diante. Não obstante, o positivismo já seria o paradigma dominante desde o seu surgimento, o que só sofreu mudanças (sem alterar o essencial) após o as duas guerras mundiais que afetaram sobretudo a Europa e os Estados Unidos.

Kelsen, sem dúvida, é tributário da visão kantiana, que aquela época talvez pudesse ser considerada parte de um jusnaturalismo racionalista, já que pressupunha a existência de um direito natural assentado na Razão humana que deveria ser absorvido pelo Direito Positivo, sempre existente desde priscas eras. Sobretudo quando se fala em termos de Direito e Moral, Kelsen busca justificar a separação entre esses dois mundos, embora não negue a influência que cada um deles exerça no outro. Ocorre que como teórico o qual queria fazer uma abordagem científica do direito, não se deveria ver a Moral e o Direito como coisas semelhantes, muito menos como a mesma coisa, sendo necessário, portanto, diferenciar essas duas esferas:

A pureza de método da ciência jurídica é então posta em perigo, não só pelo fato de se não tomarem em conta os limites que separam esta ciência da ciência natural, mas – muito mais ainda - pelo fato de ela não ser, ou de não ser com suficiente clareza separada da Ética: de não se distinguir claramente entre Direito e Moral. (KELSEN; 2006; p. 67)

Kelsen salienta que não é possível ao Direito se estabelecer de acordo com uma Moral, sobretudo porque, se assim o fosse, deveria se conceber uma moral absoluta, o que não condiz com a realidade. Há, portanto, uma relatividade dos sistemas morais, e por consequência dos valores morais:

(...); se se concede que em diversas épocas, nos diferentes povos e até no mesmo povo dentro das diferentes categorias, classes e profissões valem sistemas morais muito diferentes e contraditórios entre si, que em diferentes circunstâncias pode ser diferente o que se toma por bom e mau, justo e injusto e nada há que tenha de ser havido por necessariamente bom ou mau, justo ou injusto em todas as possíveis circunstâncias, que apenas há valores morais relativos – então a afirmação de que as normas sociais devem ter um conteúdo moral, devem ser justas, para poderem ser consideradas como Direito, apenas pode significar que estas normas devem conter algo que seja comum a todos os sistemas de Moral enquanto sistemas de justiça. Em vista, porém, da grande diversidade daquilo que os homens efetivamente consideram como bom e mau, justo e injusto, em diferentes épocas e nos diferentes lugares, não se pode determinar qualquer elemento comum aos conteúdos das diferentes ordens morais. (KELSEN; 2006; p. 72-73)

A visão kelseniana absorve as ideias fundamentais do pensamento de Kant, a partir de uma visão formal da moral, expressa através do dever ser, sem, contudo, fazer observações se este dever-ser se daria por meio da liberdade, se haveria uma definição do que é bom ou mal e qual seria a forma do dever, se pelo imperativo categórico tal como Kant afirmara. Sua preocupação maior é em definir e diferenciar o Direito de todos os sistemas morais para assim estabelecer uma ciência jurídica que isole o Direito de qualquer influência de outra ordem social.

O que é necessariamente comum a todos os sistemas morais possíveis não é outra coisa senão a circunstância de eles serem normas sociais, isto é, normas que estatuem, quer dizer, estabelecem como devida (devendo ser) uma determinada conduta de homens referida – imediata ou mediatamente – a outros homens. O que é comum a todos os sistemas morais possíveis é a sua forma, o dever-ser, o caráter de norma.

Então, neste sentido relativo, todo o Direito tem caráter moral, todo o Direito constitui um valor moral (relativo). Isto, porém, quer dizer: a questão das relações entre o Direito e a Moral não é uma questão sobre o conteúdo do Direito, mas uma questão sobre a sua forma. (...) Com efeito, o Direito constitui um valor precisamente pelo fato de ser norma: constitui o valor jurídico que, ao mesmo tempo, é um valor moral (relativo). Ora, com isto mais se não diz senão que o Direito é norma. (KELSEN; 2006; p. 74)

Kelsen ainda resvala na visão de Justiça a qual considera um produto da Moral, ou dos diferentes sistemas morais, mas considerando que a Justiça é um valor relativo, não se poderia definir a validade de uma ordem jurídica por meio do que a Justiça significa para as pessoas que estão sob aquela ordem:

Quando uma teoria do Direito positivo se propõe distinguir Direito e Moral em geral e Direito e Justiça em particular, para não os confundir entre si, ela volta-se contra a concepção tradicional, tida como indiscutível pela maioria dos juristas, que pressupõe que existe apenas uma única Moral válida – que é, portanto, absoluta - da qual resulta uma Justiça absoluta. (...) A pretensão de distinguir Direito e Moral, Direito e Justiça, sob o pressuposto de uma teoria relativa dos valores, apenas significa que, quando uma ordem jurídica é valorada como moral ou imoral, justa ou injusta, isso traduz a relação entre a ordem jurídica e um dos vários sistemas de Moral, e não a relação entre aquela e “a” Moral. Desta forma, é enunciado um juízo de valor relativo e não um juízo de valor absoluto. Ora, isto significa que a validade de uma ordem jurídica positiva é independente da sua concordância ou discordância com qualquer sistema de Moral. (KELSEN; 2006; p.75-76)

Tributários desta visão positivista do Direito no qual Kelsen fora seu maior expoente, estão dois juristas brasileiros que viraram referências nacionais seja dentro do ambiente jurídico seja do ambiente acadêmico, por isso citados neste trabalho, além do que, ambos lecionam a Teoria do Direito na tradicional Faculdade do Largo de São Francisco (Universidade de São Paulo – USP). São eles Miguel Reale (1910-2006) e Tércio Sampaio Ferraz Júnior (1941-)3.

Dentro do mesmo objetivo de Kelsen de procurar diferenciar o Direito dos demais sistemas morais, Miguel Reale pertence a uma tradição jurídica diferente, o Culturalismo Jurídico. No entanto, dado o seu papel de professor do qual foi gerada a obra Lições Preliminares do Direito (1973), assume um papel maior de expositor das diferentes tendências que buscavam o elemento diferencial do Direito, não podendo se atribuir necessariamente sua visão crítica a tradição na qual se filiou.

Reale de início se utiliza da Teoria dos Círculos Éticos, que expressam que o Direito por muito tempo ocupou um lugar na moral formando os Círculos Concêntricos, e a visão de que o Direito é o mínimo ético, formulação feita pelo filósofo alemão Georg Jellinek. Posteriormente, se viu que esta não era a visão mais precisa do Direito, havendo normas jurídicas amorais, ou seja, indiferentes a Moral e normas jurídicas imorais, contrárias a Moral:

O Direito, infelizmente, tutela muita coisa que não é moral. Embora possa provocar nossa revolta, tal fato não pode ficar no esquecimento. Muitas relações amorais ou imorais realizam-se à sombra da lei, crescendo e se desenvolvendo sem meios de obstá-las. Existe, porém, o desejo incoercível de que o Direito tutele só o “lícito moral”, mas, por mais que os homens se esforcem nesse sentido, apesar de todas as providências cabíveis, sempre permanece um resíduo de imoral tutelado pelo Direito. (REALE; 2002; p. 42-43)

Reale segue a trilha deixada por Kant na definição do que seria uma moral autêntica, procurando observar o que faz com que os indivíduos cumpram as normas morais, diferentemente do cumprimento das normas jurídicas:

Podemos dizer que a Moral é o mundo da conduta espontânea, do comportamento que encontra em si próprio a sua razão de existir. O ato moral implica a adesão do espírito ao conteúdo da regra. Só temos, na verdade, Moral autêntica quando o indivíduo, por um movimento espiritual espontâneo realiza o ato enunciado pela norma. Não é possível conceber-se o ato moral forçado, fruto da força ou da coação. Ninguém pode ser bom pela violência. Só é possível praticar o bem, no sentido próprio, quando ele nos atrai por aquilo que vale por si mesmo, e não pela interferência de terceiros, pela força que venha a consagrar a utilidade ou a conveniência de uma atitude. Conquanto haja reparos a ser feitos à Ética de Kant, pelo seu excessivo formalismo, pretendendo rigorosamente que se cumpra “o dever pelo dever”, não resta dúvida que ele vislumbrou uma verdade essencial quando pôs em evidência a espontaneidade do ato moral. (REALE; 2002; p.44)

Avança com base nesta característica da moral autêntica ao colocar a coercibilidade como elemento diferencial do Direito o qual poderia ser descrito como a utilização dos meios de força para fazer cumprir as normas tidas como jurídicas:

O cumprimento obrigatório da sentença satisfaz ao mundo jurídico, mas continua alheio ao campo propriamente moral. Isto nos demonstra que existe, entre o Direito e a Moral, uma diferença básica, que podemos indicar com esta expressão: a Moral é incoercível e o Direito é coercível. O que distingue o Direito da Moral, portanto, é a coercibilidade. Coercibilidade é uma expressão técnica que serve para mostrar a plena compatibilidade que existe entre o Direito e a força. (REALE; 2002; p. 46-47)

Diferentemente da Moral cujo cumprimento parte de uma vontade autônoma do indivíduo em virtude da qual cumpre determinadas condutas desejadas socialmente. O Direito se constrói e se aplica por meio da vontade heterônoma do Estado, devendo o indivíduo obediência as normas da ordem jurídica sob a qual vive.

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(...) podemos obedecer ou não às normas de direito das quais somos destinatários. Elas são postas pelo legislador, pelos juízes, pelos usos e costumes, sempre por terceiros, podendo coincidir ou não os seus mandamentos com as convicções que temos sobre o assunto.

Podemos criticar as leis, das quais dissentimos, mas devemos agir de conformidade com elas, mesmo sem lhes dar a adesão de nosso espírito. Isto significa que elas valem objetivamente, independentemente, e a despeito da opinião e do querer dos obrigados.

Essa validade objetiva e transpessoal das normas jurídicas, as quais se põem, por assim dizer, acima das pretensões dos sujeitos de uma relação, superando-as na estrutura de um querer irredutível ao querer dos destinatários, e o que se denomina heteronomia. Foi Kant o primeiro pensador a trazer à luz essa nota diferenciadora, afirmando ser a Moral autônoma, e o Direito heterônomo (REALE; 2002; p. 48-49)

Termina por definir que o elemento diferencial do Direito é a bilateralidade atributiva, visão com qual tinha se debruçado com profundidade a partir das tendências que procuravam definir o direito como ordem coercitiva:

Podemos dizer que o pensamento jurídico contemporâneo, com mais profundeza, não se contenta nem mesmo com o conceito de coação potencial, procurando penetrar mais adentro na experiência jurídica, para descobrir a nota distintiva essencial do Direito. Esta é a nosso ver a bilateralidade atributiva.

Pelos estudos que temos desenvolvido sobre a matéria pensamos que há bilateralidade atributiva quando duas ou mais pessoas se relacionam segundo uma proporção objetiva que as autoriza a pretender ou fazer garantidamente algo. Quando um fato social apresenta esse tipo de relacionamento dizemos que ele é jurídico. Onde não existe proporção no pretender, no exigir ou no fazer não há direito, como inexiste este se não houver garantia específica para tais atos. (REALE; 2002; p.50-51)

Saindo dessa busca pela diferenciação do Direito em relação aos sistemas morais Tércio Sampaio Ferraz Júnior possui uma visão mais ampla a respeito dessa temática, na linha do que já propunha Kelsen, mas segue por outros caminhos ao compreender o fenômeno jurídico como técnica e, sobretudo, como linguagem. Expressa em seu texto uma degradação dos fundamentos do Direito que poderiam ser considerados de certa forma como extrajurídicos (filosóficos), mas que são essenciais para que a ordem se sustente na busca pelos seus fins. O Direito aqui não consta, como poderia parecer, como uma ordem de estabilidade, mas sim que necessita de movimento, de evolução:

(...), o grande problema da tecnologia hodierna, nomeadamente da dogmática jurídica contemporânea, é que sua techne deixa de nascer do conhecimento verdadeiro, surgindo de uma espécie de “exigência” que o homem faz à natureza para que esta lhe entregue sua energia acumulada (Heidegger). O homem hodierno interpela a natureza pela técnica, isto é, provoca-a. Assim, enquanto a técnica na Antiguidade prostrava-se com humildade perante a natureza, a técnica contemporânea força a natureza, ocultando-a, ao manipulá-la.

Ora, esse crescimento distorcido da técnica, apartada da virtude enquanto realização da verdade na ação, é que traz para o saber jurídico atual um sério e peculiar problema de fundamentação. Concebendo o direito de forma instrumental, um meio para a realização de um fim (um instrumento de decisão de conflitos), a ciência dogmática do direito acaba por se relacionar a uma finalidade posta no futuro. Contudo, o direito instrumentalizado exige justificação, pois, quanto mais os fins objetivados se distanciam no futuro (os conflitos tornam-se cada vez difíceis de ser decididos), tanto mais a justificação perde plausibilidade. Que significa isso? Ao enfrentar as questões de decidibilidade dos conflitos com um mínimo de perturbação social, a dogmática fornece esquemas teóricos (sistemas, interpretações, argumentos) que acabam por atuar como instrumentos de controle social. Ora, tornando-se a própria dogmática um saber instrumental, sua racionalidade será reconhecida apenas e à medida que for eficaz no atingimento do fim que se propõe alcançar. Quanto mais distante esse fim e mais difuso seu atingimento, tanto maior a exigência de justificação. Quanto maior esta exigência, menos plausíveis parecem os fundamentos. A erosão de tradições culturais em nome da prioridade da eficiência técnica gera, assim, uma necessidade crônica de legitimação do direito e do saber jurídico em termos de ordem justa. (FERRAZ JR.; 2015; p. 315)

Nesta análise retoma o significado de justiça, não talvez como um dos valores morais, mas como princípio regulativo da ordem jurídica, a qual lhe confere sentido. Sinaliza, portanto, um problema sistêmico que pode ser abordado sob a perspectiva da linguagem, mas que no fundo abraça a Moral, entendendo que para as pessoas que vivem sob determinada ordem jurídica, a perda do sentido de Justiça, que é um valor moral, pode conduzir tal ordem à ruína. Por isso uma ordem jurídica imoral não tende a resistir no tempo.

(...), feita a abstração do problema da universalidade e racionalidade do conceito de Justiça, nenhum homem pode sobreviver numa situação em que a justiça, enquanto sentido unificador do seu universo social, foi destruída, pois a carência de sentido torna a vida insuportável. Ao menos nesses termos existenciais é de reconhecer que a justiça confere ao direito um significado no sentido de razão de existir. Diz-se, assim, que o direito deve ser justo ou não tem sentido a obrigação de respeitá-lo. Ou seja, a perda ou a ausência do sentido de justiça é, por assim dizer, o máximo denominador comum de todas as formas de perturbação existencial, pois o homem ou a sociedade, cujo senso de justiça foi destruído, não resiste mais às circunstâncias e perde, de resto, o sentido do dever-ser do comportamento. (FERRAZ JR.; 2015; p. 317)

Sobre o autor
Alexandre Pantoja Guimarães Imaguire Eugênio

Graduando em Direito no Sétimo Semestre pela Faculdade Baiana de Direito e Gestão Pesquisador e Escritor. Redes Sociais: @alexpantojaeugenio (Instagram) @alexpantoja2022 (X)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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